Em tempos líquidos, de relacionamentos fluídos, é cada vez mais comum que os solteiros se conheçam e iniciem um relacionamento por aplicativo ou rede social (na forma virtual), que funciona como uma vitrine de possibilidades, refletindo uma nova forma de relacionar-se afetivamente.
Nesse cenário de relacionamentos, surge a questão: será que a consequência desta nova modalidade de relacionar-se virtualmente é capaz de alterar o conceito de fidelidade e infidelidade?
A palavra fidelidade tem sua origem no latim, fidelitas, vocábulo cujo substantivo deriva de fides, que na antiguidade da língua latina significava “adesão”, ligando-se a preceitos religiosos.
Com a evolução da língua, o conceito da palavra se ampliou, sendo empregada para designar sinceridade, retidão, honestidade, responsabilidade e confiança.
Assim, fidelitas (fidelidade), por ter suas raízes em fides, representa aquele que tem fé, que é confiável, tem compromisso com aquilo que assume. Em sentido inverso, a palavra Infiel, com o prefixo “in”, o qual significa a negação, remete àquele que não comunga da mesma fé, ou rompe a confiança.
Por certo, não é mais possível atribuir à infidelidade o significado apenas de ausência de boa-fé, em termos de relacionamento, de conjugalidade, a infidelidade está relacionada, em um primeiro momento, ao adultério, à prática do ato sexual com aquele que não é seu cônjuge.
Por muitos séculos, a infidelidade conjugal (adultério) era punida com penas severíssimas, as quais eram impingidas apenas ao gênero feminino. Como exemplo, temos a Lex Julia de adulteris, que estabeleceu a punição às mulheres e a seus amantes em caso de adultério, de tal forma, caso o adultério fosse cometido na casa do pai da adúltera, esse tinha autorização legal para matar sua filha e o seu amante.
Porém, se o adultério fosse cometido na casa do casal, quem aplicaria a pena de morte a ambos deveria ser o marido (Digesto, 48.5.12.4). A Lei não mencionava adultério cometido pelo marido.
No Brasil, até a promulgação do Código Civil, utilizamos as Ordenações Portuguesas para a organização da conduta social, assim, temos as Ordenações Filipinas as quais previam, no Livro V, Título XXV que:
Mandamos que o homem que dormir com mulher casada e que em fama de casada tiver, morra por ello. Porém se o adúltero for de maior condição que o marido dela, assim como se o tal adultero fosse Fidalgo, e o marido Cavaleiro ou Escudeiro, ou o adúltero Cavaleiro ou Escudeiro, e o marido peão, não farão as Justiças nele execução, até no-lo fazerem saber e verem sobre isso nosso mandado.
Aqui a punição ao amante se diferenciava conforme a casta ao qual pertencia, mas às mulheres (esposas) a punição não se diferenciava, sendo fidalga ou da plebe, o Título XXV da ordenação repetia a pena prevista no Digesto de Justinano, ou seja, a morte à adúltera: “Toda a mulher que fizer adultério a seu marido, morra por isso”.
Ainda no Brasil Imperial, foi abolida a pena de morte à mulher, e o adultério passou a ser tipificado como crime, incluindo, por pressão da igreja, o homem também como sujeito de punição por adultério.1
Clóvis Beviláqua, responsável pelo projeto do Código Civil de 1916, ensina sobre fidelidade, mencionando-a como sendo “o primeiro e o mais importante dos deveres recíprocos dos cônjuges, é a expressão natural da monogamia e não constitui simplesmente um dever moral. O direito exige tal dever em nome dos interesses superiores da sociedade”.
Estabelecendo a defesa dos interesses superiores da sociedade, acima dos interesses pessoais, sendo a forma punitiva para os adúlteros, além da perda da guarda dos filhos, a perda do uso do sobrenome, na questão financeira, a perda dos direitos a alimentos ao cônjuge adúltero e a perda dos bens na partilha.
Vemos que é mais uma forma de punir os infiéis, punição excessivamente gravosa que recai ao gênero feminino, isso em virtude também do mesmo Código Civil de 1916 que estabelecia que a mulher casada mantinha, ao se casar, sua capacidade civil relativa, sendo-lhe proibido os atos do comércio (sem a anuência do marido), gerando dependência financeira.
No Código Civil de 2002, foi mantida a monogamia, e o Código Penal (Decreto Lei 2.048 de 7 de dezembro de 1940), em seu artigo 240, considerava o adultério um crime contra o casamento, prevendo pena de detenção de 15 (quinze) dias a 6 (seis) meses, ficando este dispositivo revogado em 2005, pela Lei 11.106/2005.
Todavia, foi apenas em 2010, com a Emenda Constitucional 66, que se retirou a discussão da culpa (e da infidelidade) pelo término do casamento, deixando claro pelo Legislador que os superiores valores sociais haviam mudado, não restando ao adultério qualquer pena, no máximo uma responsabilização pecuniária conforme o caso.
Em um recorte do Direito Civil Romano-Germânico, demorou 16 séculos, a contar do Imperador Justiniano (século V) até a Emenda Constitucional 66/2010,2 para que a sociedade alterasse seus padrões de punição social, a fim de adequar-se aos valores sociais e morais vividos na relação conjugal.
A pergunta, porém, permanece inalterada, essa mudança social, demonstrada pela alteração da legislação, a qual não pune diretamente o infiel, foi capaz de alterar o cumprimento do princípio da monogamia, ou ainda o conceito de fidelidade conjugal prevalece na atualidade?
A preocupação Estatal na intimidade do casal não aconteceu por acaso, devemos lembrar que a fidelidade conjugal, imputada a princípio apenas à mulher, dava-se também ao fato de assegurar a origem e a legitimidade da filiação na relação conjugal “Mater semper certa, pater nunquam”,3 a fim de proteger o patrimônio familiar.
Desde 1985, todavia, com a criação do exame de DNA, pelo geneticista Alec Jeffreys, é possível identificar com a precisão de 99,99% a paternidade e a maternidade de uma criança, algo impactante para as relações extraconjugais.
Simultaneamente, a promulgação da Constituição de 1988, o Brasil registrou um aumento na demanda pelos testes de paternidade em DNA (em nível privado e pessoal), desta forma, pelo argumento da origem e de legitimação da filiação, não se justificaria o controle estatal sobre a fidelidade conjugal.
Porém, temos outro motivo da intromissão Estatal na fidelidade conjugal, pode ser atribuído às suas raízes, em fides, com estreita ligação com a fé, com a religiosidade, e, de tal maneira, constatamos o princípio da monogamia mantido no texto Constitucional e no Código Civil, em virtude de valores religiosos os quais se traduzem em valores sociais, e não mais em decorrência da preocupação com a legitimidade da filiação.
Apesar de compreendermos os motivos nos quais permanece a fidelidade preservada pelo princípio da monogamia,4 já vivenciamos a Era Digital (no século XXI), e a sociedade passa de forma rápida e abrupta por um novo momento de transformação social.
A pós-modernidade vivencia o que Zigmund Bauman chama de relacionamentos líquidos e efêmeros os quais não têm perspectiva de durar, nas palavras do sociólogo polonês, os tempos são “líquidos” porque tudo muda tão rapidamente. Nada é feito para durar, para ser “sólido”.
Concomitante a isso, mas de forma inversa, temos o afeto supervalorizado em detrimento, inclusive, da filiação biológica, com o Julgamento do RE 898060 pelo STF, o qual deu prevalência da paternidade socioafetiva em detrimento da paternidade biológica.
Ora, se vivemos relacionamentos líquidos, não seria um paradoxo afirmar que a filiação socioafetiva tem validade igual ou superior à biológica? A resposta é não, pois entendo que uma questão é ligada à outra e decorrente desta, vejamos.
A jurisprudência de forma corajosa atribuiu valor aos filhos do afeto, os chamados filhos de criação; com isso, ela valoriza as verdades vividas nas relações, assim, se aquelas pessoas se reconhecem entre si como família, devem ser reconhecidas pela sociedade da mesma forma.
E, no mesmo sentido, se as pessoas da atualidade se relacionam de forma virtualizada (seja por facilidade ou por segurança) e conseguem se apaixonar e viver grandes amores, também é uma verdade o que, cada pessoa em si, vivencia.
De tal modo, caso um casal resolva fazer um encontro casual para uma relação sexual consentida, sem compromisso, se ambos concordam com os termos da relação, também vivenciam uma verdade naquele único encontro.
Com a ressignificação do afeto nas relações líquidas (descritas por Zigmund Bauman), ponderando sobre a (in)fidelidade nestas relações, a nova Era trouxe transparência ao que sempre foi, uma vez que o peso social de um casamento se atenuou, e quem desejar viver um relacionamento monogâmico sob a égide legal se casa (ou passa a viver uma União Estável), e quem o casamento não quer, não tem mais a imputação dele como fato social necessário.
Desta forma, a fidelidade e a infidelidade, na atualidade, devem ser concebidas em torno do conceito de boa-fé nas relações, trata-se de honestidade e de confiança. Neste sentido, isso permanece inalterado; afinal, todo e qualquer relacionamento deve ser pautado na verdade, na confiança e na transparência.
E de igual modo, a infidelidade do modo como é apresentada hoje incide sobre a quebra da confiança, a quebra da boa-fé no relacionamento e, também, fica imutável, independentemente se essa ruptura da fides deu-se na forma presencial (com ou sem relacionamento sexual) ou na forma virtual (com ou sem relacionamento sexual).
Por fim, a busca pela felicidade que permeia todas as relações humanas se apoia na fidelidade de valores e ações de cada indivíduo envolvido, valores os quais permanecem necessários e inalterados, afinal, é na verdade essencial das relações humanas que se ancora a nossa sociedade.
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Referências
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1. O artigo 250 do Código Criminal do Império do Brasil (de 1830) determina que “a mulher casada, que cometer adultério, será punida com a pena de prisão com trabalho por um a três anos. A mesma pena se imporá neste caso ao adultero” (artigo 279 do Código Penal de 1890).
2. Sem considerar as legislações como Código de Hamurabi que é datado do século XVIII a.C., por exemplo.
3. Tradução livre: A mãe é sempre conhecida, o pai, nunca.
4. O princípio da monogamia se relaciona à fidelidade na medida em que o Estado determinou que seria protegido e regulamentado o relacionamento entre um homem e uma mulher, ou seja, entre duas pessoas e não três ou mais, como seria o caso do poliamor. Porém, a fidelidade é cabível em qualquer relacionamento, inclusive no poliamor (caso, em algum momento, seja regulamentado e consentido pela legislação), para o legislador, o que é exigido por fidelidade é a boa-fé como um vetor nas relações.