A marca de sorvetes Diletto foi fundada em 2008 pelos sócios Leandro Scabin, Fábio Meneghini e Fábio Pìnheiro. Os produtos da marca foram criados para atingir principalmente as classes A e B, concorrendo com marcas como Häagen-Dazs e Bacio di Latte. Os sabores incluíam limão siciliano, macadâmia, pistache e coco da malásia, entre outros. Em Belo Horizonte, por exemplo, a marca era comercializada no Supermercado Verdemar. A embalagem dos produtos continha a imagem de um urso polar.
Na página da internet da marca de sorvetes era possível conferir uma história sobre a origem da marca que assim dizia:
“Lá felicitá è um gelato”
Com essa frase o Sr. Vittorio Scabin resumia toda a sua dedicação à produção de seu sorvete, o Diletto: um picolé artesanal, mistura de frutas e neve. O ano era 1922 e o local o pequeno vilarejo de Sapadda, na região do Vênetto. O cuidado no preparo e na seleção dos ingredientes todos naturais fazia do Diletto um sorvete ao mesmo tempo delicioso e saudável. Mas veio a II Grande Guerra, e Vittorio, como inúmeros italianos, viu-se obrigado a deixar seu país para construir uma nova vida no Brasil. Hoje, quase um século depois, a história do Senhor Vittorio recomeça pelas mãos de seus netos, que souberam juntar as evoluções da indústria às sutilezas do processo artesanal criado e desenvolvido pelo nonno na velha Itália. A dedicação na escolha dos ingredientes é tanta que os faz buscar, por exemplo, o pistache verde produzido no Bronte, região do vulcão Etna, na Sicília, onde a terra confere a essa semente um sabor único. As delicadas framboesas orgânicas são colhidas na Patagônia, enquanto o cacau criollo, um dos mais cobiçados do mundo, e proveniente da península de Paria, na Venezuela. A base e o aroma produzidos na Itália, além de perpetuarem uma tradição, garantem a testura cremosa e o sabor singular de um sorvete de baixíssima caloria, com teor de gordura até 80% menor e livre de gordura trans. Esse é o legado que o Sr. Vittorio Scabin conferiu aos seus netos e que hoje é mantido com a mesma dedicação, perfeccionismo e paixão, fundamentais para transformar o que poderiam ser simples picolés em deliciosas porções de felicidade. 1
O artifício usado pela marca é denominado no marketing como “storytelling”, que significa a habilidade de contar uma história cativante para promover uma determinada marca.
Percebe-se no storytelling da Diletto que a marca não somente narrou uma origem do produto com uma história muito bem contada, como também apresentou vários ingredientes e suas origens que tornariam a marca diferenciada perante seus concorrentes e ainda juntou imagens de uma pessoa e do caminhão que o suposto avô utilizava nos anos 20.
Todavia, em novembro de 2014 uma consumidora paulista fez uma reclamação perante o CONAR (Conselho Nacional de Autorregulamentação publicitária) alegando que a história era falsa, portanto uma publicidade enganosa, e induzia os consumidores ao erro, já que o próprio fundador havia informado isso em uma reportagem para a Revista Exame.2 Segundo essas informações, o avô do fundador, apesar de realmente ser de origem italiana, veio para o Brasil aos 2 anos de idade, depois da data relatada, se chamava Antônio e nunca trabalhou com gelato, pois era jardineiro. Em votação por maioria, o CONAR recomendou a alteração do conteúdo do storytelling retirando as citações ao “avô Vittorio” e sua relação com a fabricação do sorvete, bem como a foto do caminhão dos anos 20. 3
O artigo 1º do CBARP (Código Brasileiro de Autorregulamentação Publicitária), dispõe que “todo anúncio deve ser respeitador e conformar-se às leis do país; deve, ainda, ser honesto e verdadeiro.” Já o art. 27 do mesmo código prevê que o anúncio deve conter uma apresentação verdadeira do produto oferecido, conforme disposto nos artigos seguintes desta Seção, onde estão enumerados alguns aspectos que merecem especial atenção. Dentre eles, o § 1º, que determina ao anunciante que todas as descrições, alegações e comparações que se relacionem com fatos ou dados objetivos devem ser comprobatórias, cabendo aos Anunciantes e Agências fornecer as comprovações, quando solicitadas.
A oferta e a publicidade estão reguladas no CDC, nas Seções II e III, nos capítulos denominados da oferta e da publicidade, respectivamente.
A publicidade ilícita divide-se em publicidade enganosa e abusiva. Entende-se por publicidade enganosa “qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços (art. 37, § 1º).”
Não se exige prova da enganosidade real, ou seja, basta a potencial capacidade de enganar o consumidor para que seja caracterizada a publicidade enganosa, inclusive o silêncio pode gerar a publicidade enganosa.4 Criar uma história falsa de origem internacional de um produto para com isso cobrar mais caro pelo mesmo é uma espécie de enganosidade.
A publicidade pode ser enganosa por omissão e comissão. Na primeira, o fornecedor omite, deixa de informar algo importante sobre algum aspecto do produto ou serviço. A enganosidade por omissão varia conforme o caso, já que não se exige que o anúncio informe ao consumidor todas as características do produto ou serviço. Já na publicidade enganosa por comissão, o fornecedor afirma algo que induza o consumidor a erro, uma informação inverídica que ludibriará o consumidor.
Na publicidade enganosa não se exige a intenção de enganar o consumidor, não se analisa aspecto subjetivos do fornecedor. Desse modo, mesmo que não seja a intenção do fornecedor em enganar o consumidor, estará caracterizada a publicidade enganosa. Não há, como já afirmado necessidade de que o consumidor tenha de fato sido enganado, mas basta a potencialidade disso.
Percebe-se que o parágrafo primeiro do art. 37, expressamente dispõe que a publicidade é enganosa quando induz o consumidor em erro sobre características e inclusive sobre a origem do produto. No caso da Diletto a enganosidade chegou a tal ponto que até os sócios foram supreendidos. Fábio Meneghini disse que, quando foi convidado para ser sócio na Diletto, Scabin lhe contou a mesma história que era divulgada pela marca, sobre a receita do avô italiano e só teria tomado conhecimento da mentira quando uma jornalista mostrou a certidão de nascimento do avô de Scabin. 5
Depois da reclamação realizada no CONAR sobre a história fictícia e a repercussão disso na mídia, a marca que estava presente em mais de 3.000 pontos de venda em 15 estados do país, incluindo também restaurantes e shoppings, além de quiosques próprios começou a sofrer danos à sua imagem, até quase sumir praticamente das prateleiras. De 2017 a 2020, houve uma tentativa de reestruturar a empresa. Mas não houve sucesso, e, quando a pandemia estourou em 2020, as vendas caíram em quase 90% em março. 6
A mentira contada pela marca em sua página na internet afetou a sua imagem perante os consumidores e também perante os investidores. Mesmo que os insumos tivessem origem estrangeira como narrado no storytelling, esse fato não foi suficiente para segurar a credibilidade da marca que já estava bastante abalada no mercado de consumo.
Referências
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1. Histórias contadas pelas marcas Diletto e Do Bem vão parar no Conar. G1. Disponível em: http://glo.bo/3ztGdjB. Acesso em 03.04.2023.
2. LEAL, Ana Luiza. Toda empresa quer ter uma boa história. Algumas são mentira. Revista Exame. Disponível em: https://bit.ly/3Me5C8A. acesso em 03.04.2023.
3. Representação nº 263/2014 – Autor: Conar mediante queixa do consumidor. Anunciante: Diletto. Relator: Conselheiro Eduardo Martins. Câmara: Quinta, sexta, sétima e oitava. Decisão: Alteração. Fundamentos: Artigos 1º, 3º, 27, parágrafos 1º e 3º, e 50, letra “b”, do Código. Resumo: Uma consumidora paulistana denunciou ao Conar o que considera ser publicidade enganosa presente em embalagem e site do sorvete Diletto. Lá, partindo de elementos do chamado story telling, conta-se que o sorvete segue receita formulada por Vittorio, avô do fundador da empresa e que seguiu na profissão depois de emigrar da Itália para o Brasil. Na embalagem e em outras propriedades da Diletto há fotos de Vittorio e do suposto caminhão usado por ele, bem como o ano em que chegou ao Brasil, além de detalhes da produção do sorvete e das matérias primas empregadas. Ocorre que o fundador da Diletto concedeu entrevista à revista Exame, informando que seu avô, ainda que fosse um imigrante italiano, chamava-se Antonio, chegou ao Brasil depois do que afirmava a embalagem do sorvete e que, por aqui, exerceu a profissão de jardineiro. Em sua defesa, a Diletto demorou-se em mencionar as ligações da empresa com a tradição italiana de produção de sorvetes, inclusive pelo uso de matérias primas vindas do exterior. No mérito, considerou que utilizou-se de recursos lúdicos. O relator não aceitou estes argumentos e propôs a alteração. “Grandes marcas carregam grandes histórias. Histórias verdadeiras de seus fundadores”, escreveu ele em seu voto, citando a Ford, a GE, a Disney, a Sony e a Apple. “Toda empresa quer ter uma boa imagem, quer ser lembrada e, claro, precisa vender para continuar existindo. As marcas buscam se destacar criando uma conexão emocional cada vez mais intensa com o consumidor através de histórias”. Para o relator, a técnica do story telling não é apenas uma ferramenta. “Estamos falando de um conceito que abrange grande parte das atividades humanas. O tempo todo, estamos cercados de narrativas e é impossível fugir disso”. No entanto, argumenta o relator, há uma questão importante a ser discutida: o nível de detalhes a que desce a construção da Diletto em torno da figura do “avô Vittorio”. “A questão mais sensível é o mercado cair no erro de confundir ser lúdico com ludibriante”, escreveu. “O encantamento e envolvimento emocional por meio da ludicidade não traz em si a prerrogativa de tentar, com isso, ludibriar as pessoas”. Por isso, o relator votou pela alteração da história presente na embalagem e site da Diletto, retirando as citações ao “avô Vittorio” e sua relação com a fabricação do sorvete, bem como a foto do caminhão dos anos 20. Seu voto foi aprovado por maioria. Disponível em: https://bit.ly/432Whqc. acesso em: 03.04.2023.
4. OLIVEIRA, Júlio Moraes. Curso de direito do Consumidor Completo. 8 ed. Belo Horizonte: D´Plácido Editora. 2022. p. 331.
5. TONDO, Stephanie. O que aconteceu com a marca que criou história falsa de seu sorvete. Uol. Disponível em: https://bit.ly/4122JMr. acesso em: 03.04.2023.
6. TONDO, Stephanie. O que aconteceu com a marca que criou história falsa de seu sorvete. Uol. Disponível em: https://bit.ly/3KaxMyy. acesso em: 03.04.2023.