A natureza-mercadoria e a crise socioambiental

A natureza-mercadoria e a crise socioambiental

aerial-view-small-village-country-roadside

Desde que o mundo é mundo e o ser humano passou a existir nele, desenvolvemos algum nível de negociação e trocas. O mercado, por este motivo, é uma das instituições mais antigas já criadas pela humanidade: se uma família produzia laranjas demais, nada mais legítimo que trocar o excedente por algo que lhe pudesse ser útil, como bananas, por exemplo. A troca é um pressuposto presente nas comunidades humanas.

No entanto, com a evolução humana e o desenvolvimento das tecnologias, passamos a modificar os elementos da natureza. Agregamos valor a ela ao transformá-la por meio do trabalho humano: uma laranja encontrada em uma laranjeira em meio à natureza, tem preço diferente de uma laranja desenvolvida em um laranjal de maiores proporções, com produção controlada, dentro de uma propriedade privada que funciona com insumos agropecuários e com mão de obra. Na primeira situação, temos o valor de uso desses elementos naturais. No segundo cenário, a laranja adquire um valor de troca, sendo então, transacionável nos mercados.

Não obstante, a natureza tem sido reinventada, para além dos elementos que utilizamos diretamente ou que funcionam como matéria-prima para produção de produtos. Estamos na era da invenção dos serviços ambientais, que têm sido transformados em mercadorias transacionáveis nos mercados em escala global.

As mudanças que tais transformações representam são profundas: se antes, o ar era considerado um bem fora do comércio, nos dias de hoje esta afirmação já não é possível de ser posta com tanta certeza: inventamos mercados que transacionam o direito de poluir a atmosfera terrestre (e os chamamos de “mercados de carbono”). Assim sendo, estamos negociando o direito ao ar puro?

A questão ambiental tem sido uma demanda que tem criado força a partir da segunda metade do Século XX, quando tragédias ambientais começaram a ser expostas e os efeitos de uma tecnologia destrutiva aos recursos naturais passaram a ser notados com maior frequência. Os desastres nucleares, os grandes derramamentos de óleo, os efeitos da mineração, o problema dos resíduos sólidos, a perda da biodiversidade, além da contaminação hídrica e atmosférica foram alguns dos fatores que desencadearam esta maior preocupação das comunidades humanas com relação ao meio ambiente.

De acordo com a ciência, grande parte dos problemas ambientais que temos vivenciado tem origem na interferência humana, que utiliza a natureza como fonte inesgotável de recursos e depositária de resíduos, perdendo-se o sentido real de seu existir: ser o substrato da vida – e desenvolvê-la em todas as suas formas.

O fato é que, tratar a natureza como mercadoria e lugar de dejetos é precisamente a conduta que nos trouxe até a situação que enfrentamos hoje. São crises hídricas, mudanças no clima, biodiversidade que vai desaparecendo e culturas que vão sendo desrespeitadas sempre que defendem a incolumidade do ambiente.

O processo de mercantilização da natureza é, portanto, o aprofundamento radical da inserção dos elementos naturais nos mercados. Não me refiro aqui à venda da laranja ou da banana que irá alimentar uma população, mas me refiro à falta de respeito que temos com relação a esse substrato da vida sempre que nossas atividades são executadas à revelia do equilíbrio ecológico.

A excessiva pressão contra os recursos naturais é algo que precisa ser repensado nas sociedades humanas que buscam algum grau de evolução. Trazer alternativas de produção sustentáveis e respeitosas frente aos ciclos da natureza é um passo válido. Mas será suficiente essa postura? Qual o limite para tornar mercadoria os processos naturais? Em que medida podem elas contribuir para o equacionamento da questão ambiental?

Voltemos ao exemplo dos mercados de carbono. Para aqueles que não estão familiarizados com o tema, os mercados de carbono são mecanismos construídos a partir de acordos internacionais criados para discutir as mudanças do clima e encontrar soluções para os problemas relacionados. Segundo tais mecanismos, há que se estabelecer “cotas de poluição” para os países, segundo seu grau de desenvolvimento: em tese, se precisam crescer mais que os demais, podem ter maiores “cotas” de poluição. Em compensação, os países considerados já desenvolvidos, devem poluir menos. Assim, pretende-se diminuir os níveis de emissão de gases de efeito estufa e, com isso, frear as mudanças do clima. Porém, cabe indagar: há possibilidade real de que tudo isso funcione?

Pensando lógica e racionalmente, até poderia funcionar. Porém, esses mesmos mecanismos preveem que os países mais ricos podem “comprar”, dos países menos desenvolvidos, seu direito de poluir Neste momento, a questão parece complicar um pouco já que os países não desenvolvidos possuem mais natureza preservada em razão de uma postura não destrutiva. Como poderia haver uma diminuição no balanço global de emissões quando um lugar menos desenvolvido cede ao mais desenvolvido o direito de poluir?

Por que nós, humanos, insistimos na transformação da natureza em mercadoria até mesmo quando queremos combater os efeitos desse mesmo processo? É como se incendiássemos uma floresta com gasolina e sugeríssemos usar mais gasolina para apagar o fogo: não há nenhum sentido nisso.

A transformação da natureza em mercadoria não ajuda na sua proteção. Para os mais voltados às teorias liberais, privatizar a natureza é a única forma de protegê-la, pois, “o que não é de ninguém não é cuidado por ninguém”. No entanto, devemos reconhecer que o aprofundamento dessa mercantilização dos elementos naturais é uma realidade presente ao longo da história. Ainda assim, inúmeros problemas ambientais continuam a ser contabilizados.

Diante desses questionamentos, pergunto-me: qual o papel do Direito diante desse processo? Como poderia colaborar na busca por soluções à crise socioambiental? Tenho dedicado minhas pesquisas à busca das respostas. Porém, o que observamos até o momento é que o Direito tem colaborado nesse processo destrutivo. Ainda que muitas iniciativas de proteção jurídica da natureza sejam observadas, também é verdade que há uma importante produção legislativa que busca mercantilizar ainda mais os elementos naturais.

Esperamos que, um dia, o Direito consiga incorporar uma proteção à natureza que vá além das necessidades mercadológicas e que se preocupe em tutelar o que realmente representa o conjunto dos elementos naturais: o substrato onde se desenvolve toda a vida.

____________________

Danielle de Ouro Mamed

 

Referências

________________________________________

Post Scriptum.: 1) Para saber mais sobre novas perspectivas jurídicas para a proteção da natureza, vale pesquisar sobre a recente abordagem do Direito Ecológico, que busca considerar a natureza em seu valor intrínseco;
2) Recentemente publiquei o livro de minha autoria “Natureza como mercadoria: da racionalidade moderna à (in)sustentabilidade ambiental”.

Compartilhe nas Redes Sociais
Anúncio