A prática abusiva de impor um mínimo de consumo para entregas por aplicativo

A prática abusiva de impor um mínimo de consumo para entregas por aplicativo

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O art. 39, I, da Lei n. 8.078/90, Código de Defesa do Consumidor, estabelece que é prática abusiva o fornecedor de produtos ou serviços condicionar o fornecimento de produto ou de serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço, bem como, sem justa causa, a limites quantitativos. Tal dispositivo aborda a denominada popularmente “venda casada.” Tal prática constitui a imposição de outro produto ou serviço para a aquisição de um deles. Exemplo bastante comum no mercado de consumo é quando uma instituição financeira, por exemplo, condiciona a abertura de conta corrente à adesão de um cartão de crédito, ou quando uma loja de departamentos condiciona ou impõe ao consumidor um seguro não obrigatório ou outro tipo de serviço ou produto não obrigatório.

Já tivemos a oportunidade de discorrer sobre o tema em artigo publicado no Conjur.1 Nesse texto, explicamos que o conceito de justa causa apresentado no artigo pode-se dar em várias situações nas quais o fornecedor poderia limitar quantitativamente os produtos ou serviços oferecidos ao consumidor. A primeira parte do inciso refere-se à popularmente denominada “venda casada”, bastante debatida na doutrina e jurisprudência; já a segunda parte do inciso aponta que o fornecedor realiza prática abusiva também quando condiciona o consumidor a limites quantitativos, sem justa causa. Essa segunda parte do inciso primeiro do artigo 39 ainda é tema de bastante controvérsia. 2

Poderia ser considerado como justa causa do art. 39, I, limitações quantitativas em função do interesse público, como escassez do produto, por exemplo. Situação que foi bastante comum na pandemia com relação ao álcool em gel e papel higiênico, dentre outros. Outro exemplo seria para se evitar concorrência desleal, a limitação de quantidade por CPF. As hipóteses são inúmeras e seria impossível elencá-las.

Mas e quando um aplicativo de entregas impõe um valor mínimo para entrega? Seria considerado prática abusiva?

A Justiça do Estado de Goiás entendeu que sim. O Ministério Público do Estado de Goiás instaurou inquérito civil público para apurar a conduta da plataforma iFood.  Segundo o órgão, o iFood impõe um valor mínimo de pedido para finalização das compras, o que configuraria prática abusiva. Em vários municípios, para se fechar uma compra de entrega de alimentos, o consumidor precisa atingir um determinado valor na plataforma para que o pedido seja fechado, às vezes independente da distância a ser percorrida. Na ação civil pública, o parquet afirmou que a exigência viola o Código de Defesa do Consumidor, pois coloca o consumidor em situação de desvantagem excessiva e limita sua liberdade de escolha.

O Ministério Público, em conjunto com a Defensoria Pública do Estado de Goiás e o Ministério Público Federal, expediram uma recomendação ao iFood para que a plataforma eliminasse a exigência de valor mínimo, permitindo que os consumidores adquirissem produtos independentemente do preço. No entanto, a recomendação não foi atendida, levando à judicialização do caso.

A plataforma alegou que alegou que atua apenas como intermediadora entre consumidores e estabelecimentos comerciais e que não impõe a exigência do pedido mínimo, deixando essa decisão a critério dos próprios restaurantes cadastrados. Sustentou, ainda, que a existência de um valor mínimo para pedidos visa garantir a viabilidade econômica da operação e que a plataforma disponibiliza diversas opções de estabelecimentos sem exigência de pedido mínimo, garantindo a liberdade de escolha ao consumidor. 3

A juíza do caso, Processo n. 5228186-13.2022.8.09.0051, rejeitou os argumentos da empresa e reconheceu a legitimidade do Ministério Púbico de Goiás para a ação, destacando que o caso envolve interesses coletivos e impacta um grande número de consumidores. A magistrada considerou que o iFood integra a cadeia de fornecimento de serviços, pois é responsável pelo funcionamento da plataforma e pelas regras aplicadas às compras. Assim, mesmo que a definição do pedido mínimo seja feita pelos restaurantes, a empresa responde solidariamente pelos efeitos da prática abusiva.

A juíza afirmou que, na prática, o valor mínimo do pedido força o consumidor a comprar mais do que deseja, caracterizando-se a denominada venda casada. Nesse sentido, merece destaque o trecho da decisão:

Apesar da ilusória possibilidade de escolha do consumidor e a sua abstrata liberdade nesta dita escolha, se ele pretende adquirir o produto no estabelecimento descrito no item 23 da peça da mov. 79, por exemplo, que custaria R$ 8,90 (trufa de brigadeiro), a compra final não seria possível, visto que o pedido mínimo é limitado a R$ 10,00, e o custo do eventual frete não é considerado para aferição do pedido mínimo.

Percebe-se, ainda, que a precificação de quase a totalidade dos estabelecimentos que possuem pedido mínimo, é nitidamente abusiva, quando a cobrança de um item de menor valor é, apenas, minimamente inferior ao limite mínimo exigido do pedido, forçando o consumidor, assim, a adquirir outros produtos que inicialmente não lhe era interessante.

O pedido mínimo, sendo pouco superior aos itens fornecidos, esclarece a abusividade da exigência de condicionamento de aquisição de produtos. Nesse prisma, restou configurado o condicionamento da aquisição de mais de um produto, sem justa causa, o que invalida a conduta da promovida, não sendo a tese de suposta infração à viabilidade econômica dos estabelecimentos causa suficiente para manutenção da ilegalidade. 1

 Com base nesses elementos, a magistrada determinou que o iFood remova gradualmente o pedido mínimo da plataforma, com uma redução escalonada a cada seis meses. Inicialmente para R$ 30,00 e, após períodos sucessivos, para R$ 20,00, R$ 10,00 e, finalmente, R$ 0,00, no prazo de 18 meses. O descumprimento da determinação sujeita a empresa à multa de R$ 1 milhão por etapa descumprida. Além de uma condenação por danos morais coletivos no valor de 5,4 milhões. Ademais, a juíza declarou nulas as cláusulas contratuais entre o iFood e seus parceiros comerciais que preveem a possibilidade de exigir valor mínimo nos pedidos. A decisão destaca que a plataforma, apesar de atuar como intermediária, tem responsabilidade solidária na cadeia de fornecimento.

Órgãos de defesa do consumidor comemoram a decisão afirmando que ela é um importante precedente para os consumidores de produtos e serviços de plataformas digitais em todo país e que essas mesmas plataformas desrespeitam reiteradamente os direitos do consumidores. Por outro lado, a empresa afirma que o pedido mínimo é uma estratégia legítima que antecede o surgimento das plataformas de delivery e que existe em todo o setor para viabilizar a operação dos estabelecimentos parceiros. Além disso, a empresa afirma que sem essa prática, os restaurantes seriam obrigados a pararem suas operações para realizar pedidos de pequenos itens do cardápio, como, por exemplo, um refrigerante e a proibição do pedido mínimo teria impacto na democratização do delivery, porque prejudicaria sobretudo pequenos negócios que dependem da plataforma para operar, além de afetar os consumidores de menor poder aquisitivo, uma vez que poderia resultar na restrição de oferta de produtos de menor valor e aumento de preços.

É interessante notar que o modelo de negócio não pode ser justificativa para violação aos direitos dos consumidores.

Nesse sentido, a decisão da Justiça de Goiás contra a empresa iFood representa um importante avanço na proteção dos direitos dos consumidores no Brasil. Ao estabelecer um precedente judicial favorável aos interesses dos consumidores, a medida reforça a necessidade de as empresas respeitarem as normas de transparência, qualidade e segurança nas relações comerciais. Este julgamento demonstra um compromisso crescente do sistema judiciário com a defesa dos direitos fundamentais dos consumidores, especialmente no contexto do mercado digital, que cresce de forma acelerada e exige maior regulação. Esse tipo de decisão não apenas valoriza o direito do consumidor, mas também contribui para a criação de um ambiente de negócios mais ético e equilibrado, estimulando outras empresas a adotar práticas mais responsáveis e a respeitar os direitos dos seus clientes. A decisão ainda cabe recurso.

 

Referências

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1. OLIVEIRA, Júlio Moraes. A relação consumidor-fornecedor e o conceito de “justa causa”. Disponível em: link acesso em 23.02.2025.

2. OLIVEIRA, Júlio Moraes. A relação consumidor-fornecedor e o conceito de “justa causa”. Disponível em: link acesso em 23.02.2025.

3. Nota da empresa: O iFood informa que a decisão não impacta a operação e que a possibilidade de os restaurantes estabelecerem o pedido mínimo está mantida. A empresa irá recorrer da decisão da Justiça de Goiás. O pedido mínimo é uma estratégia legítima que antecede o surgimento das plataformas de delivery e que existe em todo o setor para viabilizar a operação dos estabelecimentos parceiros. A prática garante a cobertura de custos operacionais dos restaurantes, assegurando a sustentabilidade dos negócios.Sem essa prática, os restaurantes seriam obrigados a pararem suas operações para realizar pedidos de pequenos itens do cardápio, como, por exemplo, um refrigerante. A empresa esclarece que o valor mínimo também é cobrado em pedidos feitos por telefone, WhatsApp e aplicativos dos próprios restaurantes.A proibição do pedido mínimo teria impacto na democratização do delivery, porque prejudicaria sobretudo pequenos negócios que dependem da plataforma para operar, além de afetar os consumidores de menor poder aquisitivo, uma vez que poderia resultar na restrição de oferta de produtos de menor valor e aumento de preços. Disponível em: link acesso em: 23.02.2025.

1. Trecho da Sentença do Processo n. 5228186-13.2022.8.09.00. de autoria da Magistrada ELAINE CHRISTINA ALENCASTRO VEIGA ARAUJO do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás. Poder Judiciário do Estado de Goiás 3ª UPJ das Varas Cíveis – Fórum Cível Comarca de Goiânia – 10ª Vara Cível. Disponível em: link.

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