Os saltos tecnológicos alteraram drasticamente a forma como se dá a relação humana. O “novo mundo” digital modulou uma nova esfera dinâmica do segmento laboral. Um modelo de negócio no qual as plataformas digitais – o comércio digitalizado – controlam por meio de algoritmos as relações de trabalho entre empresas e trabalhadores plataformizados.
Nesse contexto, sob influência do fenômeno da globalização, a rede de internet – instrumento essencial da tecnologia moderna -, concebeu a humanidade novas formas de interação, remodelando barreiras geográficas, sociais e culturais, permitindo que diversos povos se comunicassem sem sair de casa por meio de aparelhos eletrônicos.
Numa ótica capitalista, a economia de plataformas se dá pela base exploratória – redução dos custos de produção e mão de obra barata – objetivando o lucro. No Brasil, não é surpresa que 70% da classe trabalhadora celetista receba no máximo dois salários mínimos. A junção do movimento capitalista desenfreado e do fenômeno da uberização das relações de trabalho se põem na realidade de forma a dificultar a progressividade dos direitos trabalhistas.
Em uma parcela das plataformas digitais, como exemplo, a Uber e a 99POP, a relação de trabalho ocorre por meio de contrato de adesão no qual a lógica de “chefe de si mesmo” disfarça a transferência dos riscos e despesas do serviço prestado. Para Antunes1 essa estrutura criada para ser mais lucrativa para as empresas com a consequente flexibilização das relações laborais e redução de direitos trabalhistas representa a precarização do trabalho.
Nesse caso, há dificuldade em verificar a existência de elementos de sujeição clássica na relação entre empregado e empregador em vínculos originários das plataformas. No entanto, surge a ideia do controle algorítmico da plataforma que por meio de programações e dados realizam toda a direção do serviço prestado pelo “autônomo”, além de controlar em alguns casos, dependendo do tipo de plataforma digital, também os preços cobrados aos clientes e o percentual variável retido dos trabalhadores.
Esse sistema colide com os elementos formadores do conceito de empregador disposto no art. 2° da CLT. Na qual na relação clássica de emprego, o empregador é aquele que possui responsabilidade exclusiva pelos riscos do empreendimento, ou seja, é aquele que detém o dever de financiar o negócio – no caso, o trabalho -, e custear a manutenção do serviço prestado.2 É dessa lógica que direitos trabalhistas como o vale transporte e vale alimentação são concedidos.
Uma exceção a essa regra é o caso da modalidade de trabalho autônomo em que claramente há uma transferência do risco negocial para o prestador de serviço em troca de alguma autonomia laboral. É nessa categoria que as plataformas digitais tentam enquadrar seus “parceiros”. O grande problema, considerando o ponto de vista da modalidade de trabalho em questão, é que os trabalhadores plataformizados representariam uma nova espécie de colaborador autônomo, no qual há maior demarcação de elementos empregatícios como a pessoalidade e a habitualidade.
Quanto a subordinação, ainda considerando essa ótica autônoma, considera-se a existência de um “meio-termo” no qual o trabalhador uberizado não possui liberdade negocial3 e há características de parassubordinação na qual há uma linha tênue e sutil que separa as dimensões da sujeição e autonomia do plataformizado.4
O risco do negócio não pode ser utilizado como parâmetro definidor de vínculo empregatício por não se tratar de um pressuposto ou elemento da relação jurídica, e sim uma consequência contratual que dentro da análise fática pode ser realocada entre os polos.5
No entanto, esse efeito contratual pode ser objeto de verificação de reflexos de dependência na relação plataformizada. Se por um lado, o autônomo clássico detém capacidade para discutir seus contratos de prestação de serviço, os valores pagos, bem como é possível ratear custos do serviço contratado com o contratante – em regra, detentor de maior poder econômico -. Por outro lado o autônomo “moderno” – o trabalhador sob demanda em plataforma digital -, não possui capacidade para discutir seus contratos de prestação de serviço que ocorre por meio da modalidade de adesão, bem como não é capaz de definir o preço do serviço ofertado, além de assumir o risco quase que na totalidade do negócio, pagando percentual variável exclusivamente definido pela plataforma, custeando os gastos imediatos com combustível e os gastos mediados como serviço de rede de conexão, manutenção do veículo e do aparelho telefônico.
A demarcação do risco negocial do trabalhador parceiro das plataformas digitais de transporte é ainda mais visível pela insatisfação nos últimos três anos com a alta dos combustíveis no Brasil.6 Tal fato social expõe a dependência do motorista que não possui qualquer poder para ajustar os preços do serviço prestado em razão do aumento do custo decorrente da elevação de preço dos combustíveis, dependendo exclusivamente da plataforma que controla a precificação do serviço e quanto devem retirar de comissão variável.
Observa-se que nessa relação de motorista e plataforma não há uma troca razoável em que o trabalhador assume parcialmente certos custos da prestação do serviço e recebe em troca sua autonomia. Há abusiva inversão de responsabilidade pelos riscos do negócio sem, contudo, existir autonomia de fato compatível. O motorista absorve quase que totalmente os riscos da existência da relação jurídica e de forma contraditória, apesar de ser a parte que teoricamente recebe maior parcela do valor de cada viagem realizada,7 continua sendo a parte hipossuficiente economicamente da relação.
À título de amostragem, isso se justifica pelo fato do motorista, que por exemplo, na cidade de Salvador (Bahia) recebe em média R$ 1.506,00 por semana em jornada de 50 horas8 e média de 1.250 km percorridos9 e considerando que os modelos de veículos da linha Sandero é um dos carros mais utilizados na plataforma por trabalhadores e que sua versão mais econômica possui desempenho de 14 km por litro de combustível,10 em determinado mês como outubro de 2022 em que a média do preço do combustível foi de R$ 7,92,11 o trabalhador gastou em média cerca de R$ 697,00 com abastecimento e restou “lucro”, sem considerar todos os gastos mediatos, de R$ 808,81..
Em endosso, segundo a Uber12 entre o período de 2014 à 2020, houve repasse de 68 bilhões de reais para os motoristas parceiros no Brasil. Nessa época havia cerca de 1 milhão de trabalhadores vinculados, resultando numa média anual de R$ 68 mil reais por ano para cada – sem considerar os descontos decorrentes do risco do negócio -, valor menor que a soma do salário mínimo anual do mesmo período que equivale a R$ 76.392,00, desconsiderando o décimo terceiro recebido, o terço constitucional de férias e os depósitos do FGTS que demostrariam ainda mais a discrepância.
O risco negocial invertido é agravado pela impressão de descartabilidade do ser humano trabalhador que é visto como uma coisa avaliada por números que determinam se o número de cancelamentos e estrelas avaliativas resultarão no bloqueio unilateral, sem contraditório e aviso prévio do parceiro causando perdas financeiras imediatas e sem qualquer solução célere.13 Tudo isso em um cenário de competição e premiações por metas absurdas em jornadas exaustivas de 10-12 horas de trabalho – considerando, o tempo efetivamente trabalhado, ou seja, (1) deslocamento para buscar passageiro e (2) deslocamento até o destino do passageiro e o tempo de prontidão, considerado aquele em que o motorista “onlline” na plataforma aguarda por viagens.
Dentro de um movimento natural do capitalismo exploratório onde se busca lucro e alimenta a ideia de que o vínculo empregatício é o vilão do mundo do trabalho somente com o intuito de flexibilizar e precarizar direitos trabalhistas, a relação jurídica de trabalhador e plataforma digital se dá por uma forte inversão do custo negocial disfarçada de “pseudoautonomia” e volumosos ganhos que escondem prejuízos elevados que são capazes de manter o uberizado em um liame de precarização na prestação de serviço na qual sacrifica parte dos ganhos e sua força de trabalho para ter autonomia, quando na verdade é sutilmente controlado por uma política de gestão de preços unilateral e custos elevados de manutenção do serviço.
Não há compatibilidade entre a transferência do risco do negócio da plataforma digital para o trabalhador com a fantasiosa autonomia do prestador de serviço. A absorção da maioria dos custos existenciais e de manutenção da relação jurídica entre empresa e trabalhador é justamente o fator de desequilíbrio da suposta ausência de subordinação. É justamente por esse fato que o prestador de serviço que em tese recebe maior parte do serviço fornecido, permanece hipossuficiente e de fácil descarte para a plataforma que atua como acusador e juiz, aplicando punições e expulsões aos parceiros de maneira unilateral e em alguns casos de maneira sutil – reduzindo o número de serviços oferecidos -, por meio do seu “super gerente”, o algoritmo, no qual, ninguém que está subordinado a ele sabe como realmente funciona.
Referências
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1. ANTUNES, R. O privilégio da servidão. São Paulo: Boitempo, 2018.
2. DELGADO, M.G. Curso de Direito do Trabalho. ed. 18. São Paulo: LTr, 2019
3. BARROS, A. M. Curso de Direito do Trabalho. 5. Ed. São Paulo: LTr 2009. p. 289.
4. CASSAR, V.B. Direito do Trabalho. 8. Ed. São Paulo: Método, 2013. p. 249.
5. DELGADO, M.G. Curso de Direito do Trabalho. ed. 18. São Paulo: LTr, 2019
6. G1. c2023a. Motoristas por aplicativo fazem protesto contra aumento do preço da gasolina em Salvador pelo 4° dia consecutivo. Disponível em: site. Acesso em 04 mar. 2023.
G1. C2023b. Motoristas e entregadores de app protestam contra aumento de combustível e cobram reajuste de remuneração. c2023b. Disponível em: site. Acesso em 04 mar. 2023.
ISTO É. Colaboradores de aplicativos estão em pé de guerra com as marcas: alegam que são mal remunerados. Disponível em: site. Acesso em 04 mar. 2023.
CORREIO DO POVO. Em protesto pelo aumento dos combustíveis, motoristas de aplicativo prometem parar no dia 5. Disponível em: site. Acesso em 04 mar. 2023.
7. UBER. Oportunidades flexíveis para dirigir pelo app da Uber. c2023a. Disponível em: site. Acesso em 01 abril 2022.
8. UBER. Quanto é possível ganhar com a Uber? c2023b. Disponível em: site. Acesso em 04 mar. 2023.
9. MOTORISTA ELITE. Você sabe quantos quilômetros um Uber roda por dia? Disponível em: site. Acesso em 05 mar. 2023.
10. UOL. Carros Uber: veja os 5 preferidos pelos motoristas do app. Disponível em: site. Acesso em 04 mar. 2023.
11. CORREIO. Preço médio da gasolina se aproxima de R$ 8 em Salvador e assusta consumidores. Disponível em: site. Acesso em 04 mar. 2023.
12. UBER. UBER. c2022d. Disponível em: site. Acesso em 14 abr. 2022.
13. FRANCO, T; DRUCK, G; SILVA, E. As novas relações de trabalho, o desgaste mental do trabalhador e os transtornos mentais no trabalho precarizado. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, V. 35, n. 122, p. 229 – 248, 2010.