Diante da execução brutal do congolês Moïse Kabagambe, na Barra da Tijuca/RJ, fomos provocados/as pela seguinte questão: a quem serve o racismo antinegro e a produção do corpo público? Inicialmente, é importante colocar em perspectiva o que é o racismo antinegro e os modos pelos quais ele se articula desabilitando a presença política e a possibilidade de vida de sujeitos negros, brasileiros e estrangeiros. A partir desse prisma, vale a pena compreender como esse sistema de gestão dos corpos, bem como dos espaços de vida e de morte sustenta uma imagem pública e injuriosa de sujeitos negros, como forma de autorizar e justificar a sua destruição.
A despeito do que circula no imaginário social brasileiro constituído pelas teses da democracia racial ou da cordialidade entre as diferenças, o processo de racialização e de demarcação dos espaços político-sociais está atravessado por um interesse de subordinação e deterioração da presença de sujeitos negros nos lugares de reconhecimento. Assim, somos herdeiros/as de uma memória colonial que compõe, não só as imagens de mundo favorecendo a naturalização das precariedades vinculadas aos sujeitos negros, mas reforçando a manutenção de poder e privilégio cultural, epistêmico, político e econômico associado à branquitude.
Assim, enfrentar o racismo antinegro e o lastro de brutalidade que ele assevera significa, de modo profundo, refutar as bases ideológicas que realocam insistentemente os nossos corpos e presenças em lugares vulnerabilizados, um registro econômico e político que se beneficiou da escravização de pessoas negras e que se refaz mantendo esses sujeitos em lugares espúrios, associados à desigualdade e, por fim, cria e mantém o silêncio epistêmico cultural da população negra, ratificando uma descrição objetificada, que ecoa da modernidade até aqui.
É preciso pontuar que o racismo antinegro ocorre por meio dessa ideologia colocada em prática pelos instrumentos de poder. Desta feita, ao tratarmos do racismo e de sua violência, nos deparamos de forma objetiva com as instâncias de poder. O poder, nesse sentido, denota
[…] o desdobramento de uma série de efeitos sobre o mundo social no qual se vive. Pessoas que são poderosas afetam e podem afetar mais que aquelas que não são. O alcance tanto geográfico quanto político de seus poderes pode parecer sem limites. O outro extremo é a impotência social, que prende indivíduos em seus corpos, que os exclui de atividades não dependentes de força […] A consequência disso é a realidade vivida ou fenomenológica existencial de experienciar um “aqui” e um “lá”. O poderoso é mais efetivo lá, que inclui o aqui de outras pessoas.1
Essa articulação dos espaços sociais entre o nós versus os outros, fruto de um poder manipulado e mantido pela branquitude, enquanto sistema de poder, deixa entrever que as nossas relações sociais são fundamentadas pelas normas, valores e sentidos que ecoam as máximas coloniais, isto é, uma gestão dos corpos, espaços sociais e simbólicos, a partir da sedimentação da subjetividade negra. É preciso grifar que essa prática de poder produz a imagem de um “corpo público”2 , isto é, esvaziado, em máxima potência, de sua humanidade.
As políticas de extermínio se beneficiam desse esvaziamento, pois promovem o aniquilamento imagético a fim de justificar a barbárie na experiência da vida social. A execução de Moïse Kabagambe, no alto da brutalidade, revela a disposição do racismo, em aliança com outros sistemas de poder, para suplantar a vida, destruir o status político e desautorizar a existência dos sujeitos negros.
Vemos, nesse sentido, que o racismo antinegro e a produção do corpo público servem àqueles que se beneficiam da violência e da manutenção de valores, normas e sentidos que mantêm vidas negras vulnerabilizadas. Assim, é preciso que a revolta, o incômodo e a desnaturalização da violência sejam as forças que nos façam seguir na direção de uma sociedade que não se petrifica diante da morte normatizada como um destino para sujeitos lidos e publizados como os outros. A nossa solidariedade à família de Kabagambe e de todas as famílias que tiveram os seus filhos/as/es tombados/as/es por uma sociedade que dissimula o racismo e a sua perversidade.
____________________
Referências
________________________________________
1. GORDON, Lewis R. Antropologia filosófica, raça e a economia política da privação de direito. In: COSTA, Joaze Bernardino; TORRES, Nelson Maldonado; GROSFOGUEL Ramón. Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica, 2020, p. 114.
2. TEIXEIRA, Thiago. Decolonizar valores: ética e diferença. Salvador: Devires, 2021, p. 57.