A raça como técnica: objetivação, recreação e esvaziamento

A raça como técnica: objetivação, recreação e esvaziamento

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A raça opera na construção de uma realidade política ancorada no interesse em criar barreiras radicais entre a humanidade e a desumanidade. As suas implicações são produtos de articulações tecnopolíticas, históricas e ideológicas que tencionam, de forma sistemática, usurpar a humanidade de sujeitos, a fim de que se justifique a violência e a exploração multidimensional da sua presença. O projeto de racialização, enquanto forma e gestão política da destruição, fabrica os mecanismos simbólicos e objetivos que incidem contra grupos sociais sinalizados à distância da norma, nesse caso, constituída pelas engrenagens da branquitude — sistema que se centraliza na associação direta entre humanidade e brancura, mitigando qualquer possibilidade de legitimidade fora desse pacto racial.

O racismo, modus operandi das técnicas de racialização, produz nas cenas políticas o corpo-objeto. Essa presença oscila invariavelmente entre a exploração do trabalho, a humilhação pública pelo estereótipo e a hiperssexualização do corpo que é submetido — sem o constrangimento de quem manipula essa imagem — aos interesses de objetificação dos sistemas de poder que se nutrem de sua desumanização. Logo,  trata-se de uma prática de poder que se regula na construção permanente da desumanidade ao fechar o cerco contra corpos racializados, fazendo com que a sua presença seja asfixiada para garantir a continuidade de valores, normas e imagens de mundo tecidas na brancura e nos demais paradigmas de humanidade alicerçados na exclusão.

Ao esvaziar a humanidade de corpos racializados, a branquitude, como uma ideologia perversa de manutenção de poder, reitera uma memória colonial que fez com que se naturalizasse, com esforço brutal, imoral e incivilizado, a transmutação de corpos negros — como extensão de suas investidas coloniais — em sua propriedade.

É nesse sentido que a recreação entra em cena. O complexo que se alicerça na memória colonial, no interesse vertiginoso de desumanização e na espetacularização da violência contra corpos racializados é, no fim das contas, uma das armas mais vis das políticas discriminatórias, pois faz sangrar por meio de discursos que supostamente não têm impacto social negativo, como o humor, por exemplo. Todavia, todo discurso tem vinculação direta com a realidade, inclusive valorativa e, por essa razão, pode fazer aventar inúmeras violências estruturais. O mote que norteia essa reflexão não trata do humor como um problema em si mesmo, mas de sua possibilidade discursiva de difundir, naturalizar e banalizar o escarnio público de corpos historicamente humilhados pelas políticas, ou melhor, pelas necropolíticas que se ocupam de organizar a realidade entre quem pode viver e quem, numa dimensão diametralmente oposta, deve ser reiteradamente anunciado como morto. Fazer morrer — o cerne das políticas de extermínio na contemporaneidade — depende, entre inúmeros fatores, da construção de uma relação sem afetação, onde o corpo estigmatizado, quando tombado, não enluta, pois nunca foi visto como humano.

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