No Código de Defesa do Consumidor é possível enxergar duas órbitas distintas, embora não absolutamente excludentes.
A proteção da incolumidade físico-psíquica do consumidor, que protege sua saúde, segurança, protegendo sua vida e integridade contra os chamados acidentes de consumo; e a segunda órbita, a incolumidade econômica do consumidor, que protege aspectos econômicos, como variações de quantidade, qualidade, preço etc. Afeta o bolso do consumidor. São os chamados incidentes de consumo.
Elas não são excludentes e, muitas vezes, nos casos concretos, a incolumidade físico-psquíca acabará refletindo em um prejuízo econômico para o consumidor.
O conceito de vício está atrelado à qualidade do produto, seu elemento básico é a carência de adequação ao fim a que se destina. Enquanto na responsabilidade pelo fato do produto ou serviço a preocupação maior é com a segurança, na responsabilidade pelos vícios do produto ou serviço a preocupação maior é com a real adequação. Aqui, o CDC aborda as situações do ar-condicionado que não esfria, a TV que não liga, o aparelho de celular que não emite som etc.
O conceito de vício do produto no CDC é bem mais amplo do que no Código Civil. O Código de Defesa do Consumidor estabelece três espécies de vícios: vício que torne o produto impróprio para o consumo; vício que diminua o valor e vício decorrente da disparidade das características dos produtos com a sua oferta e publicidade.
O art. 18 estabelece que “os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com as indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas”.
O vício de qualidade do produto ou serviço decorre da ausência de adequação do produto ou serviço às suas finalidades. 1
Com relação aos vícios do produto, o CDC, no art. 18, § 1º, estabelece a seguinte regra, antes das opções disponíveis ao consumidor: “Não sendo o vício sanado no prazo máximo de trinta dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: I – a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso; II – a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; III – o abatimento proporcional do preço”.
Ao estabelecer a possibilidade de conserto do vício pelo fornecedor, no prazo de 30 dias antes do exercício do direito potestativo, o CDC criou uma regra divergente. Esse prazo de 30 dias pode ser reduzido ou ampliado, respectivamente, para 07 até 180 dias, e ser afastado se o produto for considerado essencial ou se a substituição das partes viciadas puder comprometer a qualidade do produto ou diminuir-lhe o valor (§ 3º do art. 18). Cabe ressaltar que esse prazo de 30 dias não se aplica quando o vício for decorrente de disparidade com a oferta ou publicidade ou quando do vício de quantidade; nessas hipóteses, o consumidor pode fazer uso imediato de seu direito potestativo.
Outro aspecto importante sobre as opções do art. 18, § 1º, é que se o produto tiver um outro vício, diferente daquele primeiro, é um indício de que é um produto ruim, e, nesse caso, atrai a aplicação do art. 18, § 3º, isto é, o consumidor terá a opção de usar imediatamente a tríplice alternativa do artigo mencionado.
Ademais, mesmo que haja a possibilidade do prazo de 30 dias para o fornecedor sanar o vício do produto, o consumidor pode exigir a reparação de seus direitos no Judiciário pelo prazo que ficou privado do uso desse produto.
O STJ acolheu o entendimento de que é cabível indenização por dano moral quando o consumidor de veículo zero-quilômetro necessita retornar à concessionária por diversas vezes para reparo de defeitos apresentados no veículo (AgRg no AREsp 692459/SC, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 16/06/2015, DJE de23/06/2015), Também o (AgRg no AREsp 453644/PR, Rel. Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 21/05/2015, DJE de 22/06/2015), (AgRg no AREsp 672872/PR,Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 26/05/2015,DJE 10/06/2015) e (AgRg no AREsp 533916/ RJ,Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Terceira Turma, julgado em 05/05/2015,DJE de 11/05/2015).
Bom, diante desse entendimento do Superior Tribunal Justiça, como fica a situação caso o consumidor opte por pela opção do inciso II, ou seja, a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos?
A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao reformar um acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) que, em execução de ação redibitória julgada procedente, negou o pedido de devolução de um veículo à empresa vendedora, mesmo após ela ter restituído à consumidora os valores pagos na compra, em razão de defeitos que foram comprovados no processo. Nas relações de consumo, quando há reconhecimento de vício que torne o bem adquirido impróprio para uso e o vendedor restituir o dinheiro ao consumidor, também é necessária a devolução do bem após a rescisão do negócio, de forma que as partes retornem ao estado anterior à celebração do contrato. Do contrário, há ofensa ao princípio da boa-fé objetiva e à vedação do enriquecimento sem causa.
O relator do REsp 1.823.284 , no STJ, ministro Paulo de Tarso Sanseverino, afirmou que, havendo vício que torne o produto impróprio para o uso, o Código de Defesa do Consumidor assegura ao comprador, entre outras opções, o direito à rescisão do contrato. Nessa hipótese – afirmou –, com a extinção do vínculo contratual, as partes retornam ao status anterior. Nesse sentido o relator afirmou que “acolhida a pretensão redibitória do consumidor, rescinde-se o contrato de compra e venda, retornando as partes à situação anterior à sua celebração (status quo ante), sendo uma das consequências automáticas da sentença a sua eficácia restitutória, com a restituição atualizada do preço pelo vendedor e a devolução da coisa adquirida pelo comprador”.
Além de ressaltar o princípio da boa-fé nas relações de consumo – tanto dos adquirentes quanto dos fornecedores –, o ministro Sanseverino destacou que os artigos 884 e 886 do Código Civil vedam o enriquecimento sem causa. “Por tudo isso, constitui obrigação da consumidora recorrida a devolução do veículo viciado à fornecedora recorrente, sob pena de afronta ao artigo 884 do Código Civil, vez que o recebimento da restituição integral e atualizada do valor pago, sem a devolução do bem adquirido, ensejaria o enriquecimento sem causa do consumidor”, concluiu o ministro.
Esse entendimento é bastante justo do ponto de vista do fornecedor, uma vez que o veículo, mesmo com vício, pode ser consertado e revendido a outros consumidores, e o valor de um veículo usado é um valor considerável. Agora, do ponto de vista do consumidor, isso o obriga a ficar com o veículo até a o final da ação. Sabe-se que o um processo judicial no Brasil demora um tempo absurdo, às vezes 10 anos, 15 anos ou até mais. Imagine-se em uma situação em que você se encontra com um veículo, sem uso, por esse longo período de tempo. Além da desvalorização do bem pelo tempo, muitas vezes, esse consumidor só possui um veículo para se locomover. A situação é extremamente delicada do ponto de vista do consumidor. Mesmo o STJ entendendo que a restituição é pelo valor do bem na época em que foi adquirido, (REsp. n. 2.000.701.) sem nenhum abatimento a título de desvalorização pelo tempo de uso, tal fato não elimina o transtorno de ter que ficar com um produto que só trouxe desgosto, por anos e anos, até o fim do processo.
Nesse mesmo Recurso Especial, a ministra salientou que, conforme se extrai dos autos, a consumidora só permaneceu com o produto porque ele não foi reparado de forma definitiva nem substituído. “Não se pode admitir que o consumidor, que foi obrigado a conviver, durante considerável lapso temporal, com um produto viciado – na hipótese, um veículo zero quilômetro –, e que, portanto, ficou privado de usufruir dele plenamente, suporte o ônus da ineficiência dos meios empregados para a correção do problema”, declarou a relatora.
A própria Terceira Turma do STJ, encontrou uma saída quando o consumidor não fica o produto até o fim do processo. É o que foi decidido no REsp. n. 1.982.739, de relatoria da Ministra Fátima Nancy Andrighi. Nesse processo, o juízo de primeiro grau determinou a substituição do carro por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso, bem como condenou a concessionária e a fabricante por danos materiais e morais. Em virtude da alienação do veículo, antes do trânsito em julgado, o Tribunal de Justiça de Mato Grosso converteu a obrigação de fazer em perdas e danos. A relatora ponderou que, em razão da alienação do veículo, a consumidora já foi parcialmente restituída da quantia que gastou para adquirir o veículo viciado, de modo que a restituição deverá corresponder à diferença entre o valor de um produto novo na data da alienação a terceiros e o valor recebido nesta transação.
Referências
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1. OLIVEIRA, Júlio Moraes. Curso de Direito do Consumidor Completo. 10 ed. Belo Horizonte/São Paulo: Editora D’Plácido. 2024. P. 294-297..