Finalmente a lei enxergou o que você sempre soube: abandono dói. Essa frase impacta porque resume algo que muitas famílias sentiram, viveram ou tentaram ignorar — e agora, juridicamente, não pode mais ser ignorado.
Quando o pai não liga no aniversário, quando a mãe inventa desculpas porque o outro genitor “está ocupado”, quando a criança sorri para esconder a espera — esses silêncios ganham agora contornos normativos: não são apenas “problemas familiares”, são uma violação de dever.
Com a Lei 15.240/2025, o abandono afetivo deixa de ser um tabu invisível e passa a estar expressamente definido no Estatuto da Criança e do Adolescente. Isso significa que o afeto, o convívio, o acompanhamento psicológico, moral e social da criança ou adolescente ganham a força de direitos e deveres legais — não mais meramente morais ou socioculturais.
O que significa “ser pai/mãe” na modernidade? Não basta prover. É preciso relacionar‑se. E esse “relacionar‑se” inclui acompanhar, questionar, dialogar, punir, amar, participar.
Quando a ausência se faz presente de tantos modos (ausência física, silêncio, ausência de interesse, de diálogo, de reconhecimento) quem paga o preço? A criança ou adolescente. E agora a lei identifica esse preço como dano possível de reparação.
A cultura da “responsabilidade apenas financeira” — da pensão alimentícia como exclusivo dever — talvez precise ser revista. A nova regra amplia esse dever para a “responsabilidade afetiva”.
O que será da prática advocatícia? Serão necessárias perícias, laudos psicológicos, provas da omissão, provas da solicitação da criança e da impossibilidade de atendimento, distinção entre negligência culpável e distanciamento justificável. O trabalho técnico‑jurídico deverá ajustar‑se.
E no âmbito social? A lei envia uma mensagem: crianças e adolescentes têm direito ao afeto, ao contato, à presença. A omissão emocional importa. A sociedade deve mudar a lente sob a qual avalia relações familiares.
Finalmente: e o genitor que “culpa a mãe” ou “culpa o tempo”, ou “culpa que vivemos separados”? Isso muda. A lei não entra em “culpas” subjetivas isoladas, mas em deveres legais. Se havia uma relação de guarda, visitação, se havia meios de convívio, se a criança solicitou e o genitor não respondeu — poderá haver responsabilidade.
O que muda de fato com a Lei 15.240/2025:
Para muitos advogados de família, era comum ver decisões judiciais que reconheciam indenização por abandono afetivo — embora sem base legal expressa no ECA — com base no entendimento de deveres parentais, responsabilidade civil e dano moral.
Agora essa base deixa de ser apenas jurisprudencial ou doutrinária e passa a estar expressa na lei. Dessa forma a nova lei trouxe:
- Reconhecimento formal: A lei altera o ECA para considerar o abandono afetivo como conduta ilícita civil. Ou seja: uma omissão afetiva deixa de ser apenas “uma falha de cuidado” para ser “uma violação legal”.
- Dever dos pais de prestar assistência afetiva: No art. 4º do ECA, agora consta que “compete aos pais, além de zelar pelos direitos … prestar aos filhos assistência afetiva, por meio de convívio ou de visitação periódica, que permita o acompanhamento da formação psicológica, moral e social da pessoa em desenvolvimento.” Em resumo: não basta prover sustento material, guarda ou educação — é necessário afeto, presença, diálogo, convivência.
- Definição de assistência afetiva: A lei traz uma definição concreta para “assistência afetiva”, que engloba:
- orientação quanto às principais escolhas educacionais, profissionais e culturais;
- solidariedade e apoio em momentos de intenso sofrimento ou dificuldade;
- presença física espontaneamente solicitada pela criança ou adolescente, quando possível de ser atendida.
- Consequências jurídicas: O abandono afetivo, agora considerado ilícito civil, permite reparação de danos — ou seja, a criança ou adolescente (ou quem detenha a tutela de seus direitos) poderá pleitear indenização civil, além de outras sanções cabíveis.
- Amplo alcance: A lei não se limita a penalizar, mas reafirma que a assistência afetiva é direito da criança e do adolescente e dever dos pais, em consonância com o princípio da proteção integral contido no ECA.
A mudança legislativa representa um choque simbólico e prático. Simbólico porque transforma algo que tradicionalmente era tratado como “questão privada de família” em matéria de interesse público e de responsabilidade jurídica. Prático porque pode impactar litígios de família, reivindicações de indenização, acompanhamento psicológico, perícias para comprovar dano moral e psicológico e reconfiguração de papéis parentais.
Para as famílias — em especial para as mães que assumiram sozinhas a luta da presença pelo outro genitor — é um marco de reconhecimento e de esperança de reparação. Quantas vezes perguntaram ao filho ou filha: “Por que ele nunca vem te ver?”, “Por que ele não pergunta como foi a sua semana?”, “Por que ele não me liga nem no seu aniversário?” — e não tinham resposta. Agora a lei diz: “Esse silêncio pode ferir, e você pode buscar reparação”.
Mas é também incômodo porque enfrenta resistências: há quem tema “judicializar afetos”, “transformar relações familiares em litígios”, “abrir um precedente perigoso”. E, de fato, surgem perguntas: como provar o abandono afetivo? Qual será o parâmetro de “assistência afetiva suficiente”? Qual será o papel das perícias psicológicas? Como distinguir ausência justificável (família afastada geograficamente, dificuldades financeiras, separações complexas) de omissão grave?
Para que essa nova norma seja efetiva e justa, algumas questões práticas merecem atenção:
- Prova da solicitação de convivência ou visitação: A lei exige que a assistência afetiva seja prestada “por meio de convívio ou de visitação periódica, que permita o acompanhamento da formação psicológica, moral e social da pessoa em desenvolvimento”. Será essencial comprovar que a criança ou adolescente manifestou esse desejo ou ao menos a possibilidade existia.
- Prova da ausência de possibilidade justificável: O genitor pode alegar que, por questões de trabalho, saúde, mudança de domicílio, não conseguiu conviver. A defesa pode alegar falta de culpa. O advogado deve preparar estratégia para demonstrar se a omissão foi culposa ou inevitável.
- Avaliação de dano moral/psicológico: Ainda que a lei registre a conduta ilícita, será necessário avaliar os danos sofridos. Laudos psicológicos, histórico escolar, depoimentos, contexto familiar serão relevantes.
- Articulação com obrigação de sustento, guarda e educação: A nova regra não “substitui” as obrigações já previstas (sustento, guarda, educação) — ela se soma. Ou seja, o genitor já havia deveres e agora soma‑se dever afetivo. A advocacia de família deverá revisar contratos de visitação, pensão, deveres de convivência.
- Prescrição e efeitos temporais: Como toda ação civil, será necessário verificar prazos e eficácia da lei no tempo. Antes da promulgação os entendimentos eram diversos. Agora, com a norma, abre‑se novo campo, mas a jurisprudência levará tempo para se consolidar.
- Educação preventiva: Para famílias em que ainda não ocorreu litígio, recomenda‑se que os acordos de guarda contemplem expressamente a assistência afetiva — visitas regulares, participação em reuniões escolares, suporte emocional, etc.
A Lei 15.240/2025 marca um passo além no reconhecimento dos direitos das crianças e adolescentes: o direito de serem assistidos afetivamente, o direito de ter um genitor que vai além dos cheques e comparecimentos condicionais, que está presente de corpo, mente e afeto — ou que, ao menos, responde por sua ausência.
Para as advogadas e advogados de família, abre um campo renovado: litígios em que a responsabilidade civil por omissão afetiva passa a estar expressamente amparada por lei; assessoria preventiva para reorganização de convivência; redação de acordos com cláusulas claras sobre assistência afetiva; acompanhamento psicológico integrado à tutela jurídica.
Para as famílias e para as crianças, a mensagem é clara: não é normal que o genitor “apareça de vez em quando”; não é aceitável que o afeto seja simplesmente opcional ou terceirizado; não é apenas sobre dinheiro — é sobre presença. E se o genitor escolhe não estar — você, mãe, ou cuidador, ou criança — saberá que agora há norma, respaldo jurídico e possibilidade de reparação.
A verdadeira mudança cultural começa no reconhecimento: “Eu importo, e não sou invisível”. E a sociedade começa a olhar diferente: “O afeto não é luxo — é direito”.
Referências
____________________
https://www.gov.br/planalto/pt-br/acompanhe-o-planalto/noticias/2025/10/sancionada-lei-que-caracteriza-o-abandono-afetivo-de-criancas-como-ilicito-civil
https://www.migalhas.com.br/quentes/443318/abandono-afetivo-passa-a-ser-ilicito-civil-no-estatuto-da-crianca
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2025/Lei/L15240.htm



