Nossas investidas se localizam na compreensão ético-política da violência e dos seus desdobramentos. É possível observar que as modulações socioculturais modernas e contemporâneas se ancoram na formulação bélica do inimigo. As normas, nesse prisma, estão diretamente ligadas às forças de comparação e de rebaixamento, isto é, no instante em que grupos hegemônicos articulam a partir de si as cenas políticas, constroem, concomitantemente ao seu posicionamento central e supremacista, as imagens de rebaixamento dos corpos significados — à distância dos seus paradigmas asfixiantes e pactos restritivos — como os outros.
A construção política do outro, bem como o seu interesse pela gestão do corpo, faz com que os sujeitos que constrangem as ideologias moduladas na compulsoriedade da norma ciseterossexual sejam designados historicamente como desviantes ou anormais. O que não se questiona, por vezes, é o caráter perverso da norma que, ao grifar o seu contraste, busca justificar toda a sorte de violência contra os corpos marcados, a fim de que não se perceba a belicosidade imoral do sujeito normativo. Os princípios regulatórios do gênero e da sexualidade estão diretamente ligados, uma vez que: ambas as categorias são inscritas na ordem político-social; no interior desses sistemas são fornecidos instrumentos para que reconheçamos [ou não] quais vidas são legitimas. A cisgeneridade e a heterossexualidade são imbricadas às rotas políticas de validação e de invalidação dos corpos e, ao mesmo tempo, funcionam como parâmetros regulatórios que conferem humanidade, dignidade, liberdade e possibilidade. Todas as presenças que escapam esse eixo político de legitimação dos corpos são transformadas em alvos. Elas são transmutadas em carnes, uma vez que a carne, ao contrário do corpo, pode ser facilmente neutralizada, gerenciada e consumida para nutrir grupos hegemônicos.
Para nós, é preciso destacar que o ódio à população LGBTQIAPN+ é, na verdade, fruto de uma operação histórica, política, moral, médico-científica, epistêmica e estética, que faz com que sujeitos sejam deliberadamente rebaixados, silenciados e não enlutados. Assim, ao recusarmos as tentativas de justificar a violência num incômodo contingente, nós assumimos que as faces virulentas são, na verdade, produtos das relações de poder articuladas para consolidar um ethos amplamente hostil contra identidades comparadas e descritas como dissidentes.
Assumimos que a produção desse maquinário genocida que tomba ostensivamente corpos LGBTQIAPN+, que silencia os seus saberes, que os encerra às margens políticas, econômicas, culturais e que mitiga, na economia dos afetos, a sua humanidade, é, na verdade, fruto de um projeto político de aniquilamento: a ciseterobrutalidade. Ela, permite que nos afastemos de qualquer posição que julga, no interior das dissimulações políticas, que a violência é um destino. Ao compreendermos, por meio dos exercícios éticos e antidiscriminatórios, que os seus empreendimentos são produtos das interações pactuais entre grupos hegemônicos, somos convocados/as/es a reestabelecer, através das alianças políticas que se deslocam da margem ao centro, novos arranjos de poder, novas cenas sociais, sobretudo, marcadas pela recusa da banalização de vidas LGBTQIAPN+ e de outras identidades esfaceladas pelos estatutos normativos da ciseterobrutalidade branca, masculina, capacitista, misógina e privilegiada em classe e território. A ético-política das alianças aciona uma posição de permanente insurgência e corrói engrenagens de poder que promovem, gerenciam e se beneficiam das execuções [simbólicas e concretas] de grupos precarizados pela norma de gênero e de sexualidade.