A Lei 14.713/23, sancionada pelo Presidente da República com entrada em vigor em 30/10/23, alterou o artigo 1584, parágrafo segundo do Código Civil, cuja redação passou a ser no sentido de que, quando não houver acordo entre a mãe e pai quanto à guarda do filho menor, encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda da criança ou do adolescente ou quando houver elementos que evidenciem a probabilidade de risco de violência doméstica ou familiar.
Já quanto ao Código de Processo Civil, houve acréscimo do artigo 699-A o qual preconizou que nas ações de guarda, antes de iniciada a audiência de mediação e conciliação de que trata o artigo 695 do Código, o juiz indagará às partes e ao Ministério Público se há risco de violência doméstica ou familiar, fixando prazo de 5 (cinco) dias para apresentação de prova ou de indícios pertinentes.
De plano, observa-se a alteração do texto legal inserto no parágrafo segundo do artigo 1584 do CC e criação de novo dispositivo no CPC, artigo 699-A. Mas qual o alcance de tais normas e as premissas que ensejaram as aludidas alterações legislativas?
No que pertine ao artigo 1584, parágrafo segundo do CC, a sistemática de adoção da guarda compartilhada como regra subsistiu em nosso ordenamento jurídico, tendo por exceções a impossibilidade objetiva de exercício de guarda compartilhada por um dos genitores – já que a efetivação do poder parental , da qual decorre atribuição de guarda, não é mera faculdade mas múnus e portanto, não se trata sequer em tese de “ausência de desejo quanto à guarda” – ou se estiverem presentes elementos que evidenciem probabilidade de risco de violência doméstica ou familiar.
Aqui, impõe-se análise mais detida.
Nos moldes do texto do dispositivo, tem-se como possível a interpretação de que o risco de violência doméstica ou familiar pode albergar como vítima potencial tanto o filho menor (criança ou adolescente) como a genitora do último , pressuposta a convivência, em decorrência da descrição não limitada da vítima de violência doméstica e familiar.
Podemos argumentar que em se tratando de norma de natureza restritiva de direitos, inviável a interpretação de cunho extensivo. Porém, a ilação supra referida não se aparta da percepção, em primeiro lugar, que a expressão “violência doméstica ou familiar” encontra definição tanto na Lei Maria da Penha como na Lei Henry Borel. Mas não é só. Como sabemos, os diplomas legais são promulgados após tramitação regular nas casas legislativas sob iniciativa de projetos de parlamentares, os quais atendem os anseios de seus respectivos eleitorados. De ver-se que são observados hodiernamente diversos movimentos no plano político e inclusive, no meio jurídico,em sentido refratário à disciplina do direito de convivência entre incapazes e seus ascendentes, inaudita altera parte em regra, nas hipóteses em que há vigência de medida protetiva em prol da genitora dos referidos incapazes, com a qual os mesmos coabitam. Tais fenômenos, outrossim, derivam da igualdade formal entre gêneros diversos no seio social que culminam em índices alarmantes de violência doméstica e familiar contra mulheres, com aumento da proporção de feminicídios em território nacional, de modo preocupante. A propósito do tema, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, após analisar boletins de ocorrência das polícias civis estaduais, apontou que apenas no primeiro semestre de 2023 houve aumento de 2,6% do índice de feminicídios em território nacional em relação ao mesmo período de 20221 .
O que se defende e é compreensível o raciocínio a propósito, é que no caso concreto deve ser constatada previamente à disciplina do convívio parental, a inexistência de elementos que indiciem risco da prática de violência doméstica ou familiar pelo pai em desfavor do filho menor de idade, genitor esse que já se encontra afastado da família em virtude de separação fática e medida protetiva editada por autoridade em prol da genitora, considerando-se que agressores podem reiterar suas condutas de modo sistemático e genérico, não direcionando-as apenas em desfavor da vítima primordial, a mãe do menor. Outro ponto levantado é que o sofrimento materno presenciado pela criança ou adolescente, inclusive violência psicológica contra a ascendente perpetrada pelo genitor do menor, atingem igualmente os filhos comuns do casal.
Embora a inovação legislativa (artigo 1584, parágrafo segundo do Código Civil) não trate de direito de convivência – preservada, como não poderia deixar de ser em termos de direito fundamental do incapaz – mas de guarda compartilhada, vedando-a quanto há risco de violência doméstica ou familiar, a dinâmica alvo de coibição também contém como pressuposto a concepção de que o indivíduo que possa vir a cometer violência doméstica ou familiar (contra a mãe ou em prejuízo do próprio filho menor) encontra-se inapto a, diretamente, administrar os interesses desse filho menor, usufruir com maior intensidade da companhia do incapaz, atuar na gestão dos referidos interesses, disciplinar o modo de exercício de direitos de modo a adimplir diretamente o dever de suprir as necessidades materiais e imateriais do descendente. Em verdade, a aludida gestão não se confunde com o poder parental, este de caráter amplo, o qual resta íntegro mesmo que o genitor ou genitora não ostente a guarda do filho menor, privativa ou compartilhada. As atribuições dos pais podem ser exercidas conjuntamente ou mediante divisão de tarefas na guarda compartilhada, assim como é usual a prática de distinção de períodos de convivência. Logo, a guarda compartilhada traz a concepção de gestão direta dos interesses, direitos e supressão das necessidades do menor, com implemento imediato do dever de cuidado por seus detentores. Não se circunscreve tão somente ao convívio com o menor. Ainda que assim se concretize, podemos vislumbrar a possibilidade de partes invocarem o dispositivo em análise com o escopo de restringir o direito de convivência parental do genitor a que é imputada a representação de risco potencial de prática de conduta peculiar a violência doméstica ou familiar contra a genitora do incapaz ou em detrimento do último.
O que parece ser prudente consignar, em período de início de vigência do dispositivo normativo, é que o mesmo não deve ser utilizado para vedar, de modo fatal e absoluto, a guarda compartilhada em decorrência de imputação de prática de violência doméstica e familiar em sede meritória, ainda que vigente medida protetiva em prol da genitora do incapaz. A análise detalhada do caso concreto pelo Poder Judiciário à luz do contexto probatório e sob a vigência dos princípios constitucionais da ampla defesa e contraditório é inderrogável. Frise-se a relevância acentuada do labor técnico correspondente a estudo psicossocial, o qual deverá trazer à baila elementos objetivos que possam nortear a adoção da melhor dinâmica, dentro do que se mostrar viável, para disciplina da guarda em observância do princípio do melhor interesse do incapaz, o qual nem sempre coincidirá com a opção por guarda privativa materna. Atente-se, outrossim, ao quilate constitucional do princípio do melhor interesse do incapaz em harmonia com o artigo 227 da Carta Magna, o qual ostenta primazia normativa em relação ao Código Civil.
Lembremos, sob outro vértice, que a guarda compartilhada pode ser enfocada como instrumento hábil a prevenir e combater a alienação parental, perniciosa prática observada em todos os tribunais do país tendo por agentes pais, mães, avós, guardiães (Lei 12.318/10, artigo 2o). Por conseguinte, tem-se que a disciplina legal subsiste favoravelmente à regra da guarda compartilhada, vedada porém sua adoção provisoriamente nos autos quando presentes indícios de que haja probabilidade de risco de prática de violência doméstica e familiar. Para averiguar-se a presença de tais elementos não se prescinde de análise de cunho psicológico ao menos superficialmente dos envolvidos ou, quando inviável ou inexistente, a exibição de documentos que possam dar supedâneo à formação de convicção basilar judicialmente quanto à positivação de tais riscos (como por exemplo, mediante a juntada de cópia de eventual decisão impositiva de medida protetiva de urgência no âmbito da Justiça Especializada da Violência Doméstica, cópias de boletins de ocorrência, declarações de testemunhas identificadas nos documentos narrando o histórico familiar e episódios, ainda que pretéritos, de violência doméstica ou familiar, o comportamento exteriorizado publicamente pelo suposto agressor, fotografias, relatórios médicos/psicológicos, etc).
Conforme pontua Petra Sofia Portugal Mendonça Ferreira2 , autora que explicita a distinção entre guarda compartilhada e guarda alternada no direito brasileiro, não se opondo ao duplo domicílio do menor, a Lei 13.058/14 trouxe conceito mais amplo da guarda compartilhada ao dispor a propósito do exercício conjunto das responsabilidades parentais como garantia de concretização do poder familiar do qual nenhum dos genitores pode ser afastado apenas em virtude da ruptura do convívio familiar. Com razão, a nosso ver, há prerrogativa da prole em usufruir, com qualidade e de modo benéfico, do convívio familiar. Ressalve-se, todavia, hipóteses no plano empírico em que reste inviabilizada a dinâmica por motivos diversos, que devem ser graves, o que dependerá das circunstâncias fáticas, com acatamento ao princípio do melhor interesse do incapaz.
Parece-nos, outrossim, de suma importância que reste consignado que o regramento disposto por leis protetivas à mulher e a incapazes , respectivamente, Lei 11340/06 (Lei Maria da Penha) e Lei 14344/22 (Lei Henry Borel), em especial no que tange à violência psicológica, decorre na incidência de edição de medidas protetivas de urgência sob o princípio do in dubio pro societate, aplicável a Lei Maria da Penha subsidiariamente às hipóteses de violência doméstica ou familiar em detrimento do incapaz, mediante a presunção de vulnerabilidade. Isso porque houve, por alteração normativa, o acréscimo do parágrafo quarto no artigo 19 da LMP para restar explicitado que as medidas protetivas de urgência serão concedidas, em juízo de cognição sumária, a partir do depoimento da parte ofendida perante a autoridade policial ou da apresentação de suas alegações escritas e poderão ser indeferidas, no caso de avaliação pela autoridade, de inexistência de risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes incumbindo, pois, a autoridade e não à vítima, a detecção de elementos probantes que assegurem a inexistência de risco de dano psicológico (na temática sugerida). Note-se, sob o aspecto subjetivo a violência psicológica é passível de oscilação e é aquilatada individualmente. O que pode ferir um determinado indivíduo (por exemplo, tom elevado de voz utilizado pelo agressor, frases jocosas, expressões de baixo calão, etc) pode ser indiferente a outro. No atual ordenamento vigente, parece-nos bastante claro o fato de que a mera menção à violência psicológica já impõe a autoridade a aplicação da medida protetiva de urgência, salvo se presentes elementos outros, leia-se, de cunho material, que bem consolidem a constatação da ausência de risco de dano psicológico. De tal sorte, em hipóteses duvidosas, a medida deve ser imposta pela autoridade constituída. Nesse ponto, é possível verificar em tese que abrimos ensanchas à manipulações e distorções de fatos, não raras vezes concebidas tais manobras processuais ou não como meios para afastamento proposital do convívio entre o filho menor e o cotitular do poder parental, também genitor. Mulheres podem ser vítimas e majoritariamente o são quanto à violência doméstica e familiar em nosso país, lamentavelmente, fato resultante das diferenças entre gêneros de ordem cultural e estruturante. Não obstante, mesmo inconscientemente em decorrência de vicissitudes decorrentes do relacionamento, não raras vezes tóxico e abusivo, as mulheres (assim como homens) podem perpetrar alienação parental em desfavor dos próprios filhos incapazes, os quais se encontram sob sua guarda e companhia. Urge que atentemos à imprescindibilidade de sim, analisarmos contextos fáticos, com cautela e à luz de elementos probatórios, para disciplina salutar de convivência e atribuição de guarda dos incapazes. Mas se olvidarmos que o princípio da igualdade substancial impõe o tratamento paritário dos genitores , considerando-se as desigualdades entre os mesmos e elegendo mecanismos para superação e previamente estipularmos vítimas incondicionais e agressores irremediáveis, a serem afastados sem a devida cautela e análise neutra dos próprios filhos por intermédio do relacionamento familiar, teremos inúmeros incapazes indevidamente destituídos do direito fundamental de usufruírem da convivência familiar, que lhes pertence, com exclusividade, fato que ensejará, no mais das vezes, danos psicológicos profundos e irreversíveis na vida adulta.
O acréscimo do artigo 699-A ao CPC a princípio não enseja grandes alterações procedimentais diante da flexibilização pela jurisprudência da obrigatoriedade da mediação prevista no artigo 695 do CPC. De ver-se que nos feitos sob tramitação no Poder Judiciário é extremamente corriqueira a ressalva nas petições iniciais de que houve deferimento de medida protetiva em benefício da parte autora na Vara da Violência Doméstica ou de se teme a aproximação da parte adversa por imputação de natureza agressiva ou similar, ressalvando a requerente desinteresse em participar de audiência de conciliação ou mediação. Considerando, pois, a aludida prática, não se vislumbrando sentido na imposição de procedimentos de solução alternativa de conflitos contra a manifesta exteriorização de vontade da parte, tem-se que a inovação legislativa poderá cair em desuso. Ainda que se posicione em sentido cogente, a singela comprovação do deferimento de medida protetiva de urgência já pode positivar risco de violência doméstica e familiar não se afigurando pertinente discussão da temática da violência doméstica intrafamiliar na Vara de Família e Sucessões quando já deferida medida protetiva na Vara da Violência Doméstica , com tramitação de feito nesse derradeiro juízo.
Referencias
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1: A Dupla Residência da Criança Pós-Divórcio, uma análise de direito comparado e sua aplicação no direito brasileiro, Ferreira , Petra Sofia Portugal Mendonça, São Paulo, Editora D´Plácido, Vol 2, pg 118;
2. www.cnnbrasil.com.br, matéria veiculada em 13/11/2023 sob o título SP vê aumento de 33,7% em feminicídios no 1º semestre de 2023; Brasil tem 722 casos; acessado em 27/11/2023;