,

Alterações Lei Maria Da Penha E Violência Psicológica

rear-view-sad-woman-window

A Lei 14.550/23, sancionada pelo Presidente da República com entrada em vigor em 19 de abril de 2023, alterou a Lei 11.340 de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha) a fim de dispor sobre as medidas protetivas de urgência e estabelecer que a causa ou a motivação dos atos de violência e a condição do ofensor ou da ofendida não excluem a aplicação a Lei.1 Houve alteração dos artigos 19 e 40 da Lei Maria da Penha.

Operou-se de tal sorte o acréscimo do parágrafo quarto ao artigo 19 da LMP para restar explicitado que as medidas protetivas de urgência serão concedidas em juízo de cognição sumária a partir do depoimento da ofendida perante a autoridade policial ou da apresentação de suas alegações escritas e poderão ser indeferidas, no caso de avaliação pela autoridade, de inexistência de risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da ofendida ou de seus dependentes.

Também o novo parágrafo quinto do dispositivo em questão preconizou que as medidas protetivas de urgência serão concedidas independentemente da tipificação penal da violência, do ajuizamento de ação penal ou cível, da existência de inquérito policial ou do registro de boletim de ocorrência.

Prima facie da análise do conteúdo dos dispositivos é possível extrair o desajuste do uso da expressão, no parágrafo quarto do artigo 19 da LMP, de depoimento da ofendida “perante a autoridade policial”. Se é dispensável, com elege o parágrafo quinto, tipificação penal da violência, ação judicial ou sequer lavratura de boletim de ocorrência, tem-se que o relevante para a imposição da medida protetiva é o encaminhamento do conteúdo do relato da vítima para conhecimento de alguma autoridade, investida legitimamente de tal poder pelo Estado. Veja-se que é dispensável que tais declarações da vítima sejam presenciais, podem ser transmitidos por mídias, via eletrônica, através de alegações escritas de sua própria autoria ou ofertadas por mandatários que as representem.  O crucial é a ciência inequívoca do conteúdo do depoimento da ofendida.

A inovação é de suma importância ao patentear o elevado quilate probatório do conteúdo das declarações da vítima de violência doméstica e intrafamiliar, aliás, como já vinha admitindo o STJ em dissenso com o teor de inúmeros autos onde a violência processual finda por ser perpetrada na desqualificação desproposital da vítima, como efetiva sequela das assimetrias de poder entre gêneros.

Isso significa dizer que há inversão de ônus probatório. Ou seja, para que a medida protetiva seja refutada pela autoridade esta deve se certificar da ausência de risco à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral da vítima ou de seus dependentes (violência vicária, perpetrada contra terceiros para atingir a vítima). E evidentemente não se trata de ato discricionário o alusivo ao indeferimento da medida protetiva mas de natureza vinculante, submetido à constatação de elementos concretos hábeis a afastar potencial risco de dano, tais como: análise de relatórios psicológicos emitidos por centros de referência (CRAS), laudos de exames médicos, documentos diversos como extratos bancários em casos de imputação de violência patrimonial, dentre outros provenientes da rede de proteção  contra violência doméstica ou não , de origem idônea . Atente-se, não é a vítima que tem o dever de produzir tais provas.

Aqui dois fatores nos parecem bastante salutares. O primeiro diz respeito à gigantesca dificuldade narrada por profissionais do Direito para lavratura de boletins de ocorrência noticiando percepção das mais diversificadas formas de violência pela mulher, como reflexo da cultura patriarcal ainda em voga, partindo-se de uma falsa premissa de que a vítima necessitaria apresentar lesões de natureza física de modo inclusive visível para crer-se na perpetração de violência em seu detrimento. Violências cometidas sem vestígios aparentes, como a psicológica, destacam-se como peculiares às dificuldades de maior detecção, circunstância a ser obstada pela novel legislação. O segundo consiste na imprescindibilidade do afastamento do risco em deliberação por autoridade restar fundamentado em elementos palpáveis. No caso da violência psicológica, tem-se como extremamente complexa a assertiva de ausência de risco de prejuízo à saúde psicológica da vítima na manutenção da presença forçada de um indigitado agressor com a qual ostente vínculo parental, convívio próximo no âmbito doméstico ou ainda liame afetivo relacional. Isso sem cogitarmos em interpretação extensiva, compatível com diversas hipóteses de dissensos entre indivíduos nos quais questões de gênero possam se mostrar como elementos causais da violência, com disparidade das consequências da última para a mulher ou pessoa do gênero feminino, o que legitima o tratamento legal diferenciado. Bastante explícita a natureza subjetiva do dano psicológico: o que pode ser pernicioso para determinada vítima pode apresentar conotação supérflua para diversa, delineando-se positivamente a adequação do deferimento de medidas protetivas quando anunciado o risco de dano psicológico em desfavor da pessoa do gênero feminino, com outorga de credibilidade ao relato da última, inclusive com presunção a propósito. Não é demasiado lançar que a vítima não está isenta do dever de atuar com boa-fé respondendo civilmente e criminalmente por eventuais condutas ilícitas praticadas, oportunamente, mediante a inafastável comprovação a propósito.

Os detratores de tais realidades legislativas se baseiam na alegação de que a presunção seria temerária, com tratamento não equânime em relação ao apontado agressor. Todavia isso resta ausente ao passo que se trata apenas de mecanismo normativo que busca implementar a igualdade substancial entre gêneros com vistas à realidade social, inclusive evitando mais óbitos de mulheres, lamentavelmente usuais por ocasião de rupturas de relacionamentos com disputas de natureza familiar. A título de elucidação, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontou que apenas no Distrito Federal, em menos de três meses em 2023 houve registro de quase metade do número de feminicídios do ano passado 2 , ocupando o Brasil o sétimo lugar no ranking de feminicídios no mundo 3 sob estatísticas de 2012. Em 2022 mensurou-se uma mulher morta a cada seis horas em território nacional 4 com aumento de 5% no número de vítimas.

De ver-se que a mera circunstância de ser deferida medida protetiva não significa em hipótese alguma abstração do direito de defesa do indigitado ofensor em quaisquer esferas judiciais em que possa se efetivar, a propósito e eventualmente, a referida concessão. A instrumentalização da Lei Maria da Penha através da aplicação do protocolo para julgamento com perspectiva de gênero 2021 do CNJ, de observância obrigatória pelo Poder Judiciário (Resolução CNJ 492)5 e mediante utilização do formulário nacional de avaliação de risco6 , estabelecido pela Resolução Conjunta 5 de 03/03/2020 pelo CNJ e CNMP, deve se verificar.

Sabemos que não são as normas jurídicas que ditam a realidade. Tais normas devem servir ao mundo empírico, impondo limites àqueles que os inobservam. Dados estatísticos nos provam que o deferimento de medidas protetivas reduz de maneira acentuada o número de feminicídios. A inovação legislativa merece, por conseguinte, ser celebrada por todos os profissionais da área jurídica aos quais se impõe o dever de dispêndio de esforços para melhor compreensão do gravoso contexto social de assimetria de poderes entre gêneros em que estamos imersos, com a geração de desigualdades acentuadas as quais findam por aniquilar a vida humana, deixando inúmeras crianças desprovidas de amparo materno. Aludida constatação está muito além da casuística e reclama olhar acurado, com responsabilidade de todo o arcabouço social pela eliminação da violência.

 

Referências

____________________

1.www.planalto.gov.br, Lei 14550- Planalto, acessado em 19/05/2023;

2. www.tvbrasil.ebc.com.br, acessado em 19/05/2023;

3. www.cnmp.mp.br, acessado em 19/05/2023;

4. www.g1.globo.com, matéria veiculada em 08/03/2023, acessada em 19/05/2023;

5.   www.atos.cnj.jus.br, acessado em 19/05/2023

6.   www.atos.cnj.jus.br, acessado em 19/05/2023;

Compartilhe nas Redes Sociais
Anúncio