As Ações Afirmativas E A Sua Constitucionalidade Atestada Pelo Supremo Tribunal Federal

As Ações Afirmativas E A Sua Constitucionalidade Atestada Pelo Supremo Tribunal Federal

lady justice

Com base no que dispõe o caput do artigo 5º, da Constituição Federal de 1.988, o princípio da isonomia material e formal norteia a ordem jurídica nacional e é basilar ao Estado Democrático de Direito, que tem, em seu eixo central, o ser humano. Salienta-se que, já no seu preâmbulo, a Carta Magna previu que se estaria instituindo um Estado Democrático destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar social, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.

Ademais, não é despiciendo salientar que o citado caput do artigo 5º, da Constituição Federal de 1.988 consagra não apenas uma formal e material isonomia entre os cidadãos, mas, também, a inviolabilidade da liberdade e da igualdade, a qual deve ser balizada sem que sejam tomadas ações desagregadoras e discriminatórias. Destacam-se, assim, as vertentes no que tange à concepção da igualdade: a) a igualdade formal, reduzida à fórmula “todos são iguais perante a lei” (que, ao seu tempo, foi crucial para abolição formal de privilégios); e b) a igualdade material, que pode ser analisada sob o aspecto correspondente ao ideal de justiça social e distributiva (igualdade orientada pelo critério socioeconômico); bem como com escopo em questões relativas à gênero, sob à ótica do ideal de justiça enquanto reconhecimento de identidades (igualdade orientada pelos critérios de gênero, orientação sexual, idade, raça, etnia e demais critérios).1

A igualdade dos indivíduos sujeitos à ordem jurídica, garantida pela Constituição, não significa que aqueles devam ser tratados por forma igual nas normas legisladas com fundamento na Constituição, especialmente nas leis. Não pode ser uma tal igualdade aquela que se tem em vista, pois seria absurdo impor os mesmos deveres e conferir os mesmos direitos a todos os indivíduos sem fazer quaisquer distinções, por exemplo, entre crianças e adultos, sãos de espírito e doentes mentais, homens e mulheres. Quando na lei se vise a igualdade, a sua garantia pode realizar-se estatuindo a Constituição, com referência a diferenças complementares determinadas, como talvez as diferenças de raça, de religião, de classe ou de patrimônio, que as leis não podem fazer acepção das mesmas, quer dizer: que as leis em que forem feitas tais distinções poderão ser anuladas como inconstitucionais.2

Sendo assim, a discriminação ocorrerá quando os cidadãos forem tratados de forma igual em situações diferentes e diferentes em situações iguais, o que impõe ao Estado e à sociedade a adoção de medidas que assegurem a efetivação da igualdade material entre indivíduos claramente diferentes de modo a promover a aplicação do princípio da isonomia; que se mostra, neste caso, basilar ao conceito de cidadania plena.

Faz-se necessário, portanto, combinar a proibição da discriminação com políticas compensatórias que acelerem a igualdade enquanto processo. Isto é, para assegurar a igualdade não basta apenas proibir a discriminação, mediante legislação repressiva. São essenciais as estratégias promocionais capazes de estimular a inserção e inclusão de grupos socialmente vulneráveis nos espaços sociais. Com efeito, a igualdade e a discriminação pairam sob o binômio inclusão-exclusão. Enquanto a igualdade pressupõe formas de inclusão social, a discriminação implica a violenta exclusão e intolerância à diferença e à diversidade. O que se percebe é que a proibição da exclusão, em si mesma, não resulta automaticamente na inclusão. Logo, não é suficiente proibir a exclusão, quando o que se pretende é garantir a igualdade de fato, com a efetiva inclusão social de grupos que sofreram e sofrem um consistente padrão de violência e discriminação.3

Uma forma eficaz de se promover a inclusão social de pessoas marcadas pela discriminação, exclusão e violência é por meio da adoção de ações afirmativas, que se constituem como “medidas políticas que visam acabar com a exclusão social, cultural e econômica de indivíduos pertencentes a grupos que sofrem qualquer discriminação. “Isso geralmente é realizado através do fornecimento de recursos ou outros benefícios, com o objetivo de interromper processos históricos de discriminações (raciais, étnicas, religiosas, de gênero, entre outras)”.4

As ações afirmativas devem ser compreendidas não somente pelo prisma retrospectivo – no sentido de aliviar a carga de um passado discriminatório -, mas, também, prospectivo – no sentido de fomentar a transformação social, criando uma nova realidade.5 Assim, estimula-se o incremento na participação política dos grupos sociais considerados como minorias (mulheres, homossexuais, indígenas, negros, entre outros) que, com tais auxílios, conseguiriam ainda um melhor acesso a direitos básicos da cidadania – saúde, educação, cultura, emprego.6

Pode-se afirmar, portanto, que a adoção de ações afirmativas de direitos se mostra como um mecanismo de inclusão e de dignificação do ser humano, pois “para além da positivação de normas que assegurem a vedação de condutas injustificadamente discriminatórias, faz-se necessário garantir sua observância por intermédio de todos os meios em direito admitidos.7

Nesse sentido, o principal objetivo das ações afirmativas é o combate às desigualdades, buscando garantir o acesso a posições importantes na sociedade de indivíduos que, de outro modo, ficariam ainda excluídos. Mesmo sendo geralmente medidas temporárias, não é exagero afirmar que as ações afirmativas acabam por transformar o perfil demográfico da sociedade.8

É com tal intuito que foram instituídas, por exemplo, cotas sociais de acesso ao emprego e ao estudo superior, como medida legislativa adotada em favor das pessoas com deficiência no artigo 93 da Lei n. 8.213/1991 e vagas destinadas, em universidades, às pessoas negras e pardas. Em relação a isso, quando, em 2.012, proferiu voto favorável ao sistema de cotas raciais nas universidades públicas brasileiras, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Marco Aurélio Mello, afirmou que o sistema (de cotas) deveria ser extinto apenas quando diminuíssem substancialmente as desigualdades sociais no Brasil; – as cotas seriam, portanto, uma medida paliativa, temporária.9

Quanto à constitucionalidade da adoção de cotas como ações afirmativas, há salientar que o Supremo Tribunal Federal já se manifestou no que tange, entre outras hipóteses, à destinação de vagas, em instituições de ensino, às pessoas negras e pardas, nos seguintes termos:

Foi declarada pelo Supremo Tribunal Federal durante os julgamentos da ADIn no 3.330/DF, sob a relatoria do Min. Carlos Ayres Britto, e da ADPF no 186/DF, sob a relatoria do Min. Enrique Ricardo Lewandowski, nas sessões de 25 e 26 de abril e de 3 de maio de 2012, respectivamente (Informativos STF nos. 500, 663 e 664). Por maioria de votos, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou a constitucionalidade do sistema de cotas adotado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A decisão foi tomada no julgamento do Recurso Extraordinário (RE 597285), com repercussão geral, em que um estudante questionava os critérios adotados pela UFRGS para reserva de vagas. A universidade destina 30% das 160 vagas a candidatos egressos de escola pública e a negros que também tenham estudado em escolas públicas (sendo 15% para cada), além de 10 vagas para candidatos indígenas. De acordo com o estudante, o sistema não seria razoável e traria sentimento de injustiça, na medida em que ele havia prestado o vestibular para o curso de administração em 2008, primeiro ano da aplicação do sistema de cotas, e se classificado em 132º lugar. Segundo ele, se o vestibular tivesse ocorrido no ano anterior ele teria garantido vaga, mas no novo modelo concorreu a apenas às 112 vagas restantes.10

É com base em tal decisão que foi proferida com repercussão geral e em todos os fundamentos legais e principiológicos alhures citados que a Universidade de Brasília (UnB), no ano de 2.019, instituiu que quilombolas, ciganos, transexuais, travestis e transgêneros, além das pessoas com deficiência, transtorno do espectro autista e altas habilidades, terão direito a 5% de vagas adicionais, ou sobrevagas, conforme classificado pela citada instituição de ensino.

Ainda, há citar que, em março de 2.017, o setor litoral da Universidade Federal do Paraná recebeu sua primeira aluna transexual no programa de pós-graduação via cota. No final do mesmo ano, a Universidade Federal do Cariri, no Ceará, começou a analisar a implementação de vagas reservadas para transgêneros em sua pós-graduação.11 Ademais, nas eleições ocorridas em 2.108, pessoas transgêneras puderam fazer uso de cotas de gênero e do nome social, como decidiu o Tribunal Superior Eleitoral.

É um horizonte do por-vir de uma sociedade realmente democrática e que vê, na cidadania, uma condição mínima de existência em meio a tanta diversidade e diferença substanciais entres os seres.

 

Referências

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1. PIOVESAN, Flávia. Ações Afirmativas no Brasil: desafios e perspectivas. Rev. Estud. Fem. vol.16 no.3 Florianópolis Sept./Dec. 2008. Disponível em: https://bit.ly/3Lw6SD8. Acesso em 19 abr. 2023.

2. ARGONDIZO, Luis Fernando Centurião; VIEIRA, Tereza Rodrigues; MIRANDA, Claudineia Aparecida de. O direito ao trabalho e as pessoas trans: desafios e conquistas. In: Transgêneros. Organizadora: Tereza Rodrigues Vieiria. Brasília: Zakarewicz, 2019, p. 486.

3. PIOVESAN, Flávia. Ações Afirmativas no Brasil: desafios e perspectivas. Rev. Estud. Fem. vol.16 no.3 Florianópolis Sept./Dec. 2008. Disponível em: https://bit.ly/3L1mhtS. Acesso em 19 abr. 2023.

4. MELLO, Thiago de. Cotas e políticas afirmativas. 201-. Disponível em: https://bit.ly/3AsM4Gq. Acesso em 19 abr. 2023.

5. PIOVESAN, Flávia. Ações Afirmativas no Brasil: desafios e perspectivas. Rev. Estud. Fem. vol.16 no.3 Florianópolis Sept./Dec. 2008. Disponível em: https://bit.ly/41BpiIm. Acesso em 19 abr. 2023.

6. MELLO, Thiago de. Cotas e políticas afirmativas. 201-. Disponível em: https://bit.ly/3HgD9eX. Acesso em 19 abr. 2023.

7. BARACAT, Eduardo Milléo; CALADO, Verônica. A função social da empresa e as cotas para os trabalhadores com deficiência. In: Direitos Humanos dos trabalhadores. Organizadora: Rúbia Zanotelli de Alvarenga. São Paulo: LTr, 2016. P. 171-182

8. Idem.

9. MELLO, Thiago de. Cotas e políticas afirmativas. 201-. Disponível em: https://bit.ly/43YIxxf. Acesso em 19 abr. 2023.

10. PEREIRA, Fábio Ricardo. Ações afirmativas no Brasil como garantia ao princípio constitucional da igualdade. Âmbito Jurídico, 2014. Disponível em: https://bit.ly/3AC104Z. Acesso em 19 abr. 2023.

11. DEICOLLI, Caio. Por que chegou a hora de falar sobre cotas para pessoas transgênero no Brasil. HUFFPOST, 2018. Disponível em: https://bit.ly/3Ly6TXa. Acesso em 19 abr. 2023.

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