As Escolas de Samba no Brasil, o Crime Organizado e a Retratação Negativa da Polícia: uma análise sob a perspectiva Constitucional

As Escolas de Samba no Brasil, o Crime Organizado e a Retratação Negativa da Polícia: uma análise sob a perspectiva Constitucional

Constituição do Brasil

BREVE INTRODUÇÃO

Nas escolas de samba brasileiras existem pessoas de boa-fé que estão trabalhando em projetos sociais na tentativa de melhorar a vida de cidadãos afetados pela pobreza. No entanto, muitas vezes também há envolvimento com o crime organizado e a polícia é retratada de forma negativa, como ocorreu na demonização dos policiais pela escola paulista “Vai Vai” no corrente ano de 2024.

Assim, este artigo pretende analisar, de forma objetiva, as duas questões abaixo:

1 – Que histórico de relação há entre muitas escolas de samba no Brasil e o crime organizado?

2 – A retratação demonizada da polícia pela escola de samba paulista “Vai Vai” se coaduna com o conteúdo jurídico da liberdade de expressão?

As duas questões serão tratadas abaixo, cada qual em tópico próprio.

1 Que histórico de relação há entre muitas escolas de samba no Brasil e o crime organizado?

Autoridades policiais, do Ministério Público e judiciais têm apontado por vários anos a ligação de diversas escolas de samba com bicheiros e traficantes, sendo que os mesmos muitas vezes exercem cargo de liderança em várias agremiações.1 Como tais instituições recebem milhões em recursos públicos, é mais do que natural que este assunto seja de interesse de toda a sociedade.

No ano de 2014 a escola Beija-Flor teria recebido uma doação do ditador de Guiné Equatorial (Teodoro Obiang Nguema Mbasogo), o que se tornou um escândalo. Quando questionado, o famoso integrante da referida agremiação Neguinho da Beija-Flor, disse:

Eu sou do tempo em que desfile de escola de samba era uma bagunça. Terminava duas, três horas da tarde. Se não fosse dinheiro da contravenção, hoje não teríamos o maior espetáculo audiovisual do planeta. Agradeça à contravenção.2

O caso mais conhecido de todos foi o do bicheiro Castor de Andrade, o qual ajudou a fundar a própria Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro e foi patrono da escola Mocidade Independente de Padre Miguel. Como é de conhecimento público, o mesmo construiu um verdadeiro império na base do tráfico de drogas, venda ilegal de armas, lavagem de dinheiro e assassinatos e frequentava com honrarias a Sapucaí e os camarotes do carnaval carioca.

Diversos meios de comunicação têm noticiado que a escola “Vai Vai” foi investigada pela polícia civil paulista por envolvimento com o PCC. Em tese, a agremiação teria se tornado um reduto do PCC. Isto teria sido averiguado em um inquérito que se tornou um processo sigiloso de lavagem de dinheiro e corre no judiciário.3

Em decorrência de tal fato, tem se levantado a teoria de que a demonização da polícia no desfile da referida escola, no corrente ano de 2024, não seria meramente em decorrência da queixa de violência e preconceito policial contra os apreciadores do “Hip Hop” na década de 1990, mas também seria um descontentamento para com as investigações. Vários sindicatos de policiais e associações de delegados emitiram notas de repúdio a aludida representação dos policiais no desfile da escola “Vai Vai”.

Assim, quando o Estado fornece milhões em recursos públicos para as escolas de samba, o mesmo pode na verdade estar alimentando o próprio crime organizado, auxiliando instituições que podem estar sendo utilizadas para lavagem de dinheiro ou pelo menos ajudando criminosos na aquisição de capital social para suas atividades ilegais em diversas comunidades. É lógico que não se pode generalizar e afirmar que isso ocorre em todas as agremiações da elite do carnaval, mas o assunto não pode ser subestimado, nem visto como uma mera exceção no meio carnavalesco.

2 A retratação demonizada da polícia pela escola de samba paulista “Vai Vai” se coaduna com o conteúdo jurídico da liberdade de expressão?

A resposta para essa questão é complexa, dada a natureza dos direitos aqui em trânsito. A liberdade de expressão é um direito humano e fundamental consagrado constitucionalmente. Porém, a tutela da honra e da imagem goza do mesmo status jurídico. Digno de nota, que a Teoria dos Direitos Fundamentais entende que tanto as pessoas naturais (também chamadas de pessoas físicas), quanto as pessoas jurídicas desfrutam de proteção da imagem, bem como da honra (no caso desta, em sentido “objetivo”), podendo serem vítimas de delitos como calúnia e difamação.

Para exemplificar o afirmado acima: pense na hipótese de uma pessoa jurídica que é falsamente acusada de ter cometido um crime ambiental ou um delito contra a ordem tributária e que sofre inúmeros prejuízos devido a publicidade da “falsa acusação” (perda de contratos comerciais, queda do valor das ações, boicote a estabelecimentos, exposição midiática, etc.). Em tese, a mesma poderia buscar a reparação de danos civil (patrimonial e moral), bem como a responsabilização criminal do responsável pela calúnia. Da mesma forma, ela poderia pleitear o “direito de resposta” em todos os veículos de comunicação que noticiaram o assunto, a fim de defender a sua imagem e a sua “honra objetiva” (vide a Súmula 227 do STJ).

Assim, para a análise do caso em concreto, há dois julgados do STF que permite duas teses ou possíveis soluções. Seguem abaixo.

A primeira tese ou possível solução se baseia no julgamento da ADI 4451 em 2018 pelo STF, realizado no contexto das críticas satíricas durante campanhas políticas, conforme segue:

LIBERDADE DE EXPRESSÃO E PLURALISMO DE IDEIAS. VALORES ESTRUTURANTES DO SISTEMA DEMOCRÁTICO. INCONSTITUCIONALIDADE DE DISPOSITIVOS NORMATIVOS QUE ESTABELECEM PREVIA INGERÊNCIA ESTATAL NO DIREITO DE CRITICAR DURANTE O PROCESSO ELEITORAL… (…) 5. O direito fundamental à liberdade de expressão não se direciona somente a proteger as opiniões supostamente verdadeiras, admiráveis ou convencionais, mas também aquelas que são duvidosas, exageradas, condenáveis, satíricas, humorísticas, bem como as não compartilhadas pelas maiorias. Ressalte-se que, mesmo as declarações errôneas, estão sob a guarda dessa garantia constitucional.4 

De acordo com este entendimento, poderia se concluir que a retratação demonizada de policiais pela “Vai Vai” estaria dentro do âmbito da liberdade de expressão. Tal direito envolve a possibilidade de até mesmo expressar opiniões exageradas, condenáveis, distorcidas ou mesmo errôneas. A escola alega que essa retratação deve ser analisada dentro de um recorte histórico envolvendo o disco “Sobrevivendo ao Inferno” dos Racionais MC, bem como ao preconceito que os apreciadores do “Hip Hop” sofriam na década de 1990, inclusive em tese por “batidas” de agentes policias. Assim, a “Vai Vai” afirma que não seria uma ofensa generalizada a polícia em si.

A segunda tese ou possível solução se baseia na ADPF 572 julgada em 2020 pelo STF, que ficou conhecida como “inquérito das Fake News”, conforme segue:

ADPF. INCITAMENTO AO FECHAMENTO DO STF. AMEAÇA DE MORTE E PRISÃO DE SEUS MEMBROS… MANIFESTAÇÕES QUE DENOTEM RISCO EFETIVO À INDEPENDÊNCIA DO PODER JUDICIÁRIO. PROTEÇÃO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO E DE IMPRENSA.
(…) 2. Nos limites desse processo, diante de incitamento ao fechamento do STF, de ameaça de morte ou de prisão de seus membros, de apregoada desobediência a decisões judiciais, arguição de descumprimento de preceito fundamental julgada totalmente improcedente… 3. Resta assentado o sentido adequado do referido ato a fim de que o procedimento (…) c) limite o objeto do inquérito a manifestações que, denotando risco efetivo à independência do Poder Judiciário (CRFB, artigo 2º), pela via da ameaça aos membros do Supremo Tribunal Federal e a seus familiares, atentam contra os Poderes instituídos, contra o Estado de Direito e contra a Democracia (…).5  

De acordo com esse entendimento, poderia se concluir que a retratação demonizada de policiais pela “Vai Vai” extrapola os limites da liberdade de expressão, ao ferir a dignidade dos policiais, bem como a imagem e a honra objetiva das instituições as quais os mesmos pertencem, que são essenciais para a manutenção da ordem democrática. A retratação demoníaca dos agentes policias poderia em tese gerar preconceito e ódio social em relação aos policias, podendo inclusive resultar em hostilidade e violência para com os mesmos e/ou seus familiares, tanto no exercício de sua atividade profissional, quanto na vida privada. De fato, é de conhecimento público que muitos policias escondem sua identidade profissional com medo de serem agredidos ou assassinados ou de que algo semelhante seja feito com seus familiares em determinadas regiões.

Diante das referidas teses, algumas questões precisam ser levantadas para se averiguar qual seria a mais adequada para o caso em estudo. Assim, o próprio leitor poderá chegar a sua conclusão. Para isso, seguem os questionamentos:

1 – E se a retratação de demônios da escola “Vai Vai” tivesse sido realizada em relação a ministros de Tribunais Superiores, senadores ou deputados federais em alusão crítica a acusações de corrupção ou algo semelhante? Como a mesma seria encarada: exercício legítimo da liberdade de expressão ou atentado contra a democracia?

2 – E se a retratação de demônios tivesse sido realizada em relação a um partido político, em uma alusão crítica a casos de corrupção detectados em alguns de seus partidários? Será que ainda seria encarada como um exercício legítimo da liberdade de expressão?

Essas questões precisam ser respondidas, uma vez que a polícia (com suas diversas corporações), também é essencial para o funcionamento do Estado Democrático de Direito. De fato, tais instituições são igualmente resguardadas pela tutela jurídica constitucional de sua imagem e honra objetiva.

Da mesma forma, deve-se também analisar a questão no sentido inverso:

3 – Caso alguma instituição (inclusive policial) satirize as escolas de samba como reduto do crime organizado, como as mesmas reagiriam?

4 – Na hipótese de um delegado de polícia, policial, artista, cantor, programa televisivo ou alguma instituição (inclusive policial) demonizar ou satirizar as escolas de samba como reduto de bicheiros e do crime organizado, isto seria encarado como legítimo exercício da liberdade de expressão? Ou seriam tomadas medidas punitivas em relação aos mesmos? Caso se trate de um servidor público, responderia sindicância ou processo administrativo disciplinar?

A resposta a tais questões auxiliará o leitor a chegar à sua própria conclusão quanto a qual das duas teses ou possíveis soluções deve ser aplicada no caso da escola “Vai Vai” e a demonização da polícia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente artigo, foram analisadas de forma objetiva as seguintes questões.

Primeiro: nas escolas de samba brasileiras existem pessoas de boa-fé que trabalham para auxiliar muitos que estão na linha de pobreza.

Segundo: várias escolas de samba brasileiras possuem um longo histórico de envolvimento com o crime organizado, sendo que em muitos casos os criminosos possuem cargos de direção nas mesmas.

Terceiro: Tanto a liberdade de expressão, quanto a tutela da imagem e honra objetiva das pessoas jurídicas são direitos fundamentais. Há pelo menos duas teses ou possíveis soluções que podem ser aplicadas ao caso em concreto, de acordo com dois julgamentos do STF que serviram de parâmetro para este artigo.

Por último, deve ser ressaltado que no Brasil existe tanto o problema da violência policial (que é sentida majoritariamente em regiões mais pobres), quanto o da violência contra policiais. Neste sentido, há sim vários casos de agressões e mortes provocadas por policiais em total descompasso com as normas que regem sua atuação profissional. Porém, não deve ser esquecido que também há vários policiais e delegados de polícia que são vítimas de ameaças, violência e morte pelo combate ao crime organizado ou semelhantes.

 

Referências

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1. O que há por de trás das Escolas de Samba? Disponível em: link.

2. “Agradeça a contravenção”: a falta de transparência na parceria da Globo com os bicheiros do Carnaval, disponível em: link.

3. Investigação aponta ligação entre escola de samba Vai-Vai e o PCC, diz jornal. Disponível em: link.

4. (ADI 4451, relator (a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 21/06/2018, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-044 DIVULG 01-03-2019 PUBLIC 06-03-2019).

5. ADPF 572, relator (a): EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 18/06/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-271 DIVULG 12-11-2020, PUBLIC 13-11-2020 REPUBLICAÇÃO: DJe-087 DIVULG 06-05-2021 PUBLIC 07-05-2021).

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