INTRODUÇÃO
A violência obstétrica é um termo comumente utilizado para caracterizar os abusos sofridos por mulheres. Isso ocorre no caso de mulheres que buscam os serviços de saúde no momento do parto. Essa violência pode ser entendida c20omo física ou psicológica e, ainda, é responsável por tornar um dos momentos mais importantes na vida de uma mulher em um momento que acaba sendo, na verdade, traumático.
De acordo com dados do Departamento de Informática do Sistema único de Saúde – DATASUS de 2015, os partos hospitalizados representam cerca de 98% dos partos que são realizados pela rede de saúde. No mesmo sentido, nos anos de 2007 e 2011, houve um aumento de 46,5% para 53,8% de partos cesáreas. Esses dados são alarmantes, quando comparados com a recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS) que fica entre 10 a 15%.
Diante de tais dados surge um questionamento, a saber, de fato é necessário esse elevado número de cesáreas? Entende-se que essa situação precisa ser repensada, além de outros motivos para tanto, sobretudo porque o Sistema Único de Saúde (SUS) trabalha com o sistema de prevenção a doenças e outros danos; logo, se essa modalidade de parto for analisada, faz-se necessário pensar na outra moeda, ou seja, as violações e violências que podem ocorrer durante o parto.
Nesse sentido, a violência obstétrica é uma terminologia utilizada para caracterizar abusos e sofrimentos por mulheres quando buscam por serviços de saúde para a realização de parto. Assim, esses abusos podem ser entendidos como violência física ou psicológica e, em muitos casos, podem acarretar uma decisão muito difícil, ou seja, decidir pela vida da mãe ou pela do filho.
VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
A vítima de violência pode se sentir culpada por imaginar que deu origem a tais situações, ou por se sentir isolada e marginalizada por seus pares. Nesse contexto, algumas mulheres podem contribuir para a perpetração da violência, apoiando-se no discurso de culpabilização da vítima. No estudo de Valls, et al., (2016), em que foi analisada a violência contra mulher por rejeição, por falta de solidariedade e desconfiança entre as mulheres, verifica-se que tais atitudes não são isoladas, assim, devem ser compreendidas no contexto em que esse conjunto de crenças sociais prevalece. As crenças sociais em determinadas situações resultam de uma socialização da tolerância à violência e ao assédio sexual, legitimando um ambiente hostil em relação às mulheres.
A violência contra a mulher é decorrente da aceitação de dinâmicas sexistas, modelos extremos de masculinidade tradicional ou hipermasculinidade, relacionados à normalização e à permissividade de comportamentos violentos e agressão sexual contra mulheres, promovidos por determinados grupos (VALLS, et al., 2016).
A violência vivida pelas vítimas num contexto geral diz respeito à identificação e à notificação da violência, decorrentes da conscientização e do conhecimento dos incidentes que constituem a violência, nos quais as vítimas não reconhecem que sofreram violência e são mais relutantes em relatar suas experiências (VALLS, et al., 2016).
Nesse sentido, a violência contra a mulher se torna uma violência contra toda a sociedade, uma vez que ofende os familiares, amigos e outras pessoas que convivem com a vítima. Daruwalla et al., (2020) descreve que globalmente 30% das mulheres sobreviveram à violência física ou sexual por um parceiro íntimo ou à violência sexual por um não parceiro.
A Declaração das Nações Unidas sobre a Eliminação da Violência Contra a Mulher – ONU (1993, p. 2) define, em seu artigo primeiro, que a violência contra as mulheres é “qualquer ato de violência de gênero que resulte ou possa resultar em danos ou sofrimento físico, sexual ou psicológico às mulheres, incluindo ameaças de tais atos, coerção ou privação arbitrária da liberdade, seja na vida pública ou na vida privada”. Diante desse contexto, constata-se que a violência contra a mulher pode ser praticada de diversas formas, por meio do marido ou parceiro, um familiar ou membro da família, conhecido e outros (DARUWALLA, et al., 2020).
As formas de violência contra mulher podem ser: doméstica, física, sexual, emocional ou psicológica, controle, negligência ou econômica, contudo, é importante salientar que a abrangência e prevalência dessa violência pode apesentar consequências devastadoras na vida em sociedade. Nesse contexto, a violência contra as mulheres é uma questão defendida pelos direitos humanos, que segundo Daruwalla et al., (2020) é decorrente de uma ecologia de micro, meso e macrofatores e uma manifestação de violência estrutural e desequilíbrios de poder de gênero.
Segundo a Organização das Nações Unidas (2017), a violência contra a mulher resulta em um custo elevado, certa de 1,5 trilhão de dólares, ou seja, 2% do (PIB) global, esse valor é referente ao atendimento às vítimas, a aplicação das leis e com as consequências das agressões na vida das vítimas. Por isso, a violência contra a mulher deve ser encarada como uma questão que abusa e desrespeita os direitos humanos e apresenta consequências negativas na vida das vítimas e dos envolvidos.
Dentre as formas de violência contra as mulheres, tem-se a violência física decorrente do uso intencional para causar dano físico ou morte, globalmente, cerca de um terço, o equivalente a 30% das mulheres do planeta, já foi vítima de violência física. Dentre as razões pela qual a violência contra as mulheres persiste é decorrente da tolerância das sociedades as quais buscam justificar essa modalidade de violência, que vem acompanhada da dependência econômica, baixo nível de educação e pelo desemprego (DARUWALLA, et al., 2020).
As atitudes tolerantes relacionadas à violência contra a mulher, seja em nível individual ou social, é um dos principais fatores de risco para a ocorrência dessa modalidade de violência, mais forte do que desemprego, baixa escolaridade e pobreza. Arënliua, Kelmendi, Bërxulli (2019), em estudo acerca do tema, demostram que, de acordo com as teorias socioculturais, a violência em uma sociedade é um produto de atitudes compartilhadas por grupos que governam as interações e se associam a diversos aspectos da vida social, incluindo o estabelecimento de padrões para um relacionamento de parceiro íntimo.
A violência e o abuso contra mulheres afetam negativamente a saúde física, emocional e mental e o bem-estar de mulheres, crianças e comunidades, particularmente aquelas que vivem em condições vulneráveis de pobreza, espoliação, conflito e violência estrutural. Na definição de Fulu e Miedema (2015) com a mudança da sociedade, a violência se torna um meio pelo qual os homens constroem uma nova forma de masculinidade, utilizando-se de um método compensatório de exercer controle quando sentem que sua autoridade foi questionada, e muitos homens se tornam incapazes de cumprir seu papel devido a mudanças socioeconômicas e mudanças nos papéis de gênero.
Violência obstétrica violação dos direitos sexuais e reprodutivo
A violência obstétrica representa a abusos e desrespeitos que são impostos às gestantes durante o parto por profissionais, ou por instituições de saúde. Segundo a OMS, a violência obstétrica consiste na “[…] apropriação do corpo da mulher e dos processos reprodutivos por profissionais de saúde, na forma de um tratamento desumanizado, medicação abusiva ou patologização dos processos naturais, reduzindo a autonomia da paciente e a capacidade de tomar suas próprias decisões” (BRASIL, 2019, p. 1).
O termo violência obstétrica, conforme descrito por Lansly et al. (2019, p. 2812), tem como finalidade identificar qualquer “ato de violência direcionado à mulher grávida, parturiente ou puérpera ou ao seu bebê, praticado durante a assistência profissional, que signifique desrespeito à sua autonomia, integridade física e mental, aos seus sentimentos, opções e preferências”.
[…] Entre o final dos anos 1980 e início dos 1990, no Brasil, em relação à assistência ao parto – mas também à saúde em geral –, desponta a questão dos direitos. Pelo que vocês contam, o parto vai ganhando força na agenda da saúde pública, em razão de dois problemas: de um lado, o “deserto médico”, a falta e as deficiências da assistência – problemas que têm que ser enfrentados para garantir o direito à saúde reprodutiva; por outro lado, os questionamentos às práticas de assistência em si, com denúncia de intervenções excessivas e uso por vezes desnecessário e abusivo de tecnologias. (BONAN; NAKANO; TEIXEIRA, 2019, p. 322).
Lansly et al. (2019) descrevem que uma em cada quatro mulheres sofre algum tipo de violência durante o parto, as modalidades de violência mais comum são gritos, procedimentos sem consentimentos ou sem informação adequada, por falta de analgesia e por negligência. Mesmo com o rol de direitos estabelecido, é comum se deparar com a violação dos direitos reprodutivos das mulheres. Conforme estabelece o Relatório da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, Plataforma do Cairo (1994), “Os direitos reprodutivos abrangem certos direitos humanos já reconhecidos em leis nacionais, em documentos internacionais sobre direitos humanos, em outros documentos consensuais”. Os direitos se fundamentam no reconhecimento dos direitos básicos dos casais e da mulher decidir livremente de forma responsável a quantidade e o intervalo no qual pretendem ter seus filhos, bem como obter a informações sobre os meios de assim o fazer conforme sua vontade. Inclui também seu direito de tomar decisões sobre a reprodução, livre de discriminação, coerção ou violência (BRASIL, 2005, p. 7).
A Plataforma do Cairo (1994, p. 62) ainda estabeleceu que a assistência à saúde reprodutiva pode ser definida como vários métodos, técnicas e serviços que venham contribuir para a saúde e o bem-estar reprodutivo e atue de forma preventiva na resolução de problemas de saúde reprodutiva. “Isto inclui também a saúde sexual cuja finalidade é a intensificação das relações vitais e pessoais e não simples aconselhamento e assistência relativos à reprodução e a doenças sexualmente transmissíveis”.
Nesse sentido, a Conferência Mundial sobre a Mulher (1996, p. 225), realizada em Pequim, reafirmou que:
[…] os direitos reprodutivos dependem dos direitos básicos de todos os casais e indivíduos a decidir livre e responsavelmente o número, a frequência e o momento para terem seus filhos e de possuir as informações e os meios para isso, bem como do direito a alcançar o mais elevado nível de saúde sexual e reprodutiva. Isso também inclui o seu direito de adotar decisões relativas à reprodução livres de discriminação, coerção e violência, conforme expresso nos documentos de direitos humanos.
O Brasil nessa conferência assumiu o compromisso de se basear nos direitos sexuais e reprodutivos de suas políticas e programas de planejamento familiar, considerando que os princípios estabelecidos nas conferências do Cairo e de Pequim se opõem à imposição de metas populacionais, conceptivas e contraceptivas (BRASIL, 2005).
A violação do direito obstétrico inclui o campo dos direitos médico e a violação dos direitos sexuais e reprodutivos. A Constituição Federal, no artigo 226, parágrafo sétimo, determina que o Estado é responsável pelo planejamento familiar, com fundamento nos “princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito”, sendo vedada qualquer forma coercitiva de imposição (BRASIL, 1988, p. 1).
Nesse contexto, a Lei nº 9.263, de 1996 passou a regular o parágrafo sétimo do artigo 226 da Constituição Federal. Essa lei passou a estabelecer que “o planejamento familiar é parte integrante do conjunto de ações de atenção à mulher, ao homem ou ao casal, dentro de uma visão de atendimento global e integral à saúde”. Ainda, a referida legislação estabeleceu que as instâncias gestoras do Sistema Único de Saúde estão obrigadas a garantir, em toda a sua rede de serviços, a atenção à mulher, ao homem ou ao casal, programa de atenção integral à saúde, em todos os seus ciclos vitais, que inclua, como atividades básicas: (I) assistência à concepção e à contracepção; (II) atendimento pré-natal; (III) a assistência ao parto, ao puerpério e ao neonato; dentre outras (BRASIL, 1996).
[…] Art. 4º O planejamento familiar orienta-se por ações preventivas e educativas e pela garantia de acesso igualitário a informações, meios, métodos e técnicas disponíveis para a regulação da fecundidade.
Parágrafo único – O Sistema Único de Saúde promoverá o treinamento de recursos humanos, com ênfase na capacitação do pessoal técnico, visando a promoção de ações de atendimento à saúde reprodutiva.
[…]
Art. 9º Para o exercício do direito ao planejamento familiar, serão oferecidos todos os métodos e técnicas de concepção e contracepção cientificamente aceitos e que não coloquem em risco a vida e a saúde das pessoas, garantida a liberdade de opção. (BRASIL, 1996, p.1).
Neste cenário, a legislação determina que, para ser submetido à esterilização, é necessário ter capacidade plena, ser maior de vinte e cinco anos, ter pelo menos dois filhos vivos e realizar o requerimento com sessenta dias de antecedência ao ato cirúrgico. É vedado o procedimento durante os períodos de parto ou aborto, ocorrendo somente em casos de comprovada necessidade e, quando envolver incapazes, o ato está condicionado à decisão judicial. Todas as cirurgias de esterilização deverão ser comunicadas ao Sistema Único de Saúde (SUS), e é expressamente vedado qualquer tipo de induzimento ou instigação, seja o procedimento individual ou coletivo, à prática de esterilização cirúrgica. Tem-se, também, a proibição da exigência de atestado de esterilização ou de teste de gravidez, independente da finalidade. E ainda discorre que somente serão autorizadas para realizarem o procedimento de esterilização as instituições que oferecerem os métodos contraceptivos reversíveis (BRASIL, 1996).
Nesse contexto, a Lei nº 9.263, de 1996, estabeleceu como crime realizar a esterilização sem a manifestação de vontade da mulher para que seja realizado tal procedimento. Caso ocorra tal situação, a pena é de reclusão de dois a oito anos (BRASIL, 1996). Assim, o Estado, ao implantar o planejamento familiar, instituiu determinadas regras impositivas, que violam o direito reprodutivo da mulher em decidir sobre seu próprio corpo e sobre seu sistema reprodutivo, restringindo a liberdade de escolha.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A violência é um ato cruel e não pode ser admitida, independentemente se for contra a criança, adolescente ou mulher. A violência obstétrica fere um dos momentos de grande expectativa na vida de uma mulher, ou seja, o parto.
Conforme visto no decorrer do texto, essa espécie de violência pode ser física, como é o caso de tapas, socos, empurrões ou beliscões. No entanto, ela pode se concretizar em sua versão psicológica, como é o caso do assédio, da perseguição por profissionais da saúde ou demais pessoas envolvidas. Outra modalidade que deve ser observada e denunciada é a ocorrência de uma falta de consentimento da gestante nas intervenções sobre o seu próprio corpo durante o parto. Por isso, recomenda-se o acompanhamento médico adequado desde a preparação do parto até o momento dele.
Importante destacar os mecanismos de denúncia em caso de violência obstétrica. Ela pode ser realizada no próprio hospital, clínica ou maternidade, ou seja, local onde a vítima foi atendida. Ainda, é possível ser realizada pelo disque 180 ou 136, números estes que são contatos que dão suporte de atendimento à vítima.
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Referências
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BONAN, C.; NAKANO, A. R.; TEIXEIRA, L, A. Os percursos do parto nas políticas de saúde no Brasil por suas testemunhas. História, Ciências, Saúde, Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 26, n. 1, p. 319 – 334, jan./mar. 2019.
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BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: https://bit.ly/3TbhGbb. Acesso em: 20 abr. 2022.
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DARUWALLA, N.; et al. Prevalence of domestic violence against women in informal settlements in Mumbai, India: a cross-sectional survey. BMJ Open, v. 10, n. 12, p. 1-14, 2020.
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