ASSÉDIO MORAL. O assédio moral apresenta diferentes denominações no Direito comparado. A despeito dessa diversidade de expressões, as definições confluem para significados comuns, atribuídos a partir das condutas relacionadas.
O fenômeno envolve comportamentos aversivos, abusivos, marcadamente hostis, que podem se realizar por diferentes meios, formas e estratégias, o que inclui abordagens nas redes sociais. A figura 1 ilustra algumas das ações frequentemente associadas ao assédio moral.
Figura 1: Abordagens comuns.
Fonte: elaborada pela autora.
Como se vê, o assédio moral tem conteúdo diverso, o que torna a conduta ‘generalística’, inespecífica, até porque a sua prática pode compreender, e geralmente compreende, diferentes ações.
Muitas vezes, o assédio moral comporta, no âmbito de uma mesma relação, comportamentos distintos e convergentes a propósitos nem sempre aparentes.
Diferentemente do assédio profissional ou institucional, o assédio moral carrega motivações pessoais (humilhar, diminuir, excluir, vencer, discriminar, destruir etc.). independentemente da ação nuclear, o assédio moral é sempre movido por propósitos. É sempre uma conduta propositada. Elaborei o quadro abaixo com base nos relatos informais de que tenho conhecimento.
CONDUTAS EMPREENDIDAS | PARA …
(finalidade, motivação pessoal) |
Constranger, desestabilizar emocionalmente, humilhar, isolar socialmente, perseguir, hostilizar, sabotar, maltratar, ridicularizar, expor, hostilizar etc. | Esvaziar a importância do outro. |
Banir, excluir, destruir, derrotar no contexto de uma possível competição entre os pares. | |
Descredibilizar. | |
Discriminar. |
Os preconceitos racial, afetivo-sexual e de classe podem basear, constituir ou atravessar esses motivos.
Quando da análise cuidadosa do fenômeno, ação e finalidade não se confundem, exceto se lidas sem uma adequada contextualização. Fato é que, a par dessa materialidade diversa, ação e finalidade são frequentemente tomadas uma pela outra.
O assédio moral é definido a partir dos requisitos e não de uma única ação nuclear, ilustrados na figura 2.
Figura 2: Características do assédio moral.
Fonte: elaborada pela autora.
A partir desses fundamentos, o assédio moral representa uma afronta à dignidade da pessoa humana (a seus direitos da personalidade) por meio de uma ou mais ações nucleares direcionadas a uma pessoa ou grupo, empreendidas com recorrência, intenção e propósito. A lesividade do assédio moral é inegável. Significa afirmar que toda ação carrega um conteúdo ofensivo.
A ideia de recorrência não remete necessariamente à frequência de uma mesma ação típica (repetição), podendo referir-se a um repertório de violências (figura 3).
Tratando-se de uma mesma ação nuclear, não é incomum observarmos a gradação de intensidade (processualidade).
Figura 3: Assédio moral como violência recorrente
Fonte: elaborada pela autora.
No âmbito do serviço público, não temos um tipo infracional específico (tipificação expressa). O enquadramento da conduta é feito de modo indireto, portanto, demasiadamente impreciso, tal como ilustrado na figura 4.
Figura 4: Subsunção indireta (exemplo de aplicação)
Fonte: elaborada pela autora.
A advertência é a penalidade mais leve. A reprimenda é aplicável aos casos de assédio de menor gravidade (baixo potencial ofensivo). De modo geral, a sua aplicação é cabida nas situações em que se verifica a inobservância dos deveres funcionais normativamente previstos e de desrespeito às proibições constantes no art. 117 da lei 8.112/90, inc. I a VIII e XIX.
A aplicação de uma sanção é função da gravidade da falta infracional. Os casos concretos devem ser compatíveis com as violações previstas (enquadramento).
ASSÉDIO PROFISSIONAL OU INSTITUCIONAL. O assédio profissional, também denominado de organizacional ou institucional é uma modalidade de assédio marcado pela impessoalidade e prevalência de objetivos meramente profissionais.
O assédio profissional é o abuso do poder diretivo (de gestão) orientado por demandas institucionais, estabelecidas à revelia da capacidade produtiva de seus agentes.
A qualificação do excesso ou despropósito das exigências se dá a partir da análise de sua real necessidade, pertinência e urgência, especialmente, da infraestrutura institucional disponível.
Como destacado, a motivação do assédio institucional quase sempre está relacionada a paradigmas de desempenho e eficiência, estabelecidos sem considerar a realidade do órgão, a capacidade produtiva dos servidores envolvidos e as condições e infraestruturais. Essa impessoalidade produz dúvidas acerca da ocorrência ou não do assédio. Nesse passo, atos de gestão são confundidos com o próprio assédio.
CONDUTAS EMPREENDIDAS | PARA …
(finalidade) |
Extrapolar repetidas vezes a jornada contratual por exigências desproporcionais, sobrecarregar, desrespeitar com frequência o período de desconexão do servidor ou servidora etc. | Aumentar os níveis de produtividade.
Melhorar a imagem do órgão. |
Obviamente, essas ações podem ser realizadas com motivação pessoal, o que descaracterizaria o assédio profissional. Esta é a razão pela qual o enquadramento da conduta demanda a consideração do contexto. Ambos os tipos de assédio são responsabilizáveis.
Figura 5: Tipologia de assédio.
Fonte: elaborada pela autora.
DESAFIOS À ERRADICAÇÃO DO ASSÉDIO NAS ORGANIZAÇÕES. São obstáculos à erradicação do assédio nas organizações (ponderação não exaustiva):
-a positividade tóxica e a repressão a dor. A positividade tóxica tem origem nos padrões de profissionalismo, os quais sugerem, com marcada sutileza, a fragmentação do sujeito (vida pessoal e profissional) e a necessidade de se criar máscaras sociais de proteção. Por certo não se trata de algo novo, talvez apenas a sua nomeação seja recente.
A positividade apropriada como regra, dever de “apresentar-se sempre bem”, de “silenciar as dores”, é extremamente opressora e silenciante. Estamos falando sobre uma positividade quase tirânica, portanto, não saudável.
É muito comum vítimas de assédio aceitarem a violência para não carregar rótulos como ‘pessoa difícil’, ‘problemática’, ‘desajustada emocionalmente’, ‘dodói’.
Em muitos casos, a positividade é “vendida” como solução, sugerindo a fuga ou negação de experiências e emoções negativas. Pois é, caríssimo(a) leitor(a) a positividade se transformou em um produto e instrumento de opressão, integrando-se à engrenagem da violência implícita.
Trata-se de um condicionamento que represa as emoções negativas e minimiza as dores e conflitos indiscriminadamente, sob o argumento de que a sua expressão comunica falta de profissionalismo.
inadamente, sob o argumento de que a sua expressão comunica falta de profissionalismo.
A positividade tóxica não apenas incentiva as pessoas a esconderem suas emoções, mas também pode criar pressões sociais para que elas aparentem estar sempre felizes e otimistas, mesmo quando enfrentam desafios ou dificuldades reais. (Machado, 2023, local. 3)
Reconhecer as emoções negativas e lidar com elas não implica forçosamente a promoção de atos de descortesia, incivilidade ou violência.
Não sem razão, a positividade tóxica é um dos óbices ao reconhecimento e denúncia de casos de assédio moral, dentre outras formas de violência no ambiente de trabalho.
Corroboro a interpretação de Whitney Goodman, ao concluir que a produtividade tóxica
“( … ) é uma força poderosa que ajuda a manter o sexismo, o racismo, a homofobia, a transfobia, o capacitismo, o elitismo classista e outros tipos de preconceito. Está em todo lugar.” (Goodman, 2022, Local. 90)
Expressões como <“Não foca nisso.”; “Esse tipo de coisa é normal.”; “Não leva pra sua vida;” “Deixa isso pra lá”; “Não dê importância”; “Não ligue pra isso”; “Isso acontece em todo lugar”; “É o jeito dele/ dela ” > são recorrentes no ambiente de trabalho. Acrescente o fato de que, para muitas pessoas, gestores ou não, o assédio moral é considerado ‘mimimi’.
Goodman (2022) destaca que a positividade saudável, diferentemente daquela tóxica e manipulada, abre caminho para uma esperança assentada em bases reais.
Por esses estímulos de passividade são constituídos os pactos sutis de tolerância e silêncio entre os pares no ambiente organizacional (a conivência passiva).
De fato, uma das principais consequências da positividade tóxica é a falsa superação das questões que produziram o desconforto ou a dor no âmbito das relações trabalhistas, o que resulta na banalização de situações opressivas.
– a estigmatização da pessoa assediada. As pessoas vitimadas de assédio têm o seu relato esvaziado por versões de corredor que mascaram a violência e oportunizam a atribuição de culpa à vítima, quase sempre por decorrência de rótulos e pela sua psiquiatrização (patrocinada por não especialistas). Infelizmente, as organizações estão repletas de psiquiatras e psicólogos formados nas redes sociais. Dessas versões, repetidas no contexto de diferentes casos, surgem as narrativas justificadoras que reduzem a gravidade do problema.
Com isso, reforço a tese de que a violência sofrida pelas pessoas assediadas ganham uma sobrevida indefinida, em razão da desconfiança, indiferença e o afastamento dos pares, alheios ao que de fato aconteceu. Afinal, quem se importa com a verdade? Cada que cuide de suas dores, não é mesmo?
A banalização do assédio, a estigmatização da pessoa assediada, as narrativas de oportunidade e a desinformação criam condições estruturais marcantes e facilitadoras da violência.
O “pós fato” é tão impactante como pervasivo, ao ponto de turvar os olhos da própria vítima, que em muitas situações, chega a duvidar se realmente ocorreu assédio. É nesse cenário que é conivência ativa e passiva se desenvolve.
A naturalização da violência afeta a relação do(a) servidor(a) com o trabalho realizado e as pessoas (colegas, familiares e amigos), produzindo desengajamento social, desmotivação, desconforto e improdutividade, ao ponto de tornar a convivência e a permanência insuportáveis. Para além disso, o assédio adoece.
Figura 6: Impacto do assédio moral.
Fonte: elaborada pela autora.
É nesse passo que o ambiente de trabalho transforma-se em um ‘não lugar’, dando ensejo a pedidos de remoção, em alguns casos até, de redistribuição.
– a ausência de deslinde para as denúncias realizadas, seja pela morosidade do processo apuratório ou pela prescrição da ação punitiva da infração disciplinar.
– a desinformação, o desinteresse em informar-se e a recusa do conhecimento. Além da desinformação acerca do que é ou não assédio, há uma recusa em reconhecer o seu impacto na vida de trabalhadores e trabalhadoras bem como naquela de seus pares, familiares e amigos.
Ouso afirmar que há uma resistência em conhecer o fenômeno, as suas características e os requisitos que o configuram, repercutidos na doutrina e na jurisprudência.
Tenho escutado discursos que afastam a ocorrência de assédio nos casos em que, supostamente, não há intenção de produzir os efeitos observados ou prejudicar a pessoa que fora alvo da violência.
Essas falas suavizam os fatos e descredibilizam as vítimas, que seguem vergadas por suas dores. Por essas ‘recusas’ tenho problematizado a efetividade das palestras (episódicas) que reforçam ou repetem conceitos.
Entendo que o campo de trabalho para erradicação do assédio é muito maior e complexo.
Referências
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GOODMAN, Whitney. Positividade tóxica: Como ser autêntico em um mundo obcecado pela felicidade. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2022.
MACHADO, Luís. Positividade tóxica. Edição Kindle, 2023