Uma importante decisão proferida em abril pela 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), publicada no Informativo n. 807, concentra importantes diretrizes à atuação de quem milita na advocacia especializada em violência doméstica e familiar contra a mulher. Em momento oportuno, houve o reforço de que as medidas protetivas de urgência, embora tenham caráter provisório, não possuem prazo de vigência, devendo vigorar enquanto persistir a situação de risco à ofendida.
Neste mês, destacam-se as principais notas comumente incidentes em casos práticos semelhantes ao julgado pela 6ª Turma do STJ (da relatoria do Min. Rogerio Schietti Cruz), conforme extrato divulgado no Informativo 807 (Superior Tribunal de Justiça, 2024). A despeito da tramitação ter ocorrido sob sigilo, a partir do resumo publicado, pode-se extrair importantes orientações que têm o potencial de aperfeiçoar a prática advocatícia especializada.
Imagina a situação: uma mulher vítima de violência doméstica, chamada Ana1 , procura um escritório de advocacia, pavorosa diante da iminência do termo final do prazo de vigência das medidas protetivas de urgência que lhe foram deferidas há 180 (cento e oitenta) dias. O juiz havia prefixado um prazo padronizado, usual para todas as medidas deferidas pela vara de violência contra a mulher. Ana entendia que a fixação de um prazo era inadequada diante do constante sentimento de medo que a apavorava com a mera possibilidade de reaproximação do agressor tão logo as medidas perdessem seus efeitos.
Antes do término do prazo judicial de vigência das medidas protetivas, Ana, psicologicamente abalada, requereu ao advogado destacado para acompanhar seu caso que este formulasse um pedido urgente ao juiz com o fim de obter a prorrogação desse prazo por tempo indeterminado, vez que entendia que o risco persistia. Ana relatou ao profissional que seu ex-companheiro, antes de ser intimado pessoalmente do deferimento das medidas protetivas, já havia a ameaçado em diversas ocasiões e que, caso ela recorresse à Justiça para delatá-lo sobre a violência que contra ela praticava, assim que possível, a mataria, não importasse quanto tempo que teria que esperar.
A prática forense revela a rotina judicial de fixar prazo de vigência às medidas protetivas de urgência, por ocasião de sua concessão, sob a justificativa de que estas não podem ser perenizadas, uma vez que o risco (pressuposto fático da decisão) igualmente não é perene. A solução universalizante de equalização de interesses contrapostos, ainda que imbuída de boas intenções, produz, em último domínio, uma armadilha perigosa posta à baila pelo STJ no julgado citado, posto que acaba por agravar o estado de vulnerabilidade da mulher vítima de violência doméstica e familiar, ao invés de minimizá-la.
Para quem atua na advocacia especializada, facilmente pode intuir que o risco jamais pode ser avaliado tão somente pelo ângulo de análise do juízo (o que inclui a equipe multidisciplinar), sem o prioritário julgamento conjuntural da vítima e a validação de seu sentimento de medo. Partir da presunção fria, camuflada na prefixação de prazo das medidas, de que o risco esvaiu-se por força do tempo, tempo este dosado e referenciado por quem não é vítima, provoca uma reexposição desta, antes protegida pela lei, o que é bastante perverso.
Via de regra, a despeito da indeterminabilidade temporal e da indefinição morfológica do risco à integridade física e psicológica da vítima que justifique a concessão da tutela, ele – o risco – opera em sintonia com o medo reconhecido, validado e experienciado por mulheres reais que buscam socorro através da solicitação de medidas de proteção. O medo em suas diversas representações exerce um poder de inocuização perversa sob essas vítimas e jamais deveria ser suspenso do raio decisional, assim como jamais deveria ser empregada a presunção de pacificação (nem sempre acompanhada da devida atenção à reparação dos danos no âmbito emergente das medidas protetivas) face ao cenário de violência sistemática contra as mulheres e de déficit de acesso à justiça, o qual compromete a efetividade da tutela legal.
Como advertem Prando e Borges (2020):
[…] a perspectiva genderizada de medo nos ensina que o enquadramento sobre o medo na cidade obedece também a uma ordem de gênero. O recorte que se apresenta como universal apenas dá conta de uma representação social do medo urbano relativo a crimes contra o patrimônio e crimes contra a vida, mas não se estende à produção do medo em relação às mulheres em seu movimento nas cidades e muito menos à produção nos espaços domésticos (MACHADO, 2014). Esse recorte enviesado (interpretado como universal) não permite, como vimos, que, na análise de alguns juízes, se compreenda a experiência do medo assinalada pelas mulheres.
Na prática, nota-se que cada juiz de cada Estado pode fixar o prazo que entender conveniente2, muitas vezes sem justificar expressamente o motivo da escolha do interregno e quais critérios objetivos o levaram à sua fixação. Normalmente, fica-se nas entrelinhas da decisão que, após a expiração do prazo de vigência das medidas protetivas, o risco que se proteja em todas as dimensões da vida da vítima esvai-se, e ela, assim como o agressor, seguirão sua vida em tranquilidade. A partir disso, infere-se que soluções universalizantes aplicadas em casuísticas complexas e que mobilizam dinâmicas de vidas reais são um retrocesso na luta contra a violência contra as mulheres em âmbito doméstico e familiar.
Com efeito, as crônicas da vida apontam para o sentido oposto, muito bem assimilado pelo STJ. Quem atende com certa frequência mulheres vítimas de violência doméstica ou familiar escuta rotineiramente que a conduta contumaz da pessoa agressora, promotora de uma espiral cumulativa de violência, justifica o temor da vítima em ser removida da tutela legal que a LMP oferece. Confusamente, a vítima é constrangida por uma outra ameaça, desta vez institucionalizada: a de que o simples transcurso de um prazo qualquer, alheio à sua opinião e validação, novamente a exporá ao mesmo risco que a apavora.
A Lei n. 14.002/2020, publicada durante a pandemia do COVID-19, determinou, em boa hora, que a concessão de medidas protetivas que tenham relação com atos de violência doméstica e familiar cometidos contra mulheres, crianças, adolescentes, pessoas idosas e pessoas com deficiência deveria ser mantida, sem suspensão. Algumas das razões dessa determinação legal já estavam presentes no cotidiano forense pré e pós-pandêmico, dentre elas a desinformação das vítimas sobre a possibilidade de perderem a proteção inicial, a sua dificuldade em recorrer ao aparato do sistema de justiça para buscarem a continuidade dessa proteção e a persistência do risco somatizada nesses entraves.
Como afirma Guilherme Costa Câmara (2008, p. 350), a agilidade na concessão das medidas protetivas de urgência pode revelar-se decisiva para a proteção efetiva da vítima. Assim como a agilidade na concessão pode ser crucial e determinante entre o morrer e o viver, a continuidade temporal destas também pode sê-lo diante da presunção de persistência do risco que atende aos fins sociais que a LMP se dirige e às exigências do bem comum (art. 5º, Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro). Não há locus exegético para a presunção de sua dissipação condicionada pela estipulação arbitrária de um prazo de vigência às medidas protetivas. A inversão da lógica protetiva, projetada no art. 226, parágrafo 8º, da Constituição Federal (CF), implica em burla de etiquetas com a exposição a constante perigo de mulheres vítimas de violência doméstica e familiar.
Nesse contexto, a 6ª Turma do STJ, por unanimidade, entendeu que não se presume a desnecessidade das medidas protetivas pelo transcurso do prazo de vigência, devendo haver imprescindível manifestação da vítima para a revogação destas, acompanhada da revisão periódica da necessidade de sua manutenção.
Conclui-se que a fixação de prazo para que as medidas protetivas surtam os efeitos esperados mediante o emprego de presunção de cessação de periculosidade da situação concreta fundamentadora operada pelo transcurso do tempo é um contrassenso espantoso e frustra os propósitos da Lei n. 11.340/2006. As medidas de proteção, por coerência, não deverão ter prazo de vigência e deverão surtir seus efeitos enquanto persistir a situação de risco à mulher vítima, tal como expressamente previsto no art. 19, §6º, da LMP.
Notas
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1. Nome e narração fictícios.
2. Vide: PARAÍBA. Governo da Paraíba. Notícias. Renovação de medidas protetivas pode ser realizada pela internet ou telefone. Renovação de medidas protetivas pode ser realizada pela internet ou telefone. 2020. Disponível em: site. Acesso em: 15 maio 2024.
Referências
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BRASIL. Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942. Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. Brasília, DF. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del4657compilado.htm. Acesso em: 15 maio 2024;
BRASIL. Lei n. 14.022, de 7 de julho de 2020. Brasília, DF. Disponível em: site. Acesso em: 15 mai. 2024;
CÂMARA, Guilherme Costa. Programa de Política Criminal orientado para a vítima de crime. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra Editora, 2008;
PRANDO, Camila Cardoso de Mello; BORGES, Maria Paula Benjamin. Concepções genderizadas na análise de deferimento das Medidas Protetivas de Urgência (MPUs). Revista Direito GV, São Paulo, v. 16, n. 1, 2020, p. 1-17. Disponível em: site. Acesso em: 15 mai. 2024;
SANTOS, Luís Antônio; NEME, Eliane Franco. Violência contra as mulheres no contexto pandêmico COVID 19: reflexões críticas acerca da intervenção do estado na proteção das mulheres vítimas de abusos domésticos. Revista Internacional Consinter de Direito, Paraná, Brasil, v. 9, n. 17, p. 355, 2023. DOI: 10.19135/revista.consinter.00017.16. Disponível em: site. Acesso em: 15 maio. 2024.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Informativo n. 807, de 16 de abril de 2024. Disponível em: site. Acesso em 6 mai. 2024.