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Avanço tecnológico significa progresso?

Avanço tecnológico significa progresso?

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Uma das características mais fortes na ideologia iluminista, na qual estamos imersos, é a ideia de progresso. De forma até mesmo inconsciente, a noção de linearidade histórica e então do progresso está incutida em nossas mentes.

A origem dessa noção de linearidade para o bem, ou seja, de que a história caminha como uma linha em constante evolução para melhor, não é só fruto da ideologia iluminista. Somos parte, principalmente os mais jovens, de um período histórico com predomínio da paz e da experiência democrática em solo brasileiro. É claro que isso é uma noção relativa, pois eu não desconsidero as inúmeras regiões no mundo que estão, hoje, em guerra.

Porém, a superação da guerra fria, a redemocratização e a revolução tecnológica que foi da fita cassete para o spotify em apenas 30 anos, nos fazem deduzir que o futuro será melhor.

Essa noção é falsa. E perigosa.

Avanço tecnológico não é sinônimo de progresso ou desenvolvimento social. Isso não significa, por óbvio, que o avanço tecnológico é inimigo do progresso humano.

Isso apenas significa que a tecnologia não pode ser compreendida como um elemento externo aos fenômenos sociais, que ela não é uma solução mágica para os nossos problemas, tampouco a nossa destruição.

Não muito distintamente, há a ideia romântica de que tecnologia vai nos salvar, seja do aquecimento global, da destruição da Terra, ou até mesmo de doenças que ainda não têm cura. Isso decorre da fé nos cientistas (um paradoxo, sim, mas real) e da ideia de que a ciência se desenvolve magicamente, sem interferência da política.

Assim, bom e mau, positivo e negativo, certo e errado, são binarismos que não ajudam na compreensão da relação da tecnologia com o ser humano. Tecnologias não são meros componentes ou oponentes, tampouco elementos intrínsecos ou transcendentes à humanidade, mas antes incorporáveis e hermenêuticos.

Como compreender a tecnologia, então? Talvez o melhor termo seja complexidade. Sim, o ser humano não fica pior ou melhor, evoluído ou atrasado, mas mais complexo. Ou seja, a tecnologia tende a tornar a vida humana mais complexa, aprofundando suas já existentes contradições, soluções e problemas. Posso tentar mostrar isso com um exemplo.

O avanço tecnológico, especialmente com a internet, nos permitiu um acesso virtualmente infinito a informações. Há quem associe esse fenômeno ao conceito geral de sociedade da informação. Além disso, uma pessoa pode se manter conectada a um número incrivelmente maior de pessoas.

Pense em um garoto de uma cidade do interior do Brasil, com cerca de 50 mil habitantes, no meio da década de 90. Considere que, de alguma maneira, ele teve acesso a um documentário sobre ETs. Uma fita empoeirada que por sorte o alcançou. Produzido por alguma produtora de TV, o documentário encanta o garoto, que passa a consumir tudo que pode encontrar sobre o assunto, vindo até mesmo a contagiar alguns de seus colegas, para os quais ele corre apressado para contar suas descobertas e elucubrações.

O garoto que gosta de ETs é um nerd excêntrico na cidade. Desperta sorrisos nos mais velhos, que observam apenas um jovem ávido por conhecimento. O hábito de leitura do garoto não pode fazer mal, e o leva mais tarde a um concorrido curso em uma universidade, já em uma cidade maior.

Por mais intenso que seja o interesse do garoto, há um limite para seu consumo em material sobre ETs. E mais ainda, há um limite de divulgação que pode ser feita por ele.

Hoje, um rapaz interessado no mesmo tema pode achar centenas de imagens, textos e vídeos sobre o assunto. Mais do que isso, ele pode produzir conteúdo falando sobre ETs. Mas por que isso não seria ótimo?

Não se trata aqui de uma visão pessimista da tecnologia. Muito pelo contrário. Rejeito o pensamento tecnofóbico tanto quanto aquele mais romântico. A chave é complexidade. O garoto que pesquisa ETs hoje vai se deparar com vídeos de cunho espiritual, negacionista, sensacionalista, científico e, principalmente, conspiracionista, que sugerem um “plano internacional organizado por poderosos para esconder a verdade das pessoas”.

Ele vai encontrar muitas pessoas que compram cada uma dessas versões, e poderá participar de um grupo que pensa como ele e o acolha. De uma visão conspiracionista, ele pode acabar saindo do plano dos ETs e caindo no mundo das conspirações, como terra plana, negação do aquecimento global e movimento antivacina. Para cada um desses movimentos, o garoto vai encontrar dezenas de vídeos, uns extremamente bem produzidos, com tons que simulam os documentários do History ou Discovery.

Se na década de 90 só poucas pessoas podiam ser lidas e ouvidas, hoje é qualquer pessoa, da mais sábia a mais idiota, que tem esse poder.

A questão, além dessa, é de como se alcança a informação.

Se na década de 90 (apenas para se segurar no exemplo) o material que caía na mão do garoto era extremamente limitado, por indicação, acaso ou coincidências. Isso hoje é bastante diferente. Como é já bem sabido, as plataformas de conteúdo como o youtube, e as redes sociais como o facebook, não estão preocupadas com a qualidade do conteúdo. A preocupação é essencialmente tempo de exposição via engajamento.

Veja só, não é que as TVs também não estavam preocupadas com tempo de exposição ou que tinham preocupação só com qualidade da informação. Porém, no momento de realizar uma entrevista para uma matéria, ou na hora de produzir um documentário, as pessoas procuradas eram bastante restritas, usualmente especialistas e, de algum modo, reconhecidas.

Não é, portanto, que a tecnologia pode ser usada para o bem ou para o mal. Pensar por aí é tentar surfar na areia. A questão de fundo é: como será a sociedade com nichos cada vez mais diversos, polarizados, radicais e autorreferentes?

No começo da internet, era imenso o otimismo com o novo tipo de acesso a informação. Hoje, não podemos deixar de ver esse otimismo como pura ingenuidade. Acesso “democrático” à informação, e também aos palcos das fontes de informação não deixaram a sociedade mais coesa, efetivamente mais democrática (sem aspas), menos ruidosa e conflitiva e, tampouco, com mais sabedoria.

Também não me coloco, e isso vale reiterar, na posição de saudoso de um passado que nunca existiu, no mesmo lugar daqueles que, na covardia de não dizer que odeia o outro que emerge ao lado, diz que prefere o passado.

Pois bem, não se trata de dizer que “o problema da tecnologia é o uso que se faz dela”, porque a tecnologia tem uma relação muito mais imanente na humanidade. Dessa revolução tecnológica, contudo, um tanto quanto confusa para quem busca compreendê-la no mesmo ritmo em que a vivencia, alguns elementos começam a ficar mais evidentes.

Dentre vários deles, o elemento que eu gostaria de destacar aqui é o seguinte: O direito há de se integrar a um mundo em que a informação (e a desinformação), desde o palco até a plateia, ganha centralidade em valor político.

E esse aumento do valor político da informação decorre de transformações nas noções de subjetividade e de coletividade, por sua vez permitidas pelos novos canais de comunicação, onde o dinheiro encontra crescente força gravitacional.

Isso quer dizer que, no fundo, a disputa é sobre quem podemos ser enquanto pessoas e de quais grupos pertenceremos, e, no âmbito político e jurídico, quem terá o poder de determinar essas subjetividades e pertencimentos.

Se politicamente observamos a impotência de medidas para o resguardo pessoal verdadeiro, bem como o isolamento social forçado – a despeito de cada vez mais conexão –, é que juridicamente, precisamos rever e repensar os instrumentos jurídicos para contenção desse poder, ainda que ele se apresente de modo difuso e tão fumacento.

Quando a privacidade parece perder completamente seus significados mais imediatos é que sua importância passa a se revelar.

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Rafael de Deus Garcia

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