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Black Mirror em terras Brasileiras

Black-Mirror

Está disponível na Netflix a série Black Mirror, que em 2023 lançou a 6ª temporada na plataforma de streaming. A badalada série retrata em episódios independentes histórias distópicas que envolvem temas de inovação e tecnologia (pelo menos em sua maioria) de uma maneira muito interessante. Se você não assistiu, vá assistir e volte aqui somente depois de maratonar todas as temporadas.

 

Episódio Joan a péssima

O tema que pretendo abordar hoje está relacionado ao primeiro episódio da sexta temporada, denominado “Joan, a péssima”. E, infelizmente, não terei como continuar com as reflexões que o episódio me proporcionou antes de contextualizar a história (spoiler alert!).

Joan, a personagem principal do episódio, é uma pessoa que vive uma vida comum. Ela é assinante de uma plataforma de streaming chamada “Streamberry”, semelhante até na identidade visual a própria Netflix. Após um dia de trabalho, liga sua televisão e se surpreende com um lançamento disponibilizado no serviço que conta a sua história. E a cada dia que passa um novo episódio é lançado, representando aquele dia que ela acabou de viver.

A personagem procura uma advogada e é orientada que há previsão nos termos de uso do serviço de que a plataforma poderia utilizar as informações dos seus usuários para produzir suas séries, tal como estava ocorrendo no seu caso. Em razão disso, passa a ser reconhecida por pessoas em diversos momentos, além de ter seus momentos mais íntimos expostos ao mundo inteiro.

A partir de então, sem qualquer tutela do ordenamento jurídico, Joan passa a pensar em formas de se livrar daquela situação constrangedora.

 

E se fosse no Brasil?

Não raras vezes encontramos algumas disposições questionáveis nos termos de uso de plataformas digitais. Especialmente nas plataformas de streaming, estamos diante de uma típica relação de consumo: o usuário é consumidor de um serviço, mediante remuneração, contratada do provedor de aplicação que é considerado um fornecedor.

Ao contrário do que retrata a série, especialmente na relação de consumo, no Brasil não se admite o simples argumento baseado na autonomia da vontade. Até mesmo no regime jurídico do direito civil, o conceito de autonomia da vontade foi superado pela autonomia privada, em que além da conjunção de vontades das partes celebrantes, também devem ser observados os direitos conexos, tal como a boa-fé e a informação.

A relação de consumo conta com todo o arcabouço normativo protetivo do consumidor, que apresenta inquestionável vulnerabilidade frente ao fornecedor. Além da situação de presumida vulnerabilidade, o consumidor ainda celebra um típico contrato de adesão e não há margem alguma para negociação. E nesse contexto, o CDC elenca como direito básico do consumidor “a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas”.

Mesmo que houvesse a referida disposição contratual aposta nos termos de uso de uma plataforma de streaming, tal como a própria Netflix ou Amazon Prime Vídeo, seria possível (e muito provável) a sua impugnação através do Poder Judiciário, com a consequente declaração de nulidade.

Isso, pois além da expressão previsão legal que fundamenta a pretensão do consumidor de questionar judicialmente a cláusula do negócio jurídico, o artigo 51 do CDC considera nula de pleno direito as cláusulas que “estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou que sejam incompatíveis com a boa-fé ou a equidade”. E não depende de muito esforço interpretativo para concluirmos que a referida cessão de direitos aposta em contrato de adesão coloca o consumidor em desvantagem exagerada, assim como também é incompatível com a equidade.

Não restam dúvidas, portanto, que o desfecho seria oposto ao apresentado na série. Contudo, ainda que o usuário conte com essa legislação protetora, não há motivos para o usuário alegar desconhecimento da sua previsão.

 

A importância de ler os termos de uso e políticas de privacidade

Ainda não integra a cultura das pessoas ler os termos de uso e políticas de privacidade das aplicações que acessa. Em grande parte, essa cultura não está inserida na sociedade em razão da conduta dos próprios provedores de aplicação e fornecedores em geral, que comumente se utilizam se juridiquês que desanima qualquer pessoa que não seja da área. Aliás, até mesmo nós somos desestimulados a ler tais documentos jurídicos, geralmente excessivamente extensos, técnicos e redigidos de maneira a não gerar qualquer interesse no consumidor.

Segundo uma pesquisa realizada por ThinkMoney, dentre 13 aplicativos conhecidos analisados, a leitura dos termos de uso dessas plataformas varia entre 36 minutos e 2h 27m.

 

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Outra circunstância interessante apurada pela pesquisa é que as gerações mais novas têm prezado pela velocidade dos conteúdos. A leitura dos termos de uso do TikTok duraria, em média, 1h 33m, tempo equivalente a 370 vídeos na mesma plataforma.

Algumas já são as iniciativas de tornar os termos de uso e política de privacidade mais acessíveis aos usuários. E é justamente esse o espírito da coisa, afinal, se o usuário está vinculado a um contrato, as regras devem ser previamente conhecidas e aceitas por todos os envolvidos. Essa facilitação gera não apenas ganho reputacional em razão do aumento da confiança do usuário em relação ao provedor de aplicações, como também tende a reduzir custos com atendimento ao cliente e até mesmo provisões de contencioso.

Isso é uma situação que não é exclusiva dos brasileiros. Tanto que uma seguradora norte americana inseriu em seu contrato de seguro-viagem uma cláusula que previa o prêmio de 10 mil dólares a quem identificasse a referida disposição que estava na sétima página, justamente para verificar a quantidade de pessoas que celebravam o contrato sem ler o seu conteúdo.

Também devemos lembrar que independente da forma que os documentos apresentam, cabe ao usuário ler e concordar com as disposições constantes nestes instrumentos. E no caso acima referido, a ganhadora leu o contrato extenso e, por isso, ganhou o prêmio. Mas devemos ler para conhecer os termos daquele serviço ou produto que compramos, independente da possibilidade de ganhar algo por isso. É a simples manifestação da boa-fé.

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