Recentemente foi amplamente divulgada na mídia a notícia de casamento de adolescente de dezesseis anos com o prefeito de cidade do interior do Paraná, de sessenta e cinco anos, mediante consentimento dos ex-titulares do poder parental, com nomeação da genitora da adolescente para ocupar cargo público diverso antes do matrimônio e sua exoneração posterior1 .
Tratou-se referido matrimônio de ato dotado de legalidade pois nos moldes do artigo 1517 do Código Civil a idade núbil é a de dezesseis anos, mediante autorização de ambos os pais enquanto não atingida a maioridade civil (aos dezoito anos – artigo 5º, “caput” do Código Civil), procedimento acatado na hipótese concreta em comento, em harmonia com o veiculado pela imprensa em âmbito nacional.
Adquirida a capacidade civil pela adolescente nos moldes do artigo 5º, parágrafo único, inciso II do Código Civil e regular o ato praticado sob os ditames legais, somente hipoteticamente poderia ser anulado o casamento em consonância com o artigo 1552 do Código Civil por iniciativa do cônjuge menor, por seus representantes legais ou ainda por seus ascendentes, sob a premissa de ausência de gravidez, em restando delineados os requisitos do artigo 1550 do mesmo Codex, no caso mencionado como paradigma, essencialmente por vício de vontade, incapacidade na outorga de consentimento, vício de natureza formal grave o que, pelos informes transmitidos publicamente, não corresponderia à realidade fática.
Como não nos recordamos de quaisquer notícias de casamento de menor de dezesseis anos do gênero masculino com mulheres cuja idade suplante o patamar sexagenário em território nacional, evento que se não impossível é pouco provável no plano empírico, algumas reflexões relevantes devem ser concretizadas.
A Organização das Nações Unidas (ONU) qualifica o casamento infantil como a união formal em que ao menos uma das partes não possua dezoito anos. Em números absolutos, o Brasil ocupa o quarto lugar no mundo em casamentos infantis, segundo pesquisa do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) perdendo apenas para Índia, Bangladesh e Nigéria 2 .
O casamento infantil, pautado por desigualdade estrutural, gera gravidez precoce, não raras vezes perigosa à mantença da vida e saúde da adolescente, dependência financeira, abandono dos estudos, violência doméstica e perpetuação da diferença de gêneros 3 .
É crucial que pensemos a propósito de positivas condições de adolescentes, aos dezesseis anos, em manifestarem livremente suas respectivas vontades no que tange ao casamento enquanto negócio jurídico especial4 .
A propósito dos contratos, que se assemelham em essência ao negócio jurídico especial do casamento com ressalvas de suas peculiaridades, preconiza o artigo 421-A do Código Civil que se presumem paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção.
Pois bem. Façamos uma leitura mais acurada da manifestação de vontade de alguém no auge de seus dezesseis anos que declara anuir na contração de matrimônio com sexagenário, face à casuística noticiada. Caso enfoquemos nossa legislação civil sem o viés constitucionalista, abstraindo em absoluto a imprescindibilidade de alcance de igualdade substancial entre homens e mulheres, certamente iremos nos deparar com a ilusória impressão de que a paridade e simetria deve ser presumida no contexto.
Todavia, tem-se em verdade como bem caracterizado o desajuste da legislação civil frente à problemática do casamento infantil o que, sem dúvidas, corrobora para a inserção de nosso país em quarto lugar no mundo quanto ao casamento de menores.
Objetivamente, caso aos dezesseis anos pudesse ser suposta a capacidade civil plena em decorrência das condições psíquicas, emocionais, orgânicas do desenvolvimento humano, não teria elencado o diploma da lei material os dezoito anos como idade peculiar ao alcance da maioridade e plena capacidade para a prática dos atos da vida civil em geral.
É preciso também lembrar que a estrutura social naturaliza a grande diferença de idade nos relacionamentos entre homens e mulheres na falsa crença do amadurecimento precoce feminino, estimulando a ideia de que meninas são mais maduras que os homens, e, portanto, seria perfeitamente possível, e talvez dizer natural, o casamento infantil.
De acordo com esse argumento, as meninas são consideradas aptas a se casarem ainda na adolescência, via de regra, com pessoas adultas, de forma a equipará-los a um mesmo patamar de desenvolvimento psicossocial e sexual. O que se sabe não corresponder à realidade, tanto que o casamento com pessoas menores de 18 anos de idade é denominado como casamento infantil consoante Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (CRC), assinada e ratificada pelo Brasil em 1990, reitere-se.
É preciso atentar para a obviedade da circunstância de serem novas demais para se manterem sozinhas, restando inseridas as adolescentes em relações marcadas pela dependência e submissão ao marido em substituição à figura parental.
Veja-se que as mulheres começaram a ser inseridas no mercado de trabalho a partir do século XX, o que as distanciou da independência econômica e ainda as distancia. A entrada tardia da mulher no mercado de trabalho traz a consolidação da ideia de que ela não possa exercer uma profissão e, por outro lado, o homem ainda é visto como o provedor da família o que leva a sociedade a concluir que elas precisam se casar com alguém que sustente a futura família e nesse caso, será um homem adulto o único capaz de fazer isso, refletindo a desigualdade de gênero, com as representações simbólicas que persistem no papel do provedor, a ser desempenhado pelo homem; e o papel da cuidadora que deverá ser representado pela mulher com a imprescindível observação de que as mulheres negras, pardas , com baixa escolaridade e condições socioeconômicas desfavoráveis já trabalham informalmente desde a infância para colaborarem com o próprio sustento e de seus grupos familiares.
Os referidos papéis relacionais com acentuadas distinções etárias, condições econômicas e de autonomia foram se modificando e “modernizando” até chegarmos na hoje conhecida união do sugar daddy, também conhecido como blessers, com a sugar baby, que pode ser resumida na relação entre um homem mais velho e rico com uma mulher jovem e bonita; sendo a função do primeiro prover luxos femininos em troca de afeto, carinho e atenção da segunda, com conteúdo em regra sexual.
Essa forma de relacionamento chega ao Brasil em 2015, já contando com redes sociais especializadas em promover e facilitar o encontro das partes interessadas, com o detalhe que em tais casos a mulher deve ser maior de 18 anos de idade.
Mas, na prática, o que se tem é a perpetuação da sociedade patriarcal que mantem a objetificação das mulheres propagando a cultura da eterna juventude feminina, e, portanto, a erotização da juventude da mulher que tem sua existência validada apenas para agradar um homem adulto, o qual preconiza um efetivo “prazo de validade” para as mulheres.
É deveras estarrecedor o fato das adolescentes serem submetidas a casamentos precoces em fases de seus desenvolvimentos individuais que não lhes permitem, ainda, a emissão firme e consciente de vontade. A propósito, em 2018 foram 144.741 os casamentos de meninas, dentre os 1,43 milhões de casamentos, segundo o IBGE; e na prática até mesmo casamentos de meninas com idades abaixo da idade legal, mais questionável ainda a mantença no ordenamento jurídico, incongruente que uma garota venha a se casar com 16 anos mas esteja impedida de realizar outros atos da vida civil, inclusive encontrando-se albergada pelo Estatuto da Criança e Adolescente. Impossível não pensar no total paradoxo legislativo.
É indispensável que as meninas, bem como suas famílias, deixem de enxergar no casamento a oportunidade de adquirir segurança econômica, proteção quanto às vicissitudes da existência e gravidez precoce para suposta reparação de reputação moral, bem como rota de fuga de lares conflituosos e violentos. É preciso que essas meninas vejam o casamento tão somente como ato de escolha livre de amor e de constituição de parentalidade e não de necessidade de sobrevivência; a dinâmica é permeada pela assimetria de poderes entre gêneros a qual contribui pela abusividade da relação, mediante controle do homem sobre a mulher, exigindo-se da última o cumprimento do seu “papel social”, deixando-a suscetível a violências físicas, sexuais e psicológicas o que cabe a toda a sociedade combater.
Referências ____________________
1- http://glo.bo/3NSlWNd, matéria veiculada em 06/05/2023, acessada em 08/05/2023;
2- https://bit.ly/3HWlcms, matéria publicada em 23/02/2022, acessada em 08/05/2023;
3- @liliaschwarcz, texto datado em 26 de abril de 2023, acessado em 08/05/2023;
4- TARTUCE, Flávio, Direito Civil: Direito de Família, 9ª ed, Método, São Paulo, 2014, p. 48;
5- TIRIBA, Thais Henriques. “Sugar relationships: sexo, afeto e consumo na África do Sul e no Brasil”. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 27, n. 3, e66921, 2019. Disponível *1806-9584-2019v27n366921.pmd (scielo.br). Acesso em 05/05/2023.