A 4ª edição do relatório Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil, 2023, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apontou que em 2023 operou-se elevação nos níveis de vitimização por violência doméstica e familiar entre mulheres no Brasil, constatado crescimento acentuado de formas de violência grave, hábeis a ensejar a morte da mulher, destacados casos de perseguição, agressões como tapas, socos e chutes, ameaça com faca ou arma de fogo e espancamentos1. A mesma fonte através do 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública:20242 discriminou aumento de 0,8% no número de feminicídios (1.467) com maior proporção de vítimas negras, 71,1% entre 18 e 44 anos.
Reproduzidos os números de feminicídios em relação à proporção da população majoritária brasileira, inseridas mulheres negras em contexto de dificuldades econômicas mais expressivas e em situação de vulnerabilidade social, em que as diferenças de gêneros nas relações de poder inclusive são mais impactantes, não encontramos melhores prognósticos em termos de, ao menos, estagnação dos índices de violência contra a mulher, a partir da denominada classe média e aquelas camadas da sociedade com concentração de renda mais elevada.
Não obstante tais grupos ostentem maior acesso à educação, moradia, com integração positiva no mercado de trabalho, com percepção de serviços de saúde e diversas benesses, podendo ser categorizadas como classes “privilegiadas” frente ao quadro de desigualdade social brasileiro, o que vem se consolidando é o aumento da violência contra as mulheres também nessas conjunturas.
Dentre os diversos fatos trágicos veiculados pela imprensa, derivados da prática de delitos desse jaez, assistimos à notícia da morte da jovem professora de pilates em Ribeirão Preto, Larissa Rodrigues, a qual veio a óbito após tomar, consoante arguido por pessoa acusada (ex-sogra da vítima), acidentalmente, remédio que estaria contaminado com raticida.
O Ministério Público estadual teria apontado que a sogra de Larissa, a vítima fatal, a ora detida Elizabete Arrabaça, teria pesquisado sobre “chumbinho” na internet, de modo precedente ao delito. A versão da ex-sogra da vítima, inclusive por intermédio de uma carta que teria redigido e divulgado, seria no sentido de que nem ela, nem a vítima, teriam conhecimento de que pílulas de omeoprazol (medicamento ingerido pela vítima) estariam infectadas pelo veneno. Tais pílulas pertenceriam a Nathalia Garnica, outra filha de Elizabete, falecida em data não longeva. Fato é que as autoridades providenciaram a exumação do corpo de Nathalia, ainda sem resultado quanto ao exame cadavérico, a fim de apurar a causa da morte de Nathalia. A assertiva de Elizabete seria, portanto, de eclosão de mero acidente. Segundo a autoridade policial, a vítima fatal teria relatado a algumas amigas que teria se sentido mal, com diarreia, toda vez que a sogra a encontrou; sob outro turno, Elizabete teria telefonado a uma amiga, fazendeira, indagando se a mesma possuiria chumbinho, inquirindo a respeito do local onde poderia adquirir o produto. A mesma autoridade pública teria declinado, ainda, que o esposo de Larissa, também preso na atualidade, médico ortopedista, encontrara a vítima sob rigidez cadavérica e teria tentado limpar o imóvel residencial para eliminar eventuais pistas, além de ostentar relação extraconjugal e acessar a conta bancária da vítima fatal após o óbito, 3 segundo o gerente de banco em Pontal. Para aludida testemunha, o esposo da vítima teria admitido haver utilizado o cartão de débito da vítima para pagar conta de R$2.500,00 em farmácia; ainda, teria tentado fazer transferência de numerário da poupança de Larissa, sem viabilização do procedimento pelo aplicativo bancário. A conta da vítima não seria de Pontal e o acusado teria entrado várias vezes em contato buscando desbloqueio para acesso bancário, manifestando interesse em alternativas para dispor do numerário4. Finalmente, em 13 de junho de 20255 a defesa do esposo da vítima teria sugerido o interesse da sogra da vítima em haver valores de previdência, sendo, portanto, Luiz, o esposo de Larissa, a próxima vítima potencial da própria mãe, Elisabete.
Até o momento de elaboração do presente texto, foram esses os dados divulgados publicamente no que tange a apuração de fatos e dinâmicas envolvendo o óbito de Larissa Rodrigues, indubitavelmente classificado como episódio de feminicídio.
Os acusados do crime supra descrito encontram-se presos na atualidade, são representados por causídicos e os procedimentos de natureza penal encontram-se sob regular tramitação, sendo certo que a apuração do delito e responsabilização na seara criminal há de se consumar sob a égide dos princípios da legalidade, devido processo legal, contraditório, ampla defesa.
Não obstante, quando assistimos a uma novelesca narrativa de triste e injustificável feminicídio sob as intrincadas hipóteses e circunstâncias descritas, o que nos chama a atenção é a clara quebra do paradigma preconceituoso de que violência doméstica seria fenômeno peculiar às camadas menos favorecidas economicamente da população e com grau de instrução sem relevância.
A suspeita de participação no delito ora recai sobre o esposo da vítima, médico ortopedista e sua mãe idosa. Na presente fase do procedimento investigativo, a defesa de Luiz levanta a hipótese de que a responsável exclusiva pela morte de Larissa seria sua sogra, Elisabete, a qual tencionaria (ou poderia assim se efetivar) matar o próprio filho Luiz (esposo da vítima) com escopo de apropriação de numerário correspondente à contratação de plano de previdência. Elisabete, por seu turno, nega em missiva qualquer escopo deliberado quer em envenenar Larissa, quer a própria ciência da ministração de veneno pois, acidentalmente, cápsulas de omeoprazol, que teriam pertencido à Nathalia, filha falecida de Elisabete, estariam contaminadas com chumbinho e teriam sido ingeridas por Larissa, consoante sua defesa.
Sem embargo da dinâmica do evento ilícito poder ser elucidada em momento vindouro, com apreciação de condutas pelo juiz natural da causa (conselho de sentença) após pronúncia de eventuais réus com penalização, ou absolvição, o que nos induz a refletir em virtude dos caracteres do feminicídio de Larissa é justamente a tônica de aparente superficialidade dos relacionamentos humanos em descompasso com a extrema valorização do aspecto material da existência (dinheiro em previdência, patrimônio, suposta pretensão de apropriação exclusiva de bens, etc).
O fato humano não se dissocia de acentuada complexidade. No campo das conjecturas, poderemos assistir a diferentes desfechos do julgamento do caso Larissa Rodrigues. A prova coligida aos autos será esmiuçada e referida pelos operadores do direito no processo de explanação aos jurados dos fatos para o respectivo convencimento e emissão de veredictos.
Além desse procedimento, o constitucionalmente albergado – artigo 5º XXXVIII– e factível para responsabilização penal, ficamos com a áspera e isolada indagação: o que está ensejando o aumento da violência doméstica e familiar na sociedade contemporânea?
Ao aludir à violência sistêmica6, BYUNG-CHUL HAN explana:
“A situação geradora de violência muitas vezes está no sistema, no arcabouço sistêmico no qual está inserido. Assim, as formas de violência manifestas e expressas se referem às estruturas implícitas que estabelecem e estabilizam uma ordem de domínio e que, como tais, eximem-se de visibilidade. Também na base da teoria de Galtung, “violência estrutural”, encontramos a hipótese de uma medianidade estrutural da violência. As estruturas edificadas e implícitas no sistema social fazem com que persistam os estados de injustiça; estabelecem e descrevem as relações de poder desiguais, sem se revelarem como tais. Em virtude de sua invisibilidade, as vítimas da violência não têm consciência direta do contexto de domínio. E isso é que caracteriza sua eficiência”.
O que fomenta o feminicídio, o terreno fértil por assim dizer que faz com que possa eclodir, consubstancia fator claramente intrincado com a violência estrutural, pressupondo o estabelecimento de relações de poder desiguais que não se exteriorizam desse modo, em um primeiro momento. Foi Larissa Rodrigues que morreu envenenada, não o ex-cônjuge ou a ex-sogra, ora detidos, é indispensável pontuar.
Já tivemos oportunidade de nos referirmos aos estudos de Marilena Chaui sobre a violência7 e a reiteração, mais do que oportuna, é imprescindível:
“Em resumo, a violência não é percebida ali mesmo onde se origina e ali mesmo onde se define como violência propriamente dita, isto é, como toda prática e toda ideia que reduza um sujeito à condição de coisa, que viole interior e exteriormente o ser de alguém, que perpetue relações sociais de profunda desigualdade econômica, social e cultural, isto é, de ausência de direitos. Mais do que isso, a sociedade brasileira não percebe que as próprias explicações oferecidas são violentas porque está cega para o lugar efetivo de produção da violência, isto é, a estrutura da sociedade brasileira” (grifei).
Ao par do caráter estrutural da violência, ainda podemos nos socorrer das elucidações de Bauman (2001) e seu conceito de modernidade líquida, o qual ponderou serem os sólidos diluídos contemporaneamente, sem previsão de substituição, são os elos que entrelaçavam indivíduos e ligavam o sujeito ao outro. Consumo e violência destacam-se como fenômenos típicos das novas formas de relação com os outros e com os objetos do mundo8.
“A precariedade da existência social inspira uma percepção do mundo em volta como um agregado de produtos para consumo imediato. Mas a percepção do mundo, com seus habitantes, como um conjunto de itens de consumo, faz da negociação de laços humanos duradouros algo excessivamente difícil (Bauman, 2001, p. 188)” (grifei).
Por conseguinte, a gênese da violência doméstica e familiar é multifatorial, mas tem o seu âmago vinculado a uma estrutura social violenta, que perpetua relações assimétricas de poder entre homens e mulheres, em detrimento das últimas, com inserção no amplexo de uma dinâmica de vida consumista e individualista onde valores éticos, com transparência, boa-fé sem se descurar do dispêndio de esforços para entabulação de relações humanas saudáveis e produtivas, estão em franco declínio.
Vida alguma de vítima de feminicídio pode ser substituída. E essa peremptoriedade da inescusável circunstância – feminicídio- não pode ser abstraída muito menos tolerada por todos nós.
Referências
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1. www.publicacoes.forumseguranca.org.br, Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil, 4ª edição-2023, acessado em 13/06/2025;
2. https://publicacoes.forumseguranca.org.br, FBSP, 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública:2024, acessado em 13/06/2025;
3. www.noticias.uol.com.br, Cotidiano, Sogra suspeita de matar nora diz que envenenamento foi acidental, 04/06/2025, acessado em 13/06/2025;
4. www.g1.globo.com, Ribeirão e Franca, Marido preso pagou conta e tentou fazer transferência com dinheiro de professora morta envenenada, diz gerente de banco, Romão, Bruna, 09/06/2025, acessado em 13/06/2025;
5. www.g1.globo.com, Vídeos Jornal da EPTV 1ª edição, “Médico Luiz Antonio Garnica suspeita que poderia ser morto pela mãe”, acessado em 14/06/2025;
6. HAN, Byung-Chul , Topologia da violência, Petrópolis, RJ, Vozes, 2017, Pág 167/168
7. CHAUI, Marilena, Sobre a Violência, 1ª edição , v. 5, Belo Horizonte, Autêntica, 2025
8. BARROSO, Adriane de Freitas, “Consumo e Violência: Respostas à Inexistência do Outro na Modernidade Líquida”, Revista Eletrônica do Núcleo Sephora, Volume V, número 9, nov/2009 a abr/2010, p. 13;