Caso Tencent: proteção da criança e do adolescente no ambiente virtual frente ao direito à intimidade

Caso Tencent: proteção da criança e do adolescente no ambiente virtual frente ao direito à intimidade

pessoa jogando videogame da tecent

A Tencent, uma das maiores distribuidoras de jogos eletrônicos da China, passará a utilizar um recurso denominado “patrulha da meia-noite”, que em síntese é um sistema de reconhecimento facial com a finalidade de garantir que crianças e adolescentes não possam jogar em horários que lhes são impróprios (entre 22h e 08h), ou mais do que o limite de 90 minutos por dia, determinações impostas pela legislação chinesa. A decisão é controversa na medida em que exige-se que os usuários façam registros com documentos ligados a base de dados nacional, bem como pela própria imposição do reconhecimento facial, o que viola informações sensíveis segundo especialistas ao redor do mundo.1

A medida adotada pela empresa chinesa está na contramão do mundo, uma vez que inseridos na sociedade de informação, passou-se a perceber a importância de se promover a proteção dos dados pessoais. Nessa linha de intelecção, o Brasil tem uma Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) cujo objetivo é garantir mais transparência e segurança às informações pessoais coletadas pelas empresas. Ressaltando que imagens do rosto, como as necessárias ao reconhecimento facial, são consideradas sensíveis pela LGPD.

Considerando que se caminha cada vez mais e com maior intensidade para uma sociedade governada por dados, o ambiente social no qual se concretiza a ideia de privacidade informacional passa a ser qualificado pela proteção dos direitos da pessoa de manter o controle sobre seus dados, por meio de sua autodeterminação informativa (liberdade), visando a não discriminação (igualdade). Portanto, o problema da privacidade hoje é causado pelo conflito consequente da assimetria de poderes existente entre os titulares de dados e aqueles que realizam o tratamento dos dados. Esta assimetria gera um desequilíbrio social que, por sua vez, leva à violação dos princípios da igualdade e da liberdade. Proteger de maneira rigorosa os dados pessoais sensíveis se torna, assim, instrumento para a efetivação da igualdade e da liberdade.2 

Em relação a assimetria de poderes existentes entre os titulares de dados e aqueles que tratam os dados. Agrava a situação, que no caso em tela, são coletados dados de menores em uma relação de consumo, ressaltando que os mesmos são hipervulneráveis.

Frisa-se que não há óbice em relação à criança ser sujeito de uma relação de consumo.

Em nossa sociedade de consumo, a criança consumidora vive em um mercado globalizado, acessa internet para comprar jogos eletrônicos, identifica-se com as margas de grandes empresas mundiais, quer viver experiências lúdicas e distrativas e, assim como os adultos, também quer consumir para satisfazer seus gostos e suas necessidades pessoais. Espelho dos pais e da sociedade que vive, a criança não está de fora da festa do consumo.3 

Todavia, no que se refere ao consumidor criança e adolescente sobressai o aspecto da hipervulnerabilidade ou vulnerabilidade potencializada. Em reconhecimento dessa condição de hipervulnerabilidade, os mesmos merecem um tratamento desigual, pressupondo-se diferenciações necessárias, a fim de que se reduza a desigualdade a que são submetidos.4

Pretende-se esclarecer que as crianças estão muito mais vulneráveis a ceder seus dados pessoais a empresas, pois tem menor condição de balizar os prós e contras de ceder suas informações pessoais em troca do mero acesso a um jogo eletrônico.

Ressalta-se que a utilização de mecanismos como reconhecimento facial para acesso à jogos eletrônicos com a finalidade de reduzir o consumo excessivo de jogos eletrônicos por parte de criança e adolescentes não é efetivo, já que os mesmos por meios lícitos podem se utilizar de uma Virtual Private Network (VPN) associada a um outro país, e acessar o jogo sem se submeterem ao login dependente de reconhecimento facial. Desse modo, a medida adotada pela empresa chinesa, presta-se tão somente a possibilitar eventual vazamento de dados de crianças e adolescentes.

Cumpre salientar, que sequer é plausível o argumento de que uma empresa de jogos eletrônicos coleta dados pessoais de seus jogadores com a finalidade de limitar o tempo de acesso a jogos, e por conseguinte, evitar a propagação de vício em videogame. Mas, que, ao mesmo tempo, disponibiliza em seus jogos, loot boxes,5 essas com aptidão para potencialmente desencadear um vício em videogames em crianças e adolescentes.

Para fins de se reduzir o consumo excessivo de jogos eletrônicos por parte de crianças e adolescentes é necessário a adoção de medidas educativas.

Não subestimem os mundos virtuais e não os demonizem.  Os mundos virtuais, primeiro lugar e antes de mais nada, são simplesmente um outro lugar para as pessoas se realizarem, para o melhor ou para o pior.6

Jogos eletrônicos, nada mais são que um mundo virtual, e não são mais viciantes do que filmes, e portanto, não devem ser demonizados. Inclusive os jogos eletrônicos podem ser utilizados como uma ótima ferramenta para aprendizado de crianças e adolescentes, bem como para inclusão de pessoas com deficiência.

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Clayton Douglas Pereira Guimarães

Glayder Daywerth Pereira Guimarães

 

Referências

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1. EMPRESA chinesa vai usar reconhecimento facial para barrar menores jogando até tarde. G1. Disponível em: https://glo.bo/3xzSosx. Acesso em 11 jul. 2021.

2. MULHOLLAND, Caitlin Sampaio. Dados pessoais sensíveis e a tutela de direitos fundamentais: uma análise à luz da lei geral de proteção de dados (Lei 13.709/18). Revista de Direitos e Garantias Fundamentais. v. 19. n. 3, p. 159-180, 2018. Disponível em: https://sisbib.emnuvens.com.br/direitosegarantias/article/view/1603. Acesso em 11 jul. 2021.

3. DENSA, Roberta. Criança consumidora: A responsabilidade dos pais em relação aos filhos frente aos demais desafios da sociedade de consumo. In: ROSENVALD, Nelson; MILAGRES, Marcelo (Coords.). Responsabilidade Civil: Novas Tendências. Indaiatuba: Editora Foco. 2017, p. 387.

4. [1] SCHMITT, Cristiano Heineck. Consumidores Hipervulneráveis: A proteção do idoso no mercado de consumo. São Paulo: Atlas. 2014, p. 217.

5. Em relação a Loot Boxes recomenda-se a leitura de: FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; DENSA, Roberta. Para além das Loot Boxes: Responsabilidade Civil e Novas Práticas Abusivas no Mercado de Games. In: FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; ROZATTI LONGHI, João Victor; GUGLIARA, Rodrigo (Coords.). Proteção de dados pessoais na sociedade da informação: entre dados e danos. Indaiatuba: Editora Foco. p. 333-355, 2021.

6. BLINKA, Lucas; SMAHEL, David.   Dependência   virtual   de   role-playing   games. In:  YOUNG,  K.  et al. Dependência de Internet:  Manual e Guia de Avaliação e Tratamento, Porto Alegre: Artmed, 2011, p. 115.

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