Chás de revelação de genitália: um poderoso dispositivo performativo do sistema sexo-gênero

Chás de revelação de genitália: um poderoso dispositivo performativo do sistema sexo-gênero

Menino-ou-menina

Em nosso dia-a-dia, nos deparamos com o potencial da criatividade humana e a sua imparável repetibilidade acrítica e ingênua. Entre as últimas “invenções” que conversem diretamente com os estudos de gênero, podemos citar os chamados chás de revelação – os quais, neste artigo, chamo, cenicamente, admito, de chás de revelação de genitália.

Afinal, pessoas reunidas, com sentimento de grande excitação em torno de uma pessoa grávida que está ou não prestes a dar à luz, esperando a revelação, por meio de cores que inundam desde bolos a rios da nossa flora e fauna, da genitália que carrega um corpo ou um ser que sequer chegou a nascer, esperam, nada menos, que a revelação se aquele carregará, consigo, um pênis, uma vagina ou uma genitália ambígua.

Pensei que já tinha visto de tudo, mas, risos, balões, docinhos, salgadinhos, cerveja, berros e gritos, em razão de uma possível genitália de um ser que possivelmente nascerá, leva-me a um cenário, que eu gostaria que fosse de ficção científica, de histeria coletiva e paranoia. Porém, toda essa loucura possui uma base de análise linguística, filosófica e, até mesmo, antropológica e sociológica e se posiciona em lugar que vai além da mera decretação de uma masculinidade ou feminilidade a um corpo; mas, sim, funciona no interior da lógica de um sistema de sexo-gênero cisheterocentrado.

Para Butler,1 “a matriz cultural por meio da qual a identidade de gênero se torna inteligível exige que certos tipos de ‘identidade’ não possam ‘existir’ – isto é, aqueles em que o gênero não decorre do sexo e aqueles em que as práticas do desejo não decorrem nem do ‘sexo’ e nem do ‘gênero’”. Ademais, a coerência ou a unidade interna de qualquer dos gêneros, homem ou mulher, exigem, assim, “uma heterossexualidade estável a oposicional. Essa heterossexualidade institucional exige e produz, a um só tempo, a univocidade de cada um dos termos marcados pelo gênero que constituem o limite das possibilidades de gênero no interior do sistema de gênero binário oposicional”.2

Analisar o gênero sob tal ótica, admite o que Butler denomina de “visão do gênero como substância”, na qual “a instituição de uma heterossexualidade compulsória e naturalizada  exige e regule o gênero como uma relação binária em que o termo masculino se diferencia do termo feminino, realizando-se essa diferenciação por meio das práticas do desejo heterossexual”.3 E, assim o sendo, “o gênero não é um substantivo, mas tampouco é um conjunto de atributos flutuantes, pois vimos que seu efeito substantivo performativamente produzido e imposto pelas práticas reguladoras da coerência do gênero”.4

Butler, então, constrói a ideia de que o corpo “é modelado por forças políticas com interesses estratégicos em mantê-lo limitado e constituído por marcadores sexuais”;5 consequentemente “o corpo não é uma materialidade pura, pré-cultural, pré- discursiva, ‘virgem’ de todo poder, aquém dessa produção disciplinar que o constitui”.6

Se tomamos como ponto de partida que o entendimento da diferença sexual é, por diversos autores e diversas autoras, inclusive da teoria feminista, invocada como uma diferença  material entre os corpos, há salientar que “a diferença sexual é sempre uma função de diferenças materiais que são, de alguma forma, marcadas e formadas por práticas discursivas”.7 Não apenas isso, mas Butler ainda reforça que “alegar que diferenças sexuais são indissociáveis das demarcações discursivas não é o mesmo que afirmar que o discurso produz a diferença sexual”.8 Isto, porque, “a categoria ‘sexo’ é, desde o início, normativa; é o que Foucault chamou de ‘ideal regulatório’. Nesse sentido, então, ‘sexo’ não só  funciona como norma, mas também é parte de uma prática regulatória que produz os corpos que governa”.9

O “sexo”, portanto, produz, demarca, diferencia, os corpos que controla. Assim, “‘sexo’ é um ideal regulatório cuja materialização se impõe e se realiza (ou fracassa em realizar) por meio de certas práticas altamente reguladas. […] ‘sexo’ é um constructo social forçosamente materializado ao longo do tempo”.10 Não é, portanto, o sexo, uma marca, uma insígnia anatômica ou uma condição estática do corpo que determina, por ela mesma, o gênero, o desejo, o prazer e o próprio corpo como uma inscrição pré-discursiva, alheia às normas que regulam e regem os seres e os sujeitos, mas, sim, o “sexo” se perfaz por meio de uma reiteração forçada de normas que regulam e acabam por materializar o corpo sexuado.

A reiteração forçada e necessária à sua reificada materialização e persistência na individualização e sujeição dos corpos, “é um sinal de que a materialização nunca está completa, de que os corpos nunca estão suficientemente completos, de que os corpos nunca cumprem completamente as normas pelas quais se impõe sua materialização”.11

Para a compreensão de como se relaciona a noção de performatividade de gênero com a concepção de materialização que ocorre nos interstícios da lei regulatória, por rearticulações, é necessário salientar que, conforme bem delineia Butler, “a performatividade deve ser entendida não como um ‘ato’ singular ou deliberado, mas como uma prática reiterativa e citacional por meio da qual o discurso produz os efeitos daquilo que nomeia”.12 Ou seja, “as normas regulatórias do “sexo” trabalham de forma performativa para constituir a materialidade dos corpos e, mais especificamente, para materializar o sexo do corpo, para materializar a diferença sexual a serviço da consolidação do imperativo heterossexual”.13

O imperativo heterossexual, citado por Butler, refere-se à heterossexualidade compulsória, que se reifica a partir do campo político no qual se encontra, o corpo, mergulhado, de forma a torná-lo produtivo e submisso a um arcabouço de normas que regem a sociedade a partir de conceitos naturalizados, essencialistas e que visam à reprodução, ordenação e docilização dos sujeitos.14

Como Butler propôs, com destaque à sua teoria da performatividade de gênero, “pensar  o corpo como construído, demanda repensar o significado da construção em si”,15 bem como entendê-lo e analisá-lo como uma superfície na qual são acopladas e  inseridas inscrições que o conformam, em especial, de ordem linguística. Assim, “o gênero é pensado como instrumento e também como efeito”.16

Butler faz uso da performatividade, também, para se referir ao funcionamento discursivo do gênero, que se dá e materializa a partir de enunciados performativos, pois, fazendo uso da teoria da linguagem de John Austin,17 ao serem proferidos, “fazem o que dizem. […] Eles fazem ‘sujeitos generificados’, no sentido de que circunscrevem aqueles que devem endossá-los ou proferi-los”.18 Assim o sendo, “o conjunto dessas  práticas discursivas, que são rituais sociais coercitivos que realizamos para nos distinguirmos, para nos destacarmos, para encarnar um ‘homem’ um uma ‘mulher’, é um enunciado performativo que faz o que diz: eu sou uma mulher ou eu sou um homem”.19

É por tais motivos que, “quando o médico diz: ‘é um/a menino/a’, produz-se uma invocação performativa e, nesse momento, instala-se um conjunto de expectativas e suposições em torno desse corpo”.20 Butler, neste mesmo sentido, salienta que “a marca de gênero parece ‘qualificar’ os corpos como corpos humanos; o bebê se humaniza no momento em que a pergunta ‘menino ou menina?’ é respondida. As imagens corporais que não    se encaixam em nenhum desses gêneros ficam fora do humano”,21 como acontecia com os antigos hermafroditas ou, como acontece, nos tempos atuais, com crianças intersexuais, que, não em poucas vezes, têm suas genitálias mutiladas em prol da organização binária da sociedade.

Desta feita, “o gênero, […], não é um fato, um dado, mas um conjunto de práticas disciplinares e um conjunto de atos discursivos que funcionam, que se realizam. Neste último caso, é uma relação discursiva em ato que se mascara como tal”.22 E isso fica evidenciado, ao passo que, conforme bem salienta Dorlin, fazendo  uso da teoria butleriana,

[…]o gênero como forma performativa deve ser constantemente repetido, não tem eficácia sem sua própria reiteração: não basta postular o gênero uma única vez, ele não é descritivo nem performativo; deve ser seguidamente repetido. É essa repetição permanente no interior de um marco regulatório que Butler chama de estilo: “o gênero é a estilização repetida do corpo”. A repetição discursiva literalmente toma corpo. O corpo é o efeito da repetição dos atos de fala ao longo do tempo. O gênero como performativo, portanto, é constantemente repetido: trata-se de um ritual que nos exortam a realizar. Entretanto, é justamente nessa exortação à repetição do mesmo que a relação de gênero se expõe de modo a ser desmascarada como relação social (ou seja, como construção e como dominação).23

Note-se que, conforme bem expôs Butler, na Introdução da sua obra Corpos que importam, o que foi objeto de análise e ratificação por Dorlin, a filósofa não nega a materialidade dos corpos ao expor a discursividade que sobre ele incide como construto social e meio de dominação, mas, justamente desenvolve a teoria da performatividade de gênero para refletir sobre as formas com que se dá a materialização dos corpos por meio de discursos que se revestem de um saber-poder que os domina, dociliza e que os eleva a um patamar de “naturalidade”. A teoria da performatividade, muito distante de negar a materialidade dos corpos, acaba por trazer à reflexão, a possibilidade de agir, pelos sujeitos, de maneira a fissurar a lógica heteronormativa, sistêmica e linear que permeia o gênero e a sexualidade e o seu correspondente dispositivo. E ela nos ajuda a compreender os chás de revelação de genitália, como um poderoso dispositivo performativo do sistema sexo-gênero, que mantém a ordem cisheterocentrada quando da conformação dos corpos e identidades.

 

Referências

____________________

1. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 15. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017, p. 44.

2. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 15. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017, p. 52.

3. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 15. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017, p. 53.

4. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 15. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017, p. 56, grifos da autora.

5. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 15. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017, p. 185.

6. DORLIN, Elsa. Sexo, gênero e sexualidade: introdução à teoria feminista. São Paulo: Crocodilo; Ubu Editora, 2021, p. 112.

7. BUTLER, Judith. Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”. São Paulo: n-1 Edições, 2019. p. 15.

8. BUTLER, Judith. Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”. São Paulo: n-1 Edições, 2019. p. 15.

9. BUTLER, Judith. Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”. São Paulo: n-1 Edições, 2019. p. 15.

10. BUTLER, Judith. Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”. São Paulo: n-1 Edições, 2019. p. 15-16.

11. BUTLER, Judith. Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”. São Paulo: n-1 Edições, 2019. p. 16.

12. BUTLER, Judith. Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”. São Paulo: n-1 Edições, 2019. p. 16.

13. BUTLER, Judith. Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”. São Paulo: n-1 Edições, 2019. p. 15.

14. FOUCAULT, Michel. Aulas sobre a vontade de saber: curso no Collège de France (1970-1971). São Paulo: Editora Martins Fontes, 2014.

15. BUTLER, Judith. Corpos que importam: os limites discursivos do “sexo”. São Paulo: n-1 Edições, 2019. p. 12.

16. DORLIN, Elsa. Sexo, gênero e sexualidade: introdução à teoria feminista. São Paulo: Crocodilo; Ubu Editora, 2021, p. 213.

17. AUSTIN; J.L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.

18. DORLIN, Elsa. Sexo, gênero e sexualidade: introdução à teoria feminista. São Paulo: Crocodilo; Ubu Editora, 2021, p. 214.

19. DORLIN, Elsa. Sexo, gênero e sexualidade: introdução à teoria feminista. São Paulo: Crocodilo; Ubu Editora, 2021, p. 214.

20. BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. 3. ed. Salvador: Editora Devires, 2017, p. 84.

21. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 15. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017, p. 193.

22. DORLIN, Elsa. Sexo, gênero e sexualidade: introdução à teoria feminista. São Paulo: Crocodilo; Ubu Editora, 2021, p. 115.

23. DORLIN, Elsa. Sexo, gênero e sexualidade: introdução à teoria feminista. São Paulo: Crocodilo; Ubu Editora, 2021, p. 115.

Compartilhe nas Redes Sociais
Anúncio