O presente texto visa discutir a existência de pessoas não binárias a partir das lentes do Direito. Infelizmente, corpos não binários ainda são alvo de múltiplas violências sociais, já que são lidos enquanto dissidentes por não se adequarem às normas sexuais e de gênero. Isso vai desde um olhar intimidador, até a negação da realização de seus desejos. Dessa forma, pessoas não binárias comumente são forçadas a revestirem-se de uma “pele” socialmente aceitável, o que reforça a infinidade de encruzilhadas que são obrigadas a encarar.
Esses corpos experimentam o mundo com “leituras próprias” e vivem a própria existência como algo unitário e verdadeiro, mas, também, como um paradoxo: obedecer para subsistir e resistir para ser reconhecido. A título de exemplicação, citamos a cantora Lineiker, mulher trans que experimenta e canta o mundo a partir do corpo idealizado que a todo momento expressa o sentido da sua existência. A forma como seu corpo se manifesta quando se apresenta em público pode ser traduzida como uma espécie de troca de pele, como se ganhasse um novo contorno a cada processo de desterritorialização de suas experiências.
Os contornos políticos delineam a existência humana, e pessoas trans e não binárias não querem ser coadjuvantes, mas protagonistas capazes de compreender e criticar a objetivação imposta pelo sistema. O corpo trans protagonista é carregado de imprevisibilidades, mas possuir a agência de sua própria história é de suma importância na sua construção da identidade. Trata-se de um ato de coragem. As “mudanças de pele” remexem feridas, causam dores, criam máscaras de artificialidades e tencionam estruturas ideologicamente impostas. O corpo vivencia cada momento de formas diferentes a adoção de práticas positivas, longe da violência ou da sujeição, contribui para a formação da autonomia do indivíduo.
A autonomia, ou a liberdade de escolher que corpo se quer ter, é resultante de processos de luta e, em cada etapa da vida, assume formas distintas que podem ser afirmadas ou negadas. A violência, quando se apresenta contra estes corpos, tem como função desrespeitá-los e privá-los de direitos, visto que a negação de direitos de uma determinada coletividade representa também a negação da dignidade pessoal dos sujeitos que pertencem a este grupo. Tais violências partem da ideia de que o corpo que não se encaixa no quesito macho/fêmea não deve pertencer a uma sociedade ou mesmo desenvolver uma atitude positiva sobre si mesmo. Portanto, cada corpo não binário deve ter a liberdade de decidir que pele adotar. E cada corpo tem o direito de não ser impedido de desenvolver um conjunto de práticas em busca da construção de uma nova identidade ou da adoção de uma nova pele.
Hoje, os estudos de gênero apontam que, independente da questão macho/fêmea, cis/trans, todos os corpos devem ser reconhecidos como autônomos, com capacidade de desenvolverem sentimentos de autocuidado e individualização, cujos projetos pessoais de realização devem ser objetos de respeito e não de sujeição.
O respeito ou o reconhecimento dos corpos trans coloca os direitos e a moral como formas de motivação para o desenvolvimento das potencialidades desses sujeitos em direção à autorrealização.
A construção da identidade só se dá a partir do convívio social e pressupõe, necessariamente, o reconhecimento, que se dá por um processo de afirmação recíproca elementar, acompanhada da autolimitação individual (HONNETH, 2009).Isso tudo só é possível através de algo que está para além da tolerância, ou seja, o respeito. Para o direito, o reconhecimento recíproco não admite as limitações das relações sociais pessoais (HONNETH, 2009), ou seja, não é possível não-reconhecer alguém baseado nas premissas individuais pré-constituídas, uma vez que cada pessoa tem o direito de se manifestar, em razão de seus anseios, no meio social. Outrossim, na busca do reconhecimento de sua identidade, o indivíduo assimila e exterioriza padrões impostos pela sociedade em que se insere, uma vez que não quer ser excluído.
Nas relações jurídicas, o reconhecimento da pessoa como sujeito de direito está associado ao padrão de reconhecimento da estima social (HONNETH, 2009). Nesta mesma direção, Celso Lafer (1988) aduz sobre a necessidade do reconhecimento da existência a partir da ideia de que os direitos são necessários. Ademais, o Direito, como padrão de reconhecimento, é relacional e normativo, ou seja, os indivíduos só se compreendem como sujeitos de direito, se reconhecerem o outro também como sujeito de direito.
[…] só podemos chegar a uma compreensão de nós mesmos como portadores de direitos quando possuímos, inversamente, um saber sobre quais obrigações temos de observar em face do respectivo outro: apenas da perspectiva normativa de um outro generalizado, que já nos ensina a reconhecer os outros membros da coletividadade como portadores de direitos, nós podemos nos entender também como pessoa de direito, no sentido de que podemos estar seguros do cumprimento social de algumas de nossas pretensões. (HONNETH, 2009, p. 179).
Ser um sujeito de direito significa ter a possibilidade de participar da esfera pública, respeitando a si próprio e a outrem, como supramencionado na citação de Honneth. É nesse processo de ampliação do reconhecimento dos corpos não binários que os sujeitos, reconhecendo-se de forma recíproca, travam a luta pela sua existência jurídica. (BITTAR; ALMEIDA, 2021)
O direito à identidade, nas palavras de Elísio Resta (2014, p. 58), “[…] consiste precipuamente no direito de cada um ser si mesmo e de, por isso, ser protegido das atribuições de conotações estranhas à própria personalidade, capazes de transfigurá-la e deturpá-la”. O exercício do direito à identidade ocorre no momento de síntese de todos os elementos distintivos que a compõem, bem como a sua tutela está relacionada à imagem do indivíduo enquanto sujeito e participante da coletividade no meio social. Esse direito à identidade, que faz parte da seara dos direitos fundamentais, é fruto de uma elaboração de indivíduos e coletividades, visando a afirmação das esferas de autonomia, em que cada um deles teria seu espaço (RESTA, 2014). Esse direito fundamental abriga os diversos aspectos da identidade, inclusive o exercício da sexualidade e o direito de vivenciar o corpo idealizado. Na sociedade contemporânea, busca-se não apenas o direito à identidade, seja ela qual for, mas também o respeito, que, na relação de reconhecimento, é acompanhado do sentimento de participação social (HONNETH, 2009).
Nessa direção, os corpos não binários têm direito a expressarem livremente sua identidade de gênero. A eles deve ser assegurado o acesso, particular ou pelo Sistema Único de Saúde (SUS), aos procedimentos médicos, cirúrgicos e psicológicos destinados à adequação do sexo morfológico à identidade de gênero.
Insta compreender que o Direito, como padrão de reconhecimento, é um processo de mão dupla, pois deve reconhecer o valor universal da norma e a singularidade de todos os integrantes de uma determinada sociedade, identificando cada um como pessoa livre e igual diante dos outros. Essa estrutura dual encontra-se relacionada à ampliação dos direitos e ao reconhecimento dos corpos não binários e trans como sujeitos perante a lei.
Referências
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BITTAR, Eduardo Carlos Bianca; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de filosofia do direito. 15 ed. São Paulo: Atlas, 2021.
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. 2. ed. Tradução de Luiz Repa. São Paulo: Ed. 34, 2009.
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
RESTA, Elísio. Percursos da identidade: uma abordagem jusfilosófica. Tradução Doglas Cesar Lucas. Ijuí: Ed. Unijuí, 2014.