Em nossa coluna anterior, exploramos os dilemas éticos e jurídicos impostos pela ascensão da Inteligência Artificial em cenários bélicos, questionando quem puxa o gatilho quando a decisão é de uma máquina. Mas a influência da IA não se restringe aos campos de batalha tradicionais; ela se insinua, de forma igualmente complexa e desafiadora, no universo dos crimes cibernéticos.
Se antes a preocupação era com a autonomia letal das armas, hoje nos deparamos com a crescente sofisticação de ataques digitais, fraudes e violações de privacidade potencializadas por algoritmos. Nesse novo front, que fronteiras éticas e legais precisam ser redefinidas para proteger a sociedade sem sufocar a inovação, ou estaremos caminhando para um futuro onde a linha entre o avanço tecnológico e o ilícito se tornará irreconhecível?.
Convidamos Amanda Renata Luna Girotti e Luiz Renato Telles Otaviano para dialogar conosco sobre o tema dos crimes cibernéticos e liberdade de expressão no Brasil, em um cenário onde a Inteligência Artificial redefine as fronteiras do que é possível, para o bem e para o mal. A complexidade do ambiente digital exige uma análise aprofundada, e a expertise de Amanda e Luiz Renato é fundamental para compreendermos os desafios atuais e futuros.
A era digital revolucionou a comunicação e o acesso à informação, mas também trouxe novos desafios sociais e jurídicos. Um dos principais é o crescimento dos crimes cibernéticos, como invasão de dispositivos, fraudes eletrônicas, bullying virtual e divulgação indevida de dados pessoais. Diante disso, tem-se buscado adequar o ordenamento jurídica brasileiro, mediante a criação de mecanismos de combate a essas práticas, sem comprometimento da liberdade de expressão – que é um direito fundamental previsto na Constituição Federal.
A internet permite a disseminação rápida de informações e facilita o anonimato, favorecendo a ocorrência de condutas ilícitas. Há mais de uma década, busca-se aprimorar a legislação para adaptá-la a essa realidade, com normas que criminalizam comportamentos virtuais prejudiciais. A Lei 12.737/2012 (Lei Carolina Dieckmann) foi uma das primeiras tentativas de coibir invasões de dispositivos e o acesso a dados privados. No entanto, a Lei apresenta limitações quanto à abrangência dos delitos, já que a previsão de um crime exige a descrição precisa da conduta punível. Além disso, a linguagem ambígua e as penas brandas dificultam a efetividade da punição, favorecendo em muitas vezes a impunidade e desestimulando a denúncia pelas vítimas.
Outra norma importante é a Lei 13.709/2018, conhecida como Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Essa Lei regulamenta a coleta, tratamento e proteção de dados pessoais, responsabilizando agentes públicos e privados que não adotarem medidas adequadas para garantir a privacidade das informações. Embora não trate diretamente de crimes, a LGPD reforça a importância da segurança digital e estabelece sanções administrativas que buscam prevenir condutas lesivas.
Mais recentemente, duas leis avançaram na tipificação de condutas delitivas no ambiente virtual. A Lei 14.132/2021 criminaliza o stalking e cyberstalking, protegendo principalmente mulheres, que representam a maioria das vítimas. Apesar disso, a redação da norma ainda gera dúvidas, como a exigência de habitualidade para configurar o crime, o que pode excluir situações graves que ocorrem uma única vez. Já a Lei 14.811/2024 tipifica o bullying e o cyberbullying, respondendo ao aumento expressivo desses casos, especialmente em ambientes escolares e nas redes sociais.
Essas leis evidenciam um esforço contínuo do legislador para acompanhar as transformações tecnológicas e sociais. No entanto, ainda persistem lacunas e a necessidade de ajustes. A redação de alguns dispositivos legais é genérica, dificultando a interpretação e a aplicação prática. Também se mostra urgente a atualização do Código Penal, criado em 1940, para contemplar novas formas de criminalidade.
Entre as medidas complementares necessárias, destacam-se a formação de agentes especializados na obtenção, preservação e análise de dados, a promoção da cooperação internacional — dado o caráter transnacional da internet — e a regulamentação mais clara sobre a produção, o armazenamento e a validação de provas digitais. Afinal, o combate aos delitos virtuais exige soluções eficazes que respeitem os direitos fundamentais dos cidadãos.
Além disso, a regulamentação das inteligências artificiais, também conhecidas como IAs, representa um enorme desafio. Embora sejam ferramentas com grande potencial para contribuir em diversas áreas — como prevenção, investigação e segurança digital —, também podem ser utilizadas de forma indevida, por exemplo, em fraudes, deepfakes ou invasões automatizadas.
A dificuldade na regulamentação IAs decorre da rapidez com que essa tecnologia avança, impondo desafios complexos a todas as áreas do Direito, uma vez que a elaboração de normas jurídicas exige tempo para discussão, aprovação e tramitação, em um ritmo muito diferente daquele imposto pela inovação tecnológica. Adicionalmente, é necessário buscar um equilíbrio na regulamentação, pois normas excessivamente rígidas podem sufocar o desenvolvimento tecnológico.
Nesse cenário, um dos maiores desafios é garantir que a repressão aos crimes cibernéticos não resulte em censura ou em limitação indevida da liberdade de expressão. Esse direito é um dos pilares da democracia e está protegido não apenas pela Constituição brasileira, mas também por tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como o Pacto de San José da Costa Rica e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.
A liberdade de expressão assegura a livre manifestação de pensamentos, ideias e opiniões. Trata-se de garantia essencial para o exercício da cidadania, o fortalecimento da democracia e o pluralismo político. No entanto, não se trata de um direito absoluto e pode ser limitado quando entra em conflito com outros direitos fundamentais, como a honra, a privacidade, a imagem e a igualdade.
A Constituição admite mecanismos para resolver esses conflitos, como os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Tais critérios permitem equilibrar a liberdade de expressão com a proteção de outros valores igualmente relevantes.
Quando uma manifestação causa danos a terceiros — por exemplo, por difundir discurso de ódio, calúnia ou discriminação preconceituosa —, ela deixa de ser protegida e pode ser punida com sanções civis, administrativas ou penais.
O ordenamento jurídico brasileiro dispõe de normas que coíbem abusos praticados sob o pretexto da liberdade de expressão. Exemplos disso são os crimes contra a honra previstos no Código Penal e a Lei 7.716/1989 (Lei Caó), que combate práticas discriminatórias motivadas por preconceito de raça ou cor. Assim, busca-se preservar a dignidade humana sem comprometer o livre debate de ideias.
No âmbito internacional, documentos como a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os tratados já mencionados reafirmam a importância da liberdade de expressão, mas também reconhecem que ela pode ser limitada em contextos específicos, desde que respeitados critérios como legalidade, proporcionalidade e finalidade legítima.
Portanto, o Brasil segue a tendência internacional de reconhecer a liberdade de expressão como um direito essencial, que deve coexistir harmoniosamente com outros direitos fundamentais. A criminalização de condutas praticadas na internet deve ser feita com cautela, evitando excessos que comprometam garantias constitucionais.
Contudo, apesar da relevância das leis punitivas, é essencial promover ações integradas, como a educação e a conscientização digital da população, estimulando uma cultura de respeito e civilidade no ambiente virtual. A punição não deve ser encarada como a primeira — ou única — resposta ao problema. Pelo contrário, deve manter o caráter de última alternativa (ultima ratio) do Direito Penal, sendo utilizada apenas quando as medidas preventivas se mostrarem ineficazes.
Conclui-se que a legislação penal brasileira tem avançado no enfrentamento aos crimes cibernéticos, mas ainda precisa de ajustes para alcançar maior efetividade. Ao mesmo tempo, deve resguardar a liberdade de expressão, assegurando que as medidas repressivas não se transformem em censura. Esse equilíbrio não pode ser atingido apenas por meio da legislação punitiva; a educação digital e a conscientização social são fundamentais para a prevenção, que deve ser o caminho prioritário. Cabe às leis penais o papel secundário de punir o que não pôde ser evitado. Equilibrar segurança digital e direitos fundamentais é, portanto, o maior desafio jurídico da atualidade e demanda um esforço contínuo de atualização normativa, articulação institucional e mobilização social.
Referências
____________________
BARRETO, Alesandro Gonçalves; KUFA, Karina; SILVA, Marcelo Mesquita. Cibercrimes: e seus reflexos no direito brasileiro. 1. ed. Salvador: Jus PODIVM, 2020. Acesso em: 28 ago. 2024.
BRASIL. Lei n.º 12.965, de 23 de abril de 2014. Marco Civil da Internet. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 24 abr. 2014. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm. Acesso em: 26 jun. 2024.
BRASIL. Lei nº 12.737, de 30 de novembro de 2012. Dispõe sobre a tipificação criminal de delitos informáticos; altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal; e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Lei/L12737.htm#art2>. Acesso em: 12 jun. 2024.
BRASIL. Lei nº 13.709, de 15 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20152018/2018/lei/l13709.htm. Acesso em: 19 jun. 2024.
DE MENDONÇA, G. O. S. Liberdade de expressão e seus limites nos tempos da internet. Revista Foco, v. 17, n. 1, p. e4055, 2024. DOI: 10.54751/revistafoco.v17n1017. Disponível em: https://ojs.focopublicacoes.com.br/foco/article/view/4055. Acesso em: 17 jun. 2024.
JESUS, Damásio de; MILAGRE, José Antônio. Manual de crimes informáticos. São Paulo: Saraiva Jur, 2016. 1 recurso online. ISBN 9788502627246. Acesso em: 12 jun. 2024.
LAHMANN, Henning. The Future Digital Battlefield and Challenges for Humanitarian Protection: A Primer . Working Papers. abril, 2022. Disponível em: https://www.geneva-academy.ch. Acesso em: 5 jan. 2025
ROSA, Carlos Eduardo Valle. Inteligência Artificial e Seleção de Alvos . In: ROSA, Carlos Eduardo Valle (Org.). A Geopolítica Aplicada ao Poder Aeroespacial na Atualidade . Rio de Janeiro: EDUNIFA, 2024. v. 2, cap. 10, p. 74-80.
SINGER, P. W. Wired for War: The Robotics Revolution and Conflict in the 21st Century. New York: Penguin Books, 2009.
VEIGA, Deivid Jonas Silva et al. O cibercrime no brasil: uma análise da (in)eficácia da lei carolina dieckmann”, International Journal of Development Research, v. 11, n. 01, p. 43466-43469. Disponível em: https://www.journalijdr.com/o-cibercrime-nobrasil-uma-an%C3%A1lise-da-efic%C3%A1cia-da-lei-carolina-dieckmann. Acesso em: 13 jun. 2024.