Aqueles que exercem cargos públicos ou de algum modo, atuam em funções de natureza pública, intuitivamente percebem a circunstância de vivenciarmos fase desafiadora em termos interrelacionais, onde não apenas tais indivíduos não raras vezes se veem desprestigiados como os demais profissionais essenciais ao labor, no exercício escorreito de seus misteres, como serventuários, advogados, auxiliares da justiça, ao cogitarmos no Poder Judiciário, especificamente.
Variadas são as razões para que se delineie o cenário em questão. O fenômeno hodierno das redes sociais, onde se proliferam fake news e discursos de ódio aglutinadores de opiniões, por vezes extremistas; divulgação pela mídia de escândalos variados, com ou sem comprovação; atuação legítima de figuras públicas no exercício de cargos eletivos, ou aquelas assim não configuradas; expressão de preconceitos culturais como são aqueles oriundos das relações assimétricas de poder embasadas em gênero, raça, sexualidade, etc. De tal sorte, milhares de profissionais idôneos, cumpridores de suas obrigações e que procedem de maneira ética, findam por ser apontados pejorativamente, em dinâmica de extensão generalizada.
A tendência de se estereotipar reciprocamente indivíduos por suas características intrínsecas, profissões, classes sociais, dentre outros fatores, está cada vez mais em voga. Então, quando cogitamos em crise de autoridade, lato sensu, não podemos descurar da apreciação dessa realidade, como pano de fundo da conjuntura.
A expressão crise de autoridade, especificamente, de modo usual diz respeito à formação de Estado Paralelo nas comunidades de baixa renda, Estado esse composto por organizações criminosas.
A palavra “autoridade” se reporta ao detentor do poder, no sentido de se fazer obedecer, ordenar, tomar decisões, atuar, não se confundindo autoridade com autoritarismo (grifos nossos), o qual está atrelado a fazer coercitivamente a vontade particular, ainda que absurda, sem observar os direitos e necessidades do subordinado ao dito poder, defluindo de tais concepções o ideário de autoridades legítima e ilegítima. Embora a gênese do Estado Brasileiro não tenha deixado de existir, pondera-se que o cidadão não consegue mais enxergá-la, não sente a sua presença como garantidora dos direitos coletivos, especialmente dos mais necessitados, experimentando parte do povo crise de identidade com sua própria pátria (AZEVEDO, 2006)1.
À parte tais circunstâncias, que nos reportam às instituições que de algum modo envolvam interesses comunitários ou coletivos (ao prescrutarmos a propósito de crise de autoridade), tem-se que a concepção de violência institucional é bastante delimitada. Consignamos, ainda, a possibilidade de meditarmos sobre crise de autoridade familiar, parental, tendo em mente o conteúdo de valores da entidade familiar, dissociando-se eventualmente dos deveres afetos ao poder parental no cuidado e educação da prole, em sentido contrário ao fim eudemonista da família pós-moderna (famílias ditas disfuncionais com negligência de figuras parentais, etc).
A violência institucional pode restar atrelada à saúde, aos direitos dos idosos, dos incapazes, dos cidadãos em suas incolumidades física e psíquica (abuso de autoridade por policiais), às mulheres, dentre diversos. É aquela praticada por ação ou omissão, nas instituições prestadoras de serviços públicos tais como hospitais, postos de saúde, escolas, delegacias, Judiciário e outras. É perpetrada por agentes que deveriam garantir a atenção humanizada, preventiva e reparadora de danos (grifos nossos). Na seara da violência institucional, podemos encontrar desde a dimensão mais ampla, como falta de acesso de serviços de saúde e má qualidade dos serviços prestados, até mesmo como expressões sutis, mas igualmente violentas, como abusos perpetrados em decorrência das relações desiguais de poder entre profissional e usuário. O cometimento de práticas discriminatórias é apontado como forma de violência institucional, por questões de gênero, raça, etnia, orientação sexual, religião (TAQUETTE, Stella )2 .
Alude-se à violência institucional como consubstanciando práticas estruturadas de violação de direitos por parte de funcionários pertencentes às forças de segurança, forças armadas, serviços penitenciários e agentes de saúde em contextos de restrição de autonomia e liberdade (detenção, encarceramento, custódia, guarda, internação e outros), com infringência particularmente a grupos mais excluídos e minoritários tais como população de baixa renda, jovens, população LGBTQIAPN+, comunidades indígenas 3 .
É igualmente definida como a violência praticada por órgãos e agentes públicos que deveriam responder pelo cuidado, proteção e defesa dos cidadãos. Manifesta-se, no setor da saúde, segundo D´Oliveira et al, por meio da negligência; violência verbal como tratamento grosseiro, repreensão, ameaças; violência física, incluindo o não alívio da dor e abuso sexual 4 .
Acrescenta Letícia Massula (2006) que a violência institucional, peculiar às instituições prestadoras de serviços públicos (hospitais, postos de saúde, escolas, delegacias, judiciário, etc) se configura por aqueles entes que deveriam proteger e acolher a mulher vítima de violência, mas ao invés de assim proceder, findam por revitimizá-la.5 . Fundamenta-se a concepção de violência institucional:
“Não são poucas as pedras que a mulher agredida encontra em seu caminho. Em que pese o reconhecimento pela sociedade e pelo Estado desse padrão específico de violência, e a existência de serviços públicos e privados para atendimento dos casos, as especificidades que cercam a violência contra as mulheres requererem um tratamento diferenciado para a questão. Uma série de fatores acaba por dificultar a implementação de políticas com esse olhar diferenciado, e compromete a qualidade do atendimento às mulheres que sofreram violência” (MASSULA, 2006).
No contexto de violência doméstica e familiar, nutrindo muitas vítimas quer sentimentos de apego emocional em relação ao agressor, quer dependência econômica absoluta, com a detenção de prole incapaz, não é razoável a imposição estatal de mantença, pela vítima, de sua versão dos fatos em juízo, exemplificativamente. Não raras vezes existe essa retratação por múltiplos fatores, o que não significa indiferença da vítima à violência, a qual deve ser rechaçada pela sociedade globalmente, quiçá pelo poder constituído. A compreensão do contexto, a implementação de políticas públicas em prol das vítimas de violência doméstica com escuta especializada e humanizada, espelham postura avessa à violência institucional.
O que se dessume, pois, dos estudos a propósito da violência institucional, é que ela abarca a atuação de entidades que disponibilizam serviços públicos e assim o fazem de modo falho, prejudicial à parte destinatária, fato que pode abranger percepção de tratamento discriminatório.
Mulheres irão figurar como vítimas de violência institucional tanto quando hajam percebido violência doméstica, como nas hipóteses em que o gênero que ostentam seja o mote para comportamento discriminatório desfavorável, na oportunidade da prestação de serviço público. Logo, todos os esforços possíveis devem ser empregados com o escopo de atendimento adequado e humanizado de vítimas de gênero feminino não porque sejam infalíveis e os processos de seus interesses devam ter as respectivas pretensões albergadas, de modo cogente, mas porque, posto figurarem em relações assimétricas de poder em virtude do gênero, demandam a suplementação de condições efetivas para que percebam tratamento isonômico (isonomia substancial), mediante respeito às suas características intrínsecas.
Também é possível vislumbrar a prática de violência institucional por somatória de caracteres subjetivos que decorram em conduta discriminatória em detrimento da mulher concomitantemente, tais como etarismo e sexismo, a título elucidativo.
Imaginemos uma pessoa idosa, de gênero feminino, que perceba em seu desfavor deliberações prejudiciais, ao arrepio da legislação em vigor (Estatuto do Idoso, artigo 1º , III da CF, artigo 230 da CF).
Do explanado, concluímos que a violência institucional deve ser compreendida para justamente ser evitada, aplicando-se quando de sua concretização medidas apropriadas ao desestímulo da prática nefasta. O conhecimento e utilização do conteúdo dos ditames do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero (2021)6 do CNJ mostram-se, ao nosso ver, bastante eficientes a tal desiderato, sob a ótica do direito das mulheres.
Referências
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1. Azevedo, Julio Cesar, “Crise de autoridade do Estado Brasileiro. Disponível em: site. Acesso em em 30/06/2024;
2. Taquette, Stella (org), Mulher adolescente/jovem em situação de violência, Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2007, p 95;
3- Armida, Maria Jimena, Lucas, Ciarniello, Witis, Raquel, “Los Derechos Humanos Frente a la Violencia Institucional” Ministerio de Justicia y Derechos Humanos, Argentina, p. 6;
4- Ladeia, Priscilla Soares dos Santos, Mourão, Tatiana T, Melo, Elza Machado de, “O silêncio da violência institucional no Brasil”, Revista Medica Minas Gerais, Faculdade de Medicina da UFMG, 2016, p. 399;
5- Massula, Letícia, Violência, Saúde e Direitos Humanos, Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, “A violência e o acesso das mulheres à justiça: O caminho das pedras ou as pedras no caminho”, São Paulo, 2006, p. 147;
6- CNJ, Conselho Nacional de Justiça. Disponível em: site. Acesso em 30/06/2024