Da aplicação da inteligência artificial no judiciário

Da aplicação da inteligência artificial no judiciário

inteligência-artificial-no-judiciário

ORIGEM E CONCEITO DE INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

Desde o começo da história da civilização, os seres humanos têm mostrado uma busca incansável por tudo o que tornasse sua vida mais prática e cômoda. Com a Revolução Industrial as máquinas puderam substituir o que antes era mão de obra humana, fazendo assim, com que muitas pessoas repensassem suas habilidades de trabalho para realocarem-se no mercado de trabalho.

Mas afinal, o que é a inteligência artificial (IA)? A “inteligência artificial pode ser compreendida, em suma, como a ciência do conhecimento [humano] que busca a melhor forma de representá-lo” (ROVER apud TEIXEIRA, 2022, pg. 86). Por este angulo, é a busca da humanidade em reproduzir algo/alguém que melhor lhe espelhe, pela via tecnológica. Por essa inteligência não ser concebida de forma natural e sim pelas mãos humanas, chama-se de “inteligência artificial” e tal tecnologia é inspirada no próprio funcionamento do cérebro humano. Neste sentido:

Criaram-se neurônios artificiais extremamente similares aos humanos e interligaram-nos para formar redes que mostraram poder fazer tarefas antes restritas aos cérebros. Além disso, os pesquisadores encontraram nas redes neurais outras características semelhantes às do cérebro: robustez e tolerância a falhas, flexibilidade, capacidade para lidar com informações ruidosas, probabilísticas ou inconsistentes, processamento paralelo, arquitetura compacta e com pouca dissipação de energia. Encontrou-se uma arquitetura capaz não só de aprender como também generalizar (LINDEN apud ANGELI et al. 2019, pg. 10).

Ademais, conforme Gomes (2010), para ser caracterizada uma IA é necessário: “I. Sistemas que pensem como seres humanos. II. Sistemas que atuem como seres humanos. III. Sistemas que pensam racionalmente. IV. Sistemas que atuem racionalmente” (GOMES, 2010, pg. 235). Assim, também é possível afirmar que a inteligência artificial é a capacidade que uma máquina ou programa tem de agir e tomar decisões inspirada no comportamento dos seres humanos (ou até mesmo de outros seres biológicos, como os animais).

Em 1938 um matemático inglês chamado Alan Turing, juntamente com seus associados, deram início a uma evolução tecnológica quando construíram a partir de peças telefônicas o primeiro computador operacional do mundo. A semelhança do processo operacional do computador com a do funcionamento do cérebro humano, foi algo que não passou despercebido por Turing, sendo aí, empregado os primeiros esforços no desenvolvimento desta nova tecnologia (GOMES, 2010).

Tarcísio Teixeira (2022) afirma que o termo “inteligência artificial” surgiu apenas em 1956 com o pesquisador John McCarthy, em uma conferência com outros estudiosos no Dartmouth College (Massachusetts, EUA).  Apesar de Turing ser pioneiro em articular sobre IA, o primeiro grande reconhecimento como IA foi conduzido por Warrem Macculloch e Walter Pitts em 1943. Os mesmos utilizaram um modelo de neurônio artificial, onde tais neurônios eram definidos por “ligado” ou “desligado”, analisando assim o equivalente a proposição do que seria um estímulo adequado (RUSSEL; NORVIG; apud GOMES, 2010, pg. 236).

No ano de 2011 a IA Watson revisou o histórico médico de cerca de mil pacientes oncológicos, e sugeriu um tratamento que coincidiu em 99% dos tratamentos que haviam sido prescritos por oncologistas (Teixeira apud Angeli et al., 2019).  Charles Prado (2019), raciocina que o século XXI pode ser a “era de ouro da IA”, pois contêm “alta conectividade; baixo custo computacional; grande quantidade de dados (big data) e o Machine Learning”, o que configura o cenário ideal para alavancar pesquisas relacionadas a esse tipo de tecnologia.

 DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NO CONTEXTO DO JUDICIÁRIO BRASILEIRO

Entre as Inteligências Artificiais (IAs) que se encontram no judiciário brasileiro, pode se citar a IA Victor, que foi desenvolvida pela Universidade de Brasília (UNB) em parceria com o STF, onde atualmente atua. Recebeu esse nome em homenagem ao ex-ministro Victor Nunes Leal, que foi pioneiro em estabelecer uma sistematização dos precedentes para facilitar o reconhecimento de assuntos frequentes.

Segundo Bragança (et al. 2019), a IA Victor é habilitada para identificar e separar as cinco principais peças dos autos, que são “acórdão recorrido, o juízo de admissibilidade do recurso extraordinário, petição do recurso extraordinário, sentença e agravo no recurso”. Sabe-se que há uma sobrecarga no judiciário, e para a efetivação do princípio da eficiência na Administração Pública, se defende esse tipo de busca e investimento.

Antes da IA Victor, muitos processos eram encaminhados para as varas erradas, o que tornava ainda mais moroso o trabalho dos prestadores. Agora, com a triagem os mesmos são enviados para o lugar correto, devidamente separado e referenciado, o que facilita a elaboração do voto. Entre as funções da IA Victor, encontra-se a capacidade de converter arquivos de imagem em texto, bem como a possibilidade de copiar e colar a transcrição de trechos em outros documentos. Neste sentido:

De acordo com o portal institucional do STF, o Victor não se limitará ao seu objetivo inicial de aumentar a velocidade de tramitação dos processos por meio da utilização da tecnologia. O que não quer significar, porém, que a máquina irá ocupar o lugar dos juízes.  A mesma não decide ou julga; ela está sendo treinada tão somente para atuar na organização dos processos visando o aumento da eficiência e da velocidade da avaliação judicial (BRAGANÇA et al., 2019, pg. 71).

Outro exemplo é o Robocon (o robô do consumidor) desenvolvido pelo Ministério Público do Distrito Federal, que segundo Suziany Rosário (2021), vale-se de IA para identificar demandas repetitivas nos órgãos de defesa do consumidor e nos juizados especiais. “O Robocon é capaz de apresentar relatórios indicando a concentração de possíveis infrações semelhantes praticadas por uma mesma empresa ou grupo de empresas e o descumprimento de TACs ou de decisões judiciais” (ROSÁRIO, 2021, pg. 15-16).

Há também o projeto Sócrates, que foi desenvolvido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), o qual é capaz de reconhecer o texto e através desse processamento classificar o processo por assunto, antes de haver a distribuição. Segundo o Portal do STJ, o projeto 1.0 da Sócrates “faz a análise semântica das peças processuais com o objetivo de facilitar a triagem de processos, identificando casos com matérias semelhantes e pesquisando julgamentos do tribunal que possam servir como precedente para o processo em exame”. E em posterior atualização, a Sócrates 2.0 já está apta para:

apontar, de forma automática, o permissivo constitucional invocado para a interposição do recurso, os dispositivos de lei descritos como violados ou objeto de divergência jurisprudencial e os paradigmas citados para justificar a divergência. […] identifica as palavras mais relevantes no recurso especial e no agravo em recurso especial e as apresenta ao usuário na forma de “nuvem de palavras”, permitindo a rápida identificação do conteúdo do recurso. A ferramenta também sugere as controvérsias jurídicas potencialmente presentes no recurso, identificando quais delas correspondem a controvérsias afetadas pelo STJ ao rito dos recursos repetitivos. […] também permitirá que o usuário visualize a petição do recurso especial com a identificação dos elementos marcados pela ferramenta e proponha correções, permitindo a retroalimentação e o aperfeiçoamento contínuo do sistema (Portal do STJ, 2020).

Também pode ser apontada a Radar, desenvolvida pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais e que possui função muito similar aos demais projetos e inteligências já listados. No que diz respeito a sua capacidade, pode-se afirmar:

capacidade para identificar e separar recursos com pedidos idênticos. Após esta separação, os desembargadores elaboram um voto padrão a partir de teses das Cortes Superiores e do próprio TJMG, o qual é então utilizado pela máquina para proceder a julgamentos em conjunto dos casos similares. Na primeira oportunidade em que foi empregado, o Radar julgou de uma só vez duzentos e oitenta processos (BRAGANÇA et al., 2019, pg. 72).

Muito embora exista similaridade textual que se valem de algoritmos complexos, segundo Júlio Pacheco (2019), tal função não se confunde com Processamento de Linguagem Natural (PNL). Pois a PNL extrai sentido do texto e não apenas à similaridade. Deixando assim claro, que no caso do projeto Radar se trata de uma IA mais básica. Possui elementos e ferramentas de IA, no entanto, há projetos mais desenvolvidos no que tange ao assunto.

No contexto do Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul é utilizada a IA Xian. Esta realiza, entre outras coisas, o acompanhamento de processos, otimizando o tempo dos demais servidores. Em comparação, a Xian realiza tal atividade em 75 segundos enquanto um humano faz a mesma função na média de 15 minutos.

O uso da automação robótica de processos resulta ainda em significativa redução dos erros de processamento, já que segue fielmente sua programação, não existindo risco de erros na execução das tarefas quando bem definidas. Além disso, o robô otimiza a integração de aplicativos e sistemas, podendo ser programado para realizar tarefas em períodos agendados ou 24 horas por dia, durante o ano inteiro (Portal do TJMS, 2022).

A Xian não representa apenas celeridade processual, como também economia para o cofre público. Ela foi programada para encontrar processos com a publicação certificada, ou seja, processos que já estejam do Diário da Justiça.

No Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte (TJRN), destacam-se três IAs chamadas de Poti, Jerimum e Clara, que foram desenvolvidas em parceria com a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

O primeiro está em plena atividade e executa tarefas de bloqueio, desbloqueio de contas e emissão de certidões relacionadas ao BACEN/JUD. Em fase de conclusão, Jerimum foi criado para classificar e rotular processos, enquanto Clara lê documentos, sugere tarefas e recomenda decisões, como a extinção de uma execução porque o tributo já foi pago. Para casos assim, ela vai inserir no sistema uma decisão padrão, que será confirmada ou não por um servidor (PORTAL DO CNJ, 2022).

Segundo Bragança (et al. 2019), o Tribunal de Justiça de Rondônia, através da mesma linha de pesquisa, criou a IA Sinapse, tendo como uma de suas peculiaridades o “módulo gabinete”, que tem como função apontar para o juiz quais serão as próximas etapas no processo, auxiliando na elaboração da sentença ao sugerir frases.

No Estado de Pernambuco é utilizada a IA Elis. Ela “analisa uma certidão de dívida ativa, confere os dados, verifica a existência de prescrição e analisa a competência. Esta I.A. é direcionada a um setor de grande gargalo no Judiciário, a execução fiscal” (BAETA apud BRAGANÇA et al., 2019, pg. 72). Há também a IA Lia, criação do Conselho de Justiça Federal (CJF), a qual tem como escopo a “desburocratização e simplificação que visa incentivar e captar práticas e casos de sucesso na Justiça Federal que facilitem procedimentos judiciais, extrajudiciais e de administração judicial” (BRAGANÇA et al., 2019, pg. 73). Inicialmente, realizará consultas à agenda funcional bem como irá responder às perguntas direcionadas à ouvidoria. Desta forma, servirá como uma ‘assistente virtual inteligente’.

Neste mesmo plano, pode-se fazer menção a Jurimetria na IA, que é a capacidade de “mensurar a velocidade do processo, a partir da investigação de eventuais causas de aceleração e desaceleração, fatores que fatalmente afetam a celeridade do processo” (BARBOZA, 2019, pg. 13).  O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) também pode utilizar da Jurimetria:

O CNJ pode se utilizar das informações e dados aferidos por meio da Jurimetria, para assim, por intermédio do Laboratório de Inovação do Processo Judicial em meio Eletrônico – Inova PJe e do Centro de Inteligência Artificial Aplicada ao PJe, promova desenvolvimento de ferramentas de Inteligência Artificial para concretização da Justiça. Entretanto, não se pode olvidar, para além do contributo da Inteligência Artificial, a importância do Juiz na concretização da Justiça, pois ao aplicar o Direito ao caso concreto desempenha um ato de criatividade, característica fundamental da natureza humana (BARBOZA, 2019, pg. 13).

Visto tudo isso, pode se dizer que nos últimos anos o uso da IA no judiciário brasileiro evoluiu muito. Da mesma forma, também há profissionais muito competentes e realmente determinados em fazer tais tecnologias funcionarem para a melhoria da eficiência na prestação da tutela jurisdicional.

 

Referências

____________________

ANGELI et al. A evolução da inteligência artificial e a substituição do trabalho humano. Disponível em: https://multivix.edu.br/wp-content/uploads/2019/10/revista-ambiente-academico-v05-n01-artigo01.pdf.

BARBOZA, Ingrid Eduardo Macedo. A Jurimetria Aplicada na Criação de soluções de Inteligência Artificial, desenvolvidas pelo CNJ, em busca do aprimoramento do Poder Judiciário. Disponível em: http://revistaffb.educacao.ws/index.php/dialogo-juridico/article/view/57/57.

BRAGANÇA, Fernanda. et al. Revolução 4.0 no poder judiciário: levantamento do uso de inteligência artificial nos tribunais brasileiros. Disponível em: http://177.223.208.8/index.php/revistasjrj/article/view/256/194.

GOMES, Dennis dos Santos. Inteligência Artificial: Conceitos e Aplicações. Disponível em: https://www.professores.uff.br/screspo/wp-content/uploads/sites/127/2017/09/ia_intro.pdf.

MELO, Jeferson. Judiciário ganha agilidade com uso de inteligência artificial. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/judiciario-ganha-agilidade-com-uso-de-inteligencia-artificial/.

PACHECO, Júlio César Barroso. Possibilidades de utilização da inteligência artificial no poder judiciário. Disponível em: https://1library.org/document/yjep0g6q-possibilidades-de-utilizacao-da-inteligencia-artificial-poder-judiciario.html.

PORTAL DO TJMS. Entra em operação Xian, o primeiro robô a atuar nos processos do PJMS. Disponível em: https://www.tjms.jus.br/noticia/61610.

PRADO, Charles. A era da inteligência artificial. Disponível em: https://cienciahoje.org.br/artigo/a-era-da-inteligencia-artificial/. Acesso em: 05/09/2022.

ROSÁRIO, Suziany Venâncio. Perspectivas do uso da inteligência artificial no poder judiciário brasileiro. Disponível em: https://bdm.unb.br/bitstream/10483/29845/1/2021_SuzianyVenancioDoRosario_tcc.pdf.

SILVA, Fabiana Aparecida dos Reis. Et al. Portaria nº 271 do cnj e a regulamentação do uso de inteligência artificial no poder judiciário. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/portaria-n-271-do-cnj-e-a-regulamentacao-do-uso-de-inteligencia-artificial-no-poder-judiciario.

TEIXEIRA, Tarcisio. Direito Digital e Processo Eletrônico. São Paulo: Editora Saraiva, 2022. E-book. ISBN 9786555596946. Disponível em: https://app.minhabiblioteca.com.br/#/books/9786555596946/.

 

Compartilhe nas Redes Sociais
Anúncio