O Tribunal de Justiça de Minas Gerais chocou a comunidade jurídica mineira e também a nacional ao julgar o Tema 91 do IRDR. Na decisão, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais estabelece a obrigatoriedade de que os consumidores, antes de ajuizarem ação judicial, esgotem a tentativa de solução administrativa junto ao fornecedor de produtos ou serviços. O colegiado, por maioria de votos, decidiu fazendo incidir a tese firmada em sede do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas nº 1.0000.22.157099-7/002, nos seguintes termos:
Ementa: DIREITO PROCESSUAL CIVIL E DIREITO DO CONSUMIDOR. APELAÇÃO CÍVEL. CAUSA PILOTO DO IRDR N. 91/TJMG. PRÉVIO REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO PARA CONFIGURAÇÃO DO INTERESSE DE AGIR. CONSTITUCIONALIDADE. PRECEDENTES DO STJ E STF. APLICAÇÃO DAS TESES DO IRDR. SENTENÇA CASSADA. I. CASO EM EXAME 1. O recurso: Apelação interposta por Maria Hilda Gomes Leal da sentença (DE 14) que, nos autos da Ação Declaratória de Inexistência de Débito com pedido de Indenização por Danos Morais que move contra Banco PAN S.A., indeferiu a inicial e extinguiu o processo sem resolução do mérito, por ausência de interesse de agir. Fato relevante: Remetidos os autos a este Tribunal, o Em. Relator originário, Des. José Augusto Lourenço dos Santos percebeu a repetitividade da questão jurídica sobre a configuração do interesse de agir e deu início a uma série de diligências que culminaram na suscitação de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas. II. QUESTÃO EM DISCUSSÃO2. A questão em discussão consiste em: prescindibilidade ou não da comprovação da prévia tentativa de solução extrajudicial da controvérsia para a caracterização do interesse de agir nas ações de natureza prestacional das relações de consumo. III. RAZÕES DE DECIDIR 3. Conforme tese firmada no julgamento do IRDR 91, a caracterização do interesse de agir nas ações de natureza prestacional das relações de consumo depende da comprovação da prévia tentativa de solução extrajudicial da controvérsia. 4. Fixou-se a seguinte tese: (i) A caracterização do interesse de agir nas ações de natureza prestacional das relações de consumo depende da comprovação da prévia tentativa de solução extrajudicial da controvérsia. A comprovação pode ocorrer por quaisquer canais oficiais de serviço de atendimento mantido pelo fornecedor (SAC); pelo PROCON; órgão fiscalizadores como Banco Central; agências reguladoras (ANS, ANVISA; ANATEL, ANEEL, ANAC; ANA; ANM; ANP; ANTAQ; ANTT; ANCINE); plataformas públicas (consumidor.gov) e privadas (Reclame Aqui e outras) de reclamação/solicitação; notificação extrajudicial por carta com Aviso de Recebimento ou via cartorária. Não basta, nos casos de registros realizados perante os Serviços de Atendimento do Cliente (SAC) mantidos pelo fornecedor, a mera indicação pelo consumidor de número de protocolo. (ii) Com relação ao prazo de resposta do fornecedor à reclamação/pedido administrativo, nas hipóteses em que a reclamação não for registrada em órgãos ou plataformas públicas que já disponham de regramento e prazo próprio, mostra-se razoável a adoção, por analogia, do prazo conferido pela Lei nº. 9.507/1997 (“Habeas Data”), inciso I, do parágrafo único do art. 8º, de decurso de mais de 10 (dez) dias úteis sem decisão/resposta do fornecedor. A partir do referido prazo sem resposta do fornecedor, restará configurado o interesse de agir do consumidor para defender os seus direitos em juízo. (iii) Nas hipóteses em que o fornecedor responder à reclamação/solicitação, a referida resposta deverá ser carreada aos documentos da petição inicial, juntamente com o pedido administrativo formulado pelo consumidor. (iv) A exigência da prévia tentativa de solução extrajudicial poderá ser excepcionada nas hipóteses em que o consumidor comprovar risco de perecimento do direito alegado (inclusive na eventualidade de iminente transcurso de prazo prescricional ou decadencial), situação em que o julgador deverá aferir o interesse de agir de forma diferida. Nesses casos, caberá ao consumidor exibir a prova da tentativa de solução extrajudicial em até 30 (trinta) dias úteis da intimação da decisão que analisou o pedido de concessão da tutela de urgência, sob pena de extinção do processo sem resolução do mérito, nos termos do art. 485, VI, do CPC. (v) Nas ações ajuizadas após a publicação das teses fixadas no presente IRDR, nas quais não exista comprovação da prévia tentativa extrajudicial de solução da controvérsia e que não haja pedido expresso e fundamentado sobre a excepcionalidade por risco de perecimento dodireito, recebida a inicial e constatada a ausência de interesse de agir, a parte autora deverá ser intimada para emendar a inicial de modo a demonstrar, no prazo de 30 dias úteis, o atendimento a uma das referidas exigências. Decorrido o prazo sem cumprimento da diligência, o processo será extinto sem julgamento de mérito, nos termos do art. 485, VI, do CPC. (vi) Com relação à modulação dos efeitos da tese ora proposta, por questão de interesse social e segurança jurídica (art. 927, §3º do CPC c/c art. 46 da Recomendação n. 134/ 2022 do CNJ), nas ações ajuizadas antes da publicação das teses fixadas no presente IRDR, o interesse de agir deverá ser analisado casuisticamente pelo magistrado, considerando-se o seguinte: a) nas hipóteses em que o réu ainda não apresentou contestação, constatada a ausência do interesse de agir, a parte autora deverá ser intimada para emendar a inicial (art. 321 do CPC), nos termos do presente IRDR, com o fim de coligir aos autos, no prazo de 30 dias úteis, o requerimento extrajudicial de solução da controvérsia ou fundamentar o pleito de dispensa da prévia comprovação do pedido administrativo, por se tratar de situação em que há risco de perecimento do direito. Quedando-se inerte, o juiz julgará extinto o feito sem resolução de mérito, nos termos do art. 485, VI, do CPC. b) nas hipóteses em que já houver contestação nos autos, tendo sido alegado na peça de defesa fato extintivo, modificativo ou impeditivo do direito do autor (art. 373, II, do CPC), restará comprovado o interesse de agir. IV. DISPOSITIVO E TESE 5. Recurso parcialmente provido para cassar a sentença, vencido o relator. Dispositivos relevantes citados: art. 485, VI, do CPC; art. 926 do CPC; art. 927, § 1º e 3º do CPC; art. 373, II, do CPC; art. 982, caput e §2º do CPC; art. 978, § único do CPC; art. 83 do CDC. Jurisprudência relevante citada: IRDR 91/TJMG; IRDR 73/TJMG; Tema 350/STF.
Com a devida vênia, tal entendimento revela-se flagrantemente inconstitucional, por violar garantias fundamentais expressas na Constituição da República de 1988. Inicialmente, destaca-se que o art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal assegura a todos o direito de acesso irrestrito ao Poder Judiciário, ao prever que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Trata-se de cláusula pétrea de acesso à jurisdição, que não pode ser relativizada ou condicionada por atos normativos infraconstitucionais ou por decisões judiciais.
O condicionamento do exercício da jurisdição à prévia submissão do conflito à via administrativa cria uma restrição indevida ao direito fundamental de ação, importando em verdadeira barreira ao pleno exercício da cidadania e à tutela jurisdicional efetiva. Não há, na ordem constitucional, qualquer exigência que obrigue o jurisdicionado a tentar previamente resolver seu litígio administrativamente como condição para demandar judicialmente — salvo hipóteses excepcionais previstas expressamente no texto constitucional, como no mandado de segurança (art. 5º, LXX) ou em relação à exigibilidade de tributos (art. 151, III), o que não é o caso da defesa do consumidor.
Outrossim, o Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990), em perfeita consonância com o texto constitucional, reforça a proteção do consumidor como parte vulnerável nas relações de consumo (art. 4º, I e III; art. 6º, VIII), sem impor a obrigatoriedade de exaurimento de instâncias administrativas para que o consumidor busque a tutela de seus direitos em juízo. Ao contrário, o CDC prestigia mecanismos que facilitem o acesso à Justiça, a exemplo da inversão do ônus da prova (art. 6º, VIII) e da ampla legitimação para defesa de interesses individuais e coletivos (art. 82).
Ademais, o Supremo Tribunal Federal já reconheceu, em reiteradas decisões, que não se pode criar condições ilegítimas ao acesso à jurisdição. Em emblemática decisão (RE 631240/MG, Rel. Min. Gilmar Mendes), o STF fixou a tese de que, salvo disposição legal expressa e constitucionalmente legítima, não se pode condicionar o ajuizamento de demandas ao prévio esgotamento da via administrativa.
Portanto, o Tema 91 do IRDR, ao obrigar o consumidor a buscar solução administrativa prévia como condição para ingressar em juízo, viola frontalmente: O direito de acesso à Justiça (art. 5º, XXXV, CF); a proteção especial ao consumidor (art. 5º, XXXII, c/c art. 170, V, CF); o princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, CF); e ainda o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF), na medida em que impõe ao consumidor obstáculos indevidos para a obtenção de seus direitos fundamentais.
A tentativa de resolução extrajudicial é, sem dúvida, uma faculdade do consumidor, nunca uma obrigatoriedade. A imposição judicial de tal exigência inverte o sistema protetivo consumerista e penaliza justamente a parte mais vulnerável da relação, em afronta também ao princípio da vulnerabilidade do consumidor.
Além de argumentos jurídicos, pode-se também apontar argumentos práticos. Exigir o esgotamento da via administrativa cria barreiras burocráticas que dificultam, atrasam ou mesmo desestimulam o consumidor de buscar a reparação de seus direitos. Muitos consumidores, especialmente os mais vulneráveis, têm dificuldades de lidar com processos administrativos complexos, longos ou mal regulados, o que desincentiva o exercício legítimo de seus direitos.
Nos canais administrativos, é o próprio fornecedor quem controla os prazos, as respostas e a condução da solução. Isso gera risco de parcialidade, demora injustificada ou mesmo não resolução efetiva do problema. O consumidor fica à mercê do fornecedor, que pode adotar práticas de procrastinação ou formalismo excessivo para desestimular o prosseguimento da reclamação.
O tempo gasto obrigatoriamente em uma tentativa administrativa (que pode durar meses) piora a situação do consumidor. Em casos de negativa de cobertura de plano de saúde, de fornecimento de medicamentos, de defeito em produtos essenciais, por exemplo, a urgência na solução é incompatível com a imposição de prévias tratativas administrativas. O prejuízo financeiro e moral do consumidor se acumula com o tempo.
Órgãos como o Procon, a Senacon (consumidor.gov.br) e os canais de atendimento ao consumidor já estão disponíveis para quem quiser tentar resolver o problema administrativamente. Esses instrumentos devem ser facultativos, como meios alternativos de resolução de conflitos — nunca como condições obrigatórias que limitam o acesso ao Judiciário.
Em muitos casos, a experiência demonstra que não há efetividade na resolução pela via administrativa — seja pela má vontade da empresa, pela ausência de canais eficientes, ou pela negativa padrão às reclamações. Nessas hipóteses, exigir que o consumidor passe por uma tentativa infrutífera apenas aumenta o desgaste emocional e material, sem ganhos práticos para ninguém.
Se o esgotamento administrativo fosse obrigatório, empresas mal-intencionadas poderiam criar obstáculos internos (respostas automáticas, pedidos repetidos de documentos, perda de protocolos, etc.) para tornar mais difícil e lenta a reclamação administrativa, prolongando de forma artificial o sofrimento do consumidor e atrasando o acesso efetivo à Justiça.
O consumidor é reconhecidamente a parte mais fraca na relação de consumo, tanto em termos técnicos quanto econômicos. Obrigar quem já está em situação de vulnerabilidade a passar por etapas prévias antes de acessar a proteção judicial inverte a lógica protetiva e reforça a desigualdade entre consumidor e fornecedor.
Além do tempo, o consumidor frequentemente terá custos (financeiros, emocionais e de oportunidade) para registrar reclamações, enviar documentos, deslocar-se a agências, ou aguardar respostas. Esses custos, somados ao dano inicial sofrido, aumentam a ineficiência e o ônus injusto que deveria ser evitado em um sistema de proteção ao consumidor.
Por essas razões, impõe-se o afastamento da aplicação do Tema 91 do IRDR do TJMG, reconhecendo-se a sua inconstitucionalidade e preservando-se o livre, pleno e imediato acesso do consumidor ao Poder Judiciário para a tutela de seus direitos.
Nesse sentido, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais publicou decisão suspendendo os efeitos do Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) tema 91 que padronizava entendimentos de que qualquer demanda consumerista deveria passar previamente por uma tentativa de solução extrajudicial antes do ajuizamento de ação judicial. Na decisão, o Terceiro Vice-Presidente, desembargador Rogério Medeiros, admitiu o recurso especial na qualidade de Recurso Representativo da Controvérsia interposto pelo Ministério Público de Minas Gerais, que questionava o IRDR tema 91 e reconheceu o direito do ajuizamento de ação nas causas consumeristas.
Nos termos do Terceiro Vice-Presidente, Desembargador Rogério Medeiros, foi deferida a suspensão da aplicação da tese definida no IRDR, e suspensão do trâmite de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitem no Estado de Minas Gerais, com fundamento nos artigos 987, §1º, e 1.036, §1º, ambos do Código de Processo Civil, observando os moldes delimitados das causas de suspensão do IRDR”, determina a decisão.
Desse modo, a discussão será levada ao Superior Tribunal de Justiça, através do julgamento Recurso Especial n. 1.0000.22.157099-7/009, e só assim, teremos uma decisão definitiva acerca dessa celeuma tão relevante que afeta a vida de todos os jurisdicionados do país.