Da invisibilidade à visibilidade: corpos trans idealizados e representatividade política

Da invisibilidade à visibilidade: corpos trans idealizados e representatividade política

hands-with-transgender-sign

O presente artigo busca discutir a sobrevivência de corpos trans em nossa sociedade, na qual, para o exercimento de um mandato político, a binariedade é a regra geral. Ao nomear os corpos que fogem dos grilhões feminino/masculino culturalmente construídos, os corpos trans, compreendidos aqui como idealizados, se apresentam abertos às várias possibilidades de existir enquanto corpos que ganham visibilidade e representatividade política.

O preâmbulo dos Princípios de Yogyakarta (2007), documento sobre direitos humanos que contempla as expressões orientação sexual e identidade de gênero, também reconhece como violações quaisquer transgressões a tais direitos. O documento assevera que orientação sexual e identidade de gênero são aspectos essenciais a serem considerados para a observância da dignidade e da humanidade e, por isso, não podem ser motivos de discriminação ou abuso, porquanto, segundo esses princípios, todos os seres humanos nascem livres e iguais em direitos e dignidade. No tocante à participação na vida pública, também contempla o direito de concorrer a cargos eletivos e acessar aos serviços públicos, incluindo a polícia e a força militar, sem discriminação por motivo de sexo ou gênero. Historicamente tais direitos são negados às pessoas trans, o que as impede de escolher o corpo que querem ter, e a identidade construída a partir do corpo idealizado é um obstáculo para a vida política.

Em virtude das normas sexuais e de gênero impostas socialmente, o direito de pessoas trans ao exercício do mandato político ainda é distante do reconhecimento, da igualdade e da inclusão, que, parafraseando Drummond, se depara a todo instante com pedras no caminho.

As pessoas trans vivenciam o mundo e as coisas que nele estão por meio de uma relação de engajamento corpo/mundo, e devem ter liberdade para construir sua existência e poder escolher  de que forma vivenciar sua corporeidade e  vida política, construindo  sua existência a partir de escolhas que têm como propósito a inclusão.

Esta inclusão, entendida como o conjunto de medidas direcionadas aos indivíduos excluídos do meio social  – nas políticas ou ações públicas –  seja por alguma deficiência física ou mental, raça, orientação sexual, gênero ou poder aquisitivo, propugna temas como o respeito às diferenças e à participação igualitária de todos os cidadãos.

O direito à cidadania plena é garantido pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, documento adotado pela ONU, que trata da proteção dos direitos humanos básicos e cujos princípios fundamentais incluem paz, liberdade e cidadania.

Nesse mesmo diapasão, a CRFB/1988, no capítulo I – “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”, em seu Art. 5º, reza: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade […]” (BRASIL, 2022). Não obstante as legislações nacionais e documentos não jurídicos internacionais, a sociedade ainda tem deixado os corpos trans à margem da vida social e política, ao arrepio da lei.

Nessa seara, em que pese o Direito ter sido chamado para se posicionar e responder questões desta nova realidade cada vez mais presente, e ter avançado muito nas duas últimas décadas, ele ainda não consegue acompanhar plenamente as mudanças. Por sua vez, o Brasil não conta com leis específicas para casos pertinentes aos corpos trans porque inúmeras e variadas são as questões que ainda trazem posições antagônicas doutrinárias e jurisprudenciais para a solução dos muitos problemas que estes corpos enfrentam.

Deste modo, com uma inclusão social ainda pendente, a identidade, o reconhecimento e a igualdade efetivos ficam, ainda, fora do alcance dos referidos corpos.

Cada luta é uma experiência limitada sobre um determinado momento em que o  corpo idealizado, compreendido como o resultado da soma e da integralidade das diferenças que com suas intensidades, buscou ser reconhecido e, muitas vezes, lhe foi dirigido um olhar  intimidador e palavras ofensivas negando-o, impedindo-o de realizar seus desejos, exercitar seus sentidos, viver/existir a sua própria existência como detentor de um mandato eletivo e o reconhecimento como tal. Por lei, o Supremo Tribunal Federal (STF) já entendeu que se aplica aos casos de homofobia e transfobia a Lei do Racismo (Lei 7.716/1989), que prevê pena de um a três anos de reclusão e multa para quem incorrer nessa conduta.

O conselho de Direitos Humanos da ONU instou os Estados-partes a garantir direitos iguais para todos os indivíduos, independente do gênero ou da orientação sexual. O direito à vida garantido na Lei, não é apenas um direito a ser mantido, mas uma possibilidade de se exigir respeito à integridade de corpos LGBTQIAPN+, para sua sobrevivência digna e desenvolvimento individual. É com esse objetivo que os princípios de Yogyakarta são construídos e devem ser aplicados.

Ao se pensar a questão da igualdade no Brasil, busca-se suporte na Constituição da República de 1988, que teve como escopo, consoante Norberto Bobbio, fortalecer as garantias e os direitos fundamentais e naturais ao homem  independentemente de  qual seja a sua classe, etnia, raça, religião ou qual profissão exerça. Estes mesmos direitos são contemplados no art. 5º, no qual se lê que “todos são iguais”. Entretanto, essa igualdade quase nunca chega aos corpos não binários.

A proclamação de que todos os seres humanos são essencialmente iguais em termos de dignidade e direitos foi uma mudança significativa nos fundamentos da dignidade política. Todavia, o paradoxo da dualidade igualdade/desigualdade ainda se manifesta, porquanto esses corpos são invisíveis e a desigualdade que os atinge é percebida em vários campos, dentre eles o político.

As eleições de 2022 no Brasil representaram um marco para a comunidade LGBTQIAPN+, com um recorde de candidaturas: trezentas noventa e cinco (395), segundo o Tribunal Superior Eleitoral (2022). Deste total, vinte (20), conseguiram se eleger pela primeira vez; a Câmara dos Deputados tem hoje duas (2) deputadas trans, com as eleições de Duda Salabert (PDT/MG) e Erika Hilton (PSOL/SP). Nas assembleias estaduais, Dani Balbi (PCD do B/RJ) e Linda Brasil (PSOL/SE) também foram eleitas.  (UOL, 2024).

Segundo Keila Simpson, presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), a representatividade LGBTQIAPN+ nas eleições de 2022 demonstra a estratégia visando sair da invisibilidade política que vem se desenhando, a partir de 2014. Desde 2016, adotaram a ideia de que pessoas trans precisariam ocupar esses espaços. (UOL, 2024). Em 2024, vinte e sete (27) pessoas trans foram eleitas no Brasil. Belo Horizonte, por exemplo, escolheu Jhulia Santos (PSOL) como vereadora na mesma eleição em que Duda Salabert (PDT) concorreu à prefeitura da cidade.

“Existir” significa sair da invisibilidade em direção à visibilidade, em um primeiro momento; a pessoa trans percorre este caminho quando altera o nome civil, um dos principais símbolos da personalidade do indivíduo, capaz de particularizá-lo no contexto da vida social e produzir reflexos na ordem jurídica: votar, ser votado e exercer um mandato político. Quando se fala de um corpo trans na política, não é simplesmente uma candidatura. É uma candidatura que advém de um ambiente hostil desde sempre; barreiras políticas, partidárias, sociais, escolares e familiares impedem a visibilidade.

Admite-se, por isso, que as discussões aqui incitadas constituem apenas uma ínfima partícula do conhecimento que a complexa questão dos corpos trans entrevê e desafia, haja vista que desde 2018, a candidatura de  pessoas trans nas eleições no Brasil teêm sido um marco significativo na luta pela representatividade e direitos da população LGBTQIAPN+. A luta pela visibilidade e representatividade é uma luta por reconhecimento e igualdade, que busca garantir que esses corpos sejam respeitados e valorizados.

 

Referências

____________________

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 2004.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, 5 out. 1988. Disponível em: link. Acesso em: 4 out. 2024

BRASIL. Lei nº 7.716. Brasília, 5 de janeiro de 1989. Disponível em: link. Acesso: em 4 out. 2024

DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO HOMEM E DO CIDADÃO. [S. l.]: OHCHR, 1789. Disponível em: link. Acesso em: 02 out. 2024.

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Genebra: OHCHR, 1948. Disponível em: link Acesso em: 02 out. 2024.

PRINCÍPIOS DE YOGYAKARTA MAIS 10: Princípios e obrigações estatais adicionais sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual, identidade de gênero, expressão de gênero e às características sexuais que complementam os Princípios de Yogyakarta. Genebra: Yogyakarta, 2017. Disponível em: link.  Acesso em: 8 out. 2024.

STF. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4275/DF, Relator Min. Marco Aurélio, Redator do acórdão Min. Edson Fachin, j. 28 fev. 2018. Portal STF, Jurisprudência, DJe 29 mar. 2019. Disponível em: link.  Acesso em: 8 out. 2024

UOL. Os desafios que as pessoas trans enfrentam na política. UOL Notícias, 21 jul. 2024. Disponível em: link. Acesso em: 9 out. 2024.

Compartilhe nas Redes Sociais
Anúncio