O Holocausto foi o genocídio praticado pelo regime nazista que assassinou cerca de seis milhões de judeus, além de milhões de outras vítimas, incluindo ciganos, eslavos, Testemunhas de Jeová, negros, oponentes políticos, homossexuais, deficientes físicos e mentais, no período de 1933 a 1945.1 Este é um dos maiores crimes da história da humanidade, executada de forma horrenda em campos de concentração, extermínios e pelotões de execução. O mesmo é reconhecido e sua responsabilidade é assumida pelo Estado alemão, o qual procura lembrar desta tragédia por meio de seus memoriais, educação aos jovens, além de indenizar, dentro do possível, as vítimas sobreviventes do Holocausto.
No entanto, durante a Segunda Guerra Mundial muitos alemães e seus descendentes, (que não tinham ligação com o nazismo), foram vítimas de perseguição em diversos países, incluindo o Brasil. De fato, este é um assunto pouco divulgado na historiografia e sociedade brasileira. Há relatos de abusos, prisões de inocentes, bem como de aproveitadores que denunciavam alemães por inimizade pessoal ou para angariar prestígio das autoridades brasileiras.2
É inegável que houve atividades do partido nazista no Brasil, que exigiram combate do governo brasileiro. O pesquisador Stefan Rinke afirma que o Partido Nazista foi fundado em solo brasileiro antes mesmo de os nazistas assumirem o poder na Alemanha:
(…) em abril de 1928, o médico e oftalmologista Hans Asanger fundou o primeiro grupo local do partido nazista em Timbó, perto de Blumenau (SC). Ocorreu um grande boom em 1931, após uma vitória nazista em uma importante eleição na Alemanha. Em 1931, muitos grupos locais cresceram rapidamente de maneira independente no Brasil, a maioria sem ao menos saber da existência dos outros.3
Segundo o mesmo autor, no ano de 1933 (quando Hitler assumiu o poder na Alemanha), a sede central do partido nazista no Brasil já contava com cerca de 350 membros.4 No entanto, como havia vários grupos do partido nazista espalhados pelo país, o número de partidários e simpatizantes era maior, o que tornou o Brasil o maior polo do Partido Nazista na América Latina.
Ana Maria Dietrich é outra pesquisadora das atividades do Partido Nazista no Brasil. Em suas pesquisas, constatou que os embaixadores e cônsules alemães no Brasil costumavam viajar pelo interior do país e enviavam relatórios aos líderes nazistas na Alemanha, descrevendo, entre outras coisas, a posição geográfica, política e os costumes dos alemães no Brasil.5
O presidente Getúlio Vargas de início demonstrava simpatia ao nazifascismo, mas com a pressão do governo americano mudou sua política no fim da década de 1930 e a declaração de guerra contra a Alemanha veio em 1942, com o episódio dos submarinos alemães afundando embarcações brasileiras. A partir deste momento, os imigrantes alemães e seus descendentes se tornaram inimigos públicos em terras brasileiras. Neste aspecto, a pesquisadora Giralda Seyfert relata que os alemães e seus descendentes eram vistos como “quistos raciais” que ameaçavam a soberania nacional, que deveriam ser “assimilados” por meio da “nacionalização a força”, se quisessem continuar vivendo no Brasil. Neste contexto, muitos foram submetidos a prisões arbitrárias, policiamento ostensivo, perda de propriedades e humilhações públicas, como o castigo por se expressar em alemão.6
Micael Alvino da Silva pesquisou a presente temática no Estado do Paraná, o qual também sentiu os efeitos da repressão aos imigrantes alemães. Em 1942 foi editada a Lei de Fronteira, que tinha como objetivo estabelecer vigilância sobre os imigrantes do Eixo nas fronteiras brasileiras. Logo, as colônias alemãs e italianas localizadas na região de Foz do Iguaçu (PR) também ficaram sob suspeita de atividade subversiva. Há documentação que comprova que por ação do escrivão de polícia Aracy Albuquerque Neira, alguns colonos alemães foram presos e enviados para Guarapuava (PR), sob acusação de portarem armamento que foi correlacionada a supostas atividades nazistas. Inclusive, o prelado Manoel Koenner da Congregação Verbo Divino localizada em Foz do Iguaçu (PR), foi acusado de ser um agente nazista, sendo condenado a três anos de prisão pelo Tribunal de Segurança Nacional e, ao final, foi inocentado e reabilitado.7
Há relatos também de repressão em diversas outras regiões do sul do Brasil, como na Serra Gaúcha (RS), no Vale do Itajaí (SC) e na cidade de Rolândia (PR). Os pesquisadores Ângelo Priori e Verônica Karina Ipólito destacam um fato inusitado sobre a cidade de Rolândia no norte do Paraná: esta recebeu 400 famílias de origem alemã, sendo que 80 eram judias-alemãs. No entanto, até mesmo os judeus alemães que conseguiram escapar do nazismo ficaram sob suspeita das autoridades policiais brasileiras e eram submetidos ao mesmo processo de repressão.8 Isto mostra a histeria de ódio que se criou contra os imigrantes alemães, resultando em abusos e injustiças.
A partir do final da década de 1930 circulava no Brasil a ideia de que Hitler tinha a intenção de criar uma “Nova Alemanha” na região sul, a partir de colônias alemãs no Estado do Rio Grande do Sul. Os historiadores divergem quanto aos planos nazistas de anexação do sul do Brasil. Alguns entendem que há elementos suficientes que comprovariam a intenção de Hitler anexar o sul do Brasil ao seu sonhado Reich de mil anos.9 Outros alegam que se tratava de propaganda estimulada pelos governos ingleses e americanos para evitar o alinhamento político do Brasil ao lado da Alemanha, e que isto se tratou de uma paranoia de guerra.10
Há um consenso entre os pesquisadores que no geral os imigrantes alemães e seus descendentes tinham interesse sobre o que acontecia na Alemanha (pois ainda possuíam vínculos familiares por lá), porém a grande maioria não se filiou ao partido nazista, nem tinha pretensões ou atividades políticas. Encaravam o Brasil como seu novo lar e o foco era o trabalho e o desenvolvimento socioeconômico das colônias e/ou propriedades. A cultura e o idioma eram transmitidos por meio de escolas e clubes sociais recreativos (teatros, corais, orquestras, etc…), como também ocorria com outros imigrantes. Essas instituições foram banidas na Era Vargas. Em muitas escolas, professores alemães foram expulsos e substituídos por professores brasileiros. O simples fato de falar o idioma alemão já resultava em represálias, como escárnios, casas apedrejadas, suásticas pintadas nos muros, agressões e até prisões.
Priscila Ferreira Perazzo relata que em pelo menos sete Estados brasileiros (Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pará e Pernambuco), foram abertos campos de concentração para o aprisionamento de alemães (em maior número), italianos e japoneses. Havia mais de trinta destes campos, além de várias outras prisões em outras regiões do país. Muitos alemães e seus descendentes também tiveram suas propriedades confiscadas.11 Até hoje, nenhuma comissão governamental para a análise dos abusos foi feita, o que não gerou indenização para as vítimas ou familiares. Ao que tudo indica, dificilmente isto vai ser feito algum dia no Brasil, tendo em vista que se propaga a ideia automática de que “branquitude” em solo brasileiro é sinônimo de “privilégios”, sendo a perseguição aos alemães fato desconhecido da população em geral.
Mesmo após o fim da Segunda Guerra Mundial os alemães e seus descendentes continuaram sofrendo preconceito. Para se ter ideia do clima hostil que existia em relação aos alemães e seu idioma, é interessante citar a crônica “Olhos azuis” (publicada quatro anos após o fim da II Guerra Mundial, em 1949, na Revista “O Cruzeiro”), de autoria da famosa escritora Raquel de Queiroz:
Nem parecem olhos de brasileiros os olhos azuis com que nos fitam as gentes de certas zonas do sul… de brasileira aquela gente não tem nada, só mesmo o direito que a constituição lhe dá de serem chamados brasileiros…
Quem anda pela chamada “zona alemã” dos estados do sul, e especialmente pelo “Vale do Itaiaí”, em SC, a sensação que tem é de estar em país estrangeiro, e país estrangeiro inamistoso. E essa sensação nos é transmitida não só pela cor do cabelo e dos olhos dos habitantes… O brasileiro do Vale do Itajaí quando fala a língua nacional, fala-a como um estrangeiro… Fala mal, com sintaxe germânica, com uma pavorosa pronúncia germânica…”.12
Mais para frente, alegou (erroneamente) que os catarinenses sentiam rancor dos “alemães” por serem supostamente “desprezados” pelos mesmos e não fez cerimônia em chamar os “alemães” de “quistos raciais”, estigmatizando-os de “Brasil transviado” e pediu que se desse um jeito no problema alemão:
Se há, pois, quisto racial ainda em plena exuberância é aquele. Aquilo não é Brasil, ou se o é, é Brasil transviado, Brasil em mãos alheias… Alguém tem que dar um jeito nesse problema enquanto ele não se vira drama... E enquanto se espera o jeito, as crianças que nascem no vale do Itajaí continuam aprendendo o alemão como língua pátria, se batizando em alemão, lendo em alemão, pensando em alemão, vivendo e morrendo em alemão.13
Apesar dos protestos do prefeito de Blumenau (SC), da Câmara de Vereadores de Blumenau (SC) e de diversos periódicos catarinenses, Rachel de Queiroz (que foi muito bem recebida em Santa Catarina), não reconheceu o erro, nem pediu desculpas. A postura da escritora cearense é surpreendente. Rachel de Queiroz (nordestina que quando criança viveu como imigrante em São Paulo/SP), foi a primeira mulher a ingressar na Academia Brasileira de Letras ao relatar todo o sofrimento do povo nordestino em suas obras. Também foi presa pelo mesmo regime Vargas (que perseguiu os alemães), por questões ideológicas.
Digno de nota que os nazistas usaram expressões parecidas com as da escritora, pois também alegavam que os “judeus” desprezavam os alemães, não se integravam no país e utilizaram o termo resolução do “problema judaico”, que primeiro começou a ser “resolvido” com a expulsão e depois com o extermínio. Assim, é possível entender como a desconfiança e o preconceito contra os alemães e seus descendentes é uma história propositalmente pouco conhecida e divulgada em nossa sociedade.
Referências
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1. GRANOVSKY, S. Los otros Genocidios de Hitler – Homosexuales, Testigos de Jehova Y Cristianos, Políticos e Intelectuales, Gitanos, Débiles Mentales Y Discapacitados Físicos. Buenos Aires (Argentina), Peña Lillo, 2016.
2. BROCCA, L. As perseguições aos Súditos do Eixo através das páginas do Jornal Correio do Povo durante a Segunda Guerra Mundial. Departamento de Licenciatura em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS: 2010.
3. RINKE, S. Alemanha e Brasil, 1870-1945: uma relação entre espaços. História, Ciências, Saúde, p.13 − Manguinhos, Rio de Janeiro. Disponível em: https://bit.ly/3D97hXG, ano 2013.
4. Idem, p.12.
5. DIETRICH, A. M. Nazismo Tropical? O Partido Nazista no Brasil, p.173, Tese de Doutorado, Departamento de História e Núcleo de Estudos em História Oral da USP, SP: 2007.
6. SEYFERT, G. A assimilação dos imigrantes como questão nacional. Mana [online]. vol.3, n.1, p.97, disponível em: https://bit.ly/3j5XOd2, ano 1997.
7. SILVA, M.C. Fragmentos de uma história paranaense: repressão policial na parte brasileira da Tríplice Fronteira (1942-1945). Revista de História Contemporânea, Foz do Iguaçu (PR): nº 2, mai-out/2008.
8. PRIORI, A. & IPÓLITO, V.K. DOPS, a Cidade de Rolândia (PR) e a repressão dos imigrantes de origem alemã (1942-1945), p.560. Varia Historia, Belo Horizonte, MG, vol. 31, n. 56, p. 547-580, mai/ago 2015.
9. LUVIZOTO, K.L. O nazismo no Rio Grande do Sul. Cultura Acadêmica, Editora UNESP, São Paulo, SP: 2009.
10. GERTZ, R. Os “súditos alemães” no Brasil e a “pátria mãe” Alemanha. Espaço Plural, Ano IX, nº 19, 67-73, UNIOESTE, Ponta Grossa, PR: 2008.
11. PERAZZO, Priscila Ferreiro. Prisioneiros de guerra. Os cidadãos do Eixo nos campos de concentração brasileiros (1942-1945), Tese de Doutorado, USP, 2002.
12. FRITZEN, M.P. Línguas em conflito em uma escola rural localizada em zona de imigração no Sul do Brasil. Trab. Ling. Aplic., 341-356, Campinas, SP: Jul-Dez/2008.
13. Portal da Crônica Brasileira: https://bit.ly/3Htl6mg