Frequentemente temos que nos deparar com os esgotos da branquitude, enquanto sistema de poder que se beneficia da memória colonial e que constrói lugares políticos precários para os sujeitos negros. Trata-se de uma lógica enraizada e que objetiva sustentar práticas, valores e sentidos que coordenam os lugares sociais, epistêmicos estéticos, para retroalimentar assimetrias políticas. Esses lugares de ocultamento aparecem, inclusive, quando somos ditos/as/es por aqueles que desconsideram nossas produções, saberes e, sobretudo, esvaziam os impactos da escravização na construção política da raça e dos desníveis sociais que se desdobraram dessa construção.
Há, nesses termos, um sistema assimétrico forjado nas práticas discriminatórias que estruturaram a nossa realidade social, a fim de que corpos negros sejam associados às imagens de subordinação, controle e destruição. Lidamos, assim, com uma fabricação política atravessada pelo lastro colonial que deseja, de modos multifacetados, reiterar uma arquitetura de precarização, aos moldes da casa grande.
A definição inferiorizante do negro perdurou mesmo depois da degradação da sociedade escravocrata e da sua substituição pela sociedade capitalista, regida por uma ordem social competitiva. Negros e brancos viam-se e entreviam-se através de uma ótica deformada consequente à persistência dos padrões tradicionalistas das relações sociais. O negro era paradoxalmente enclausurado na posição de liberto: a ele cabia o papel de disciplinado — dócil, submisso e útil — enquanto o branco agia com autoritarismo, por vezes paternalista, que era característico da dominação senhorial. Esse lugar de inferioridade se espalhava no modo de inserção da população negra no sistema ocupacional das cidades. 1
A raça e, por consequência, o racismo antinegro dizem respeito a um sistema de poder que se beneficia, há séculos, do aviltamento de sujeitos designados como os outros. Logo, identificamos o racismo como um sistema que aponta, de forma estrutural, sujeitos como inimigos e, por essa razão, justifica a sua destruição, o seu genocídio e a privação de acessos sociais e políticos.
Nesse sentido, a farsa do racismo reverso indica uma tentativa retórica de nivelar experiências políticas, desconsiderando uma história secular de escravização e os impactos contemporâneos desse processo. Assim, se pensarmos na branquitude como uma engrenagem que, da modernidade até aqui, sustenta limites sociais para manter os seus privilégios, não há possibilidade de haver legitimidade nesse “reverso”.
O racismo é um processo político. Político porque, como processo sistêmico de discriminação que influencia a organização da sociedade, depende de poder político; caso contrário seria inviável a discriminação sistemática de grupos sociais inteiros. Por isso, é absolutamente sem sentido a ideia de racismo reverso. O racismo reverso seria uma espécie de “racismo ao contrário”, ou seja, um racismo das minorias dirigido às maiorias. Há um grande equívoco nessa ideia porque membros de grupos minoritários podem até ser preconceituosos ou praticar discriminação, mas não podem impor desvantagens sociais a membros de grupos majoritários. 2
Não somos informados/as/es que a brancura é sinônimo de deslegitimidade, ou que ela é impeditivo para que as pessoas ascendam socialmente. Ao contrário, aprendemos, numa sociedade branca, masculina, cisgênera e que se regula nas leis dos privilégios econômicos e territoriais, que o que se distancia desses padrões ontológicos normativos deve ser denunciado. A brancura, entrecortada pelos marcadores de designação política de subjetividade, é publicizada como a norma, em razão de uma estrutura ideologicamente articulada para manter acesas as chamas da colonização, como memória viva e como sistema de gerenciamento dos corpos.
Nesses termos, compreendermos que somos letrados/as/es pela ótica da branquitude, como sistema de poder, dominação e exclusão garante que naturalizemos espaços de violação. Ao rompermos com essas práticas pedagógicas de aniquilamento, percebemos o engodo do racismo reverso e que esse argumento não é um delírio, mas uma tentativa perversa de ocultar os impactos devastadores do racismo antinegro na história e na contemporaneidade.
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Referências
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1. SOUZA, Neusa Santos. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.
2. ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen; Sueli Carneiro, 2019.