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Desalojar-se pelo direito: uma possibilidade de descolonização dos corpos e dos saberes-poderes?

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Vivemos inseridos e inseridas em uma sociedade (que se autoproclama democrática) que é regida por normas que têm, como principal objetivo, a pacificação social; pelo menos é isso o que se ensina nos salas de aula, dos cursos de direito espalhados pelo país. Leciona-se, também, que a lei representa a vontade do povo, tendo em vista que são pensadas, propostas e promulgadas pelos seus representantes. Pensando em representação a partir das normas jurídicas, pego-me refletindo se todas e todas que não se enquadram no padrão cisheteronormativo, judaico-cristão, branco, de classe média, com o corpo e mente sãos, realmente aparecem no arcabouço legislativo que rege nossas vidas e existência. Acho que não.

Esta falsa ideia de representativa geral serve apenas para alimentar o imaginário coletivo de que vivemos, realmente, em uma democracia “à lá Grécia” antiga. Basta passar os olhos pelas nossas leis, por algumas decisões proferidas pelo Poder Judiciário e prestar um pouco de atenção à atuação do Ministério Público, para que tenhamos a certeza de que estamos à serviço de um sistema colonizador de corpos a partir de saberes-poderes que contemplam os interesses de minorias (quantitativas).

Corpos são racializados, identidades não indesejadas são expurgadas do seio social, existências são repugnadas e abjetadas – mas apenas daqueles e daquelas que, repito, não se enquadram no padrão cisheteronormativo, judaico-cristão, branco, de classe média, com o corpo e mente sãos. O modelo que se adequa aos interesses da elite jurídica é o europeu colonizador, por isso digo e afirmo que vivemos em uma sociedade regida por um direito colonizante e que expurga e apaga quem dele difere; basta uma análise rápida sobre as ementas dos cursos de direito, de alguns processos judiciais e da atuação do poder legislativo.

Quantas normas foram/são promulgadas pensando no contexto vivido por pessoas em condição de extrema vulnerabilidade social, entendendo-as como seres humanos e sujeitos de direitos? Quantas decisões são proferidas de forma a resguardar a identidade autodeterminada e as condições necessárias para que se viva uma vida digna e vivível? Quantas pessoas não-brancas foram encarceradas e privadas da sua liberdade e existência, sem que se fizesse uma necessária análise da sua existência em meio a uma sociedade que é formatada por um racismo estrutural? Quantas foram as decisões que privilegiaram o formalismo e o coronelismo face à dignidade da pessoa humana? Em quantas demandas a palavra da mulher vítima de violência sexual, física, psicológica, foi rebaixada aos níveis mais obscuros criados e mantidos por um patriarcado letal? Estas questões, embora sejam apenas a ponta de um grande iceberg, podem ser um pontapé para que iniciemos uma reflexão sobre a aplicabilidade do direito puro, concreto, direto, não-humano, imoral. Já que basta de ouvir a famosa frase: “é imoral, mas é legal, fazer o que?”, pensemos, então, no que fazer.

O direito é uma realidade da qual, pelo menos não por ora, não podemos e não conseguiremos nos esquivar. Walter Benjamin, Jacques Derrida, Hannah Arendt, Judith Butler, Paul Preciado, Sueli Rolnik: todos e todas já se debruçaram sobre a violência norteadora do direito, que vai desde o momento da sua fundação, até a sua aplicação e efetivação, e propuseram ações coletivas, fossem de ordem filosófica ou política, mas sempre levando em consideração a inevitabilidade da força propulsora dos normas e das decisões jurídicas. Estamos inseridos em um sistema chamado por Rolnik1  de sistema de alojamento, o qual, a todo instante, tenta sufocar as possibilidades inventivas e de vida.

Dialeticamente, uma vez que o sistema vigente é o de alojamento e que, onde há poder há resistência, uma forma que nos permitiria ressignificar e repensar a conjuntura jurídica-política-social-estrutural da sociedade, seria a partir do que Suely Rolnik nomeia como desalojamento. Este desalojar-se, fazendo uso dos sistemas vigentes e de forma a promover a descolonização dos corpos e dos saberes-poderes, provém de um produto do desejo guiado por uma espécie de agulha moral que aponta para direções diversas de modos de existir e de representar fugas rápidas das angústias geradas pelo alojamento circunscrito pelos dispositivos de poder hegemônico.2

Neste sentido, “as experimentações de si, seus exercícios, táticas ou hackeamentos, constituem-se possíveis quando pensados sob o viés dos deslocamentos/desalojamentos, efetivando-se quando a prática é o produto do pensar e do insurgir”.3 E este pensar e se insurgir deve ocorrer com atenção ao fato de que o combate micropolítico carregado de potencialidades afirmativas deve ser uma produção de ações cotidianas, seja nos atritos com os aparelhos do Estado ou as molecularidades que circulam dentro dele.4

O potencial de agência, quando assim pensado, dever ser verificado em todas as relações celebradas entre os corpos que compõem uma sociedade, afinal, aliada à precariedade, “a vulnerabilidade não precisa ser identificada exclusivamente como passividade; ela só faz sentido à luz de um conjunto concreto de relações sociais, incluindo práticas de resistências”.5 E, compreender tanto a precariedade e vulnerabilidade de corpos como uma tática de desalojamento pelo direito, pode nos “ajudar a compreender como e por que as formas de resistência surgem da maneira que surgem. Embora a dominação não seja sempre seguida de resistência, se nossos quadros referenciais de poder não conseguirem entender que vulnerabilidade e resistência podem funcionar juntas, corremos o risco de não identificarmos os pontos de resistência criados pela vulnerabilidade”.6

Que pensemos o direito a partir de uma escuta ativa e crítica, e que não se perca o potencial surgido das mais diversas condições de vida existentes em nossa sociedade e que rondam o nosso dia a dia.

 

Referências

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1. ROLNIK, Suely. ESFERAS DA INSURREIÇÃO: notas para uma vida não cafetinada. Suely Rolnik, São Paulo: n-1 edições, 2018.

2. ROLNIK, Suely. ESFERAS DA INSURREIÇÃO: notas para uma vida não cafetinada. Suely Rolnik, São Paulo: n-1 edições, 2018.

3. CASTELEIRA, Rodrigo Pedro. (Des)pregamentos e táticas nos cotidianos narrados por travestis: desalojamentos em espaços prisionais como modos de (r)existências. Curitiba: Brazil Publishing, 2021.

4. ROLNIK, Suely. ESFERAS DA INSURREIÇÃO: notas para uma vida não cafetinada. Suely Rolnik, São Paulo: n-1 edições, 2018.

5. BUTLER, Judith. A força da não violência: um vínculo ético-político. São Paulo: Boitempo, 2021, p. 148.

6. BUTLER, Judith. A força da não violência: um vínculo ético-político. São Paulo: Boitempo, 2021, p. 148.

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