Direitos Humanos e Discriminação Racial: Uma Leitura Jurídica de O Sol é Para Todos O MAURITANO – Um Estudo sobre Habeas Corpus e o Estado de Direito

Direitos Humanos e Discriminação Racial: Uma Leitura Jurídica de O Sol é Para Todos O MAURITANO – Um Estudo sobre Habeas Corpus e o Estado de Direito

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No contexto do projeto de extensão Cine&Art, que tem como objetivo promover discussões jurídicas e sociais a partir de obras artísticas, o filme O Sol é Para Todos (To Kill a Mockingbird, 1962) se destaca como uma excelente fonte para refletir sobre temas essenciais ao Direito, como justiça, igualdade, discriminação racial e direitos humanos .Baseado no livro homônimo de Harper Lee, o longa retrata o ambiente segregacionista do sul dos Estados Unidos nos anos 1930, evidenciando como o racismo estrutural da sociedade afeta diretamente o sistema jurídico.

A história acompanha Atticus Finch, um advogado branco que aceita defender Tom Robinson, um homem negro acusado injustamente de estuprar uma mulher branca. A narrativa é contada pela filha de Atticus, Scout Finch, e traz uma perspectiva sensível e crítica sobre como o preconceito racial estava (e ainda está) enraizado nas instituições. O caso de Tom não representa apenas um erro judicial, mas sim um exemplo de como o Direito pode ser usado para reforçar desigualdades sociais ao invés de combatê-las.

Durante o julgamento, fica claro que a culpa atribuída a Tom Robinson está ligada exclusivamente à sua cor de pele. Mesmo com provas que apontam para sua inocência, o júri composto apenas por homens brancos, decide pela condenação. Essa situação mostra como o Judiciário, que deveria ser um espaço de justiça imparcial, pode se tornar cúmplice de injustiças quando influenciado por preconceitos sociais. Ao assistir ao filme, é difícil não pensar em casos semelhantes que ocorrem no Brasil e em outras partes do mundo até hoje.

No caso brasileiro, embora o contexto histórico seja diferente, o racismo estrutural também se manifesta de forma intensa. A Constituição Federal de 1988 determina, em seu artigo 5º, que todos são iguais perante a lei, e ainda estabelece no inciso XLI que o preconceito será punido. O art. 3º, inciso IV, reforça esse compromisso, colocando como objetivo do Estado a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor ou idade. Porém, o que se observa na prática é que essas garantias muitas vezes não se concretizam no dia a dia de grande parte da população negra.

Apesar de avanços legais importantes, como a Lei nº 7.716/1989, que define os crimes de racismo, e o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/2010), o racismo continua operando de maneira velada (e às vezes explícita) nas instituições brasileiras. A sub-representação de pessoas negras em cargos públicos, a violência policial direcionada às periferias, e a dificuldade no acesso a direitos básicos mostram que a igualdade formal ainda está distante de uma igualdade real.

O filme, nesse sentido, funciona como uma espécie de espelho da nossa realidade. A injustiça cometida contra Tom Robinson é uma crítica direta à seletividade do sistema penal e à desigualdade de tratamento jurídico com base em marcadores raciais. Mesmo passados tantos anos, o enredo nos faz questionar: o quanto realmente evoluímos em termos de combate ao racismo no campo jurídico?

A Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), de 1948, afirma em seu artigo 1º que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. Esse princípio é a base para os direitos fundamentais em várias constituições ao redor do mundo, incluindo a brasileira. No entanto, como mostra o filme, a distância entre a norma escrita e a realidade vivida por pessoas negras é grande. O desafio não está apenas em criar leis, mas em fazer com que elas sejam aplicadas de forma efetiva.

Dentro da Constituição brasileira, o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III) é um dos pilares do Estado Democrático de Direito. Ele serve de fundamento para políticas públicas e decisões judiciais que busquem corrigir desigualdades históricas. Além disso, o art. 133 da Constituição destaca o papel fundamental do advogado na busca pela justiça. Nesse ponto, o personagem Atticus Finch se torna um símbolo do profissional do Direito que atua de forma ética e comprometida com a verdade, mesmo enfrentando pressões sociais e preconceitos.

A atuação de Atticus mostra a importância de garantir o contraditório, a ampla defesa e a imparcialidade judicial, princípios previstos no art. 5º, incisos LIV e LV, da nossa Constituição. Ele não se deixa levar pelas opiniões da maioria ou pelo racismo que domina a cidade. Sua coragem em enfrentar o tribunal e defender um homem negro em um contexto claramente racista é um exemplo do papel transformador que o Direito pode ter, mesmo em ambientes hostis.

Mesmo com o final trágico, Tom é condenado e acaba sendo morto ao tentar fugir da prisão, o filme deixa uma mensagem poderosa: o Direito pode ser uma ferramenta de resistência e mudança social. Isso depende da forma como ele é aplicado e das pessoas que o colocam em prática. A coragem de Atticus representa todos os profissionais do Direito que, mesmo diante de desigualdades e injustiças, não abrem mão dos princípios éticos e dos direitos humanos.

Infelizmente, o tipo de racismo retratado em O Sol é Para Todos ainda está presente na sociedade brasileira. Casos como o de Genivaldo de Jesus Santos, morto em 2022 por agentes da Polícia Rodoviária Federal que o asfixiaram com gás dentro de uma viatura, são exemplos de como o racismo institucional continua matando. Além disso, há uma série de situações cotidianas, como a abordagem violenta e discriminatória nas periferias, que mostram que o preconceito continua sendo um problema estrutural que precisa ser combatido com seriedade.

Por isso, é essencial investir em uma formação jurídica crítica, que estimule os estudantes a pensar além da letra da lei. É preciso entender o contexto social e histórico em que o Direito se insere, reconhecer seus limites e lutar para que ele se torne uma ferramenta de inclusão e não de opressão. Filmes como O Sol é Para Todos ajudam muito nesse processo, pois permitem enxergar como as injustiças são construídas e, mais importante, como elas podem ser enfrentadas.

Em resumo, O Sol é Para Todos é mais do que uma obra de ficção. Ele nos obriga a refletir sobre o papel do Direito diante das desigualdades sociais e raciais. A história de Tom Robinson mostra que a justiça nem sempre prevalece, mas também nos lembra que sempre haverá aqueles que se levantam para lutar por ela. Cabe a nós, futuros operadores do Direito, escolher de que lado estaremos.

 

Referências

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O Sol é Para Todos (To Kill a Mockingbird), direção de Robert Mulligan, produção de Alan J. Pakula. EUA: Universal Pictures, 1962. 129 min.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 5 out. 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 1 jul. 2025.

BRASIL. Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 6 jan. 1989. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7716.htm.Acesso em: 1 jul. 2025.

BRASIL. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 jul. 2010. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12288.htm. Acesso em: 1 jul. 2025.

NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Paris, 1948. Disponível em: https://www.ohchr.org/pt/human-rights/universal-declaration/translations/portuguese. Acesso em: 1 jul. 2025.

LEE, Harper. O sol é para todos. Tradução de Beatriz Horta. Rio de Janeiro: José Olympio, 2006

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