Divórcio Internacional e a Lei da Residência: Os Desafios Jurídicos na Dissolução Conjugal Transnacional

Divórcio Internacional e a Lei da Residência: Os Desafios Jurídicos na Dissolução Conjugal Transnacional

divórcio

Introdução

 

A crescente incidência de vínculos familiares transnacionais reflete transformações sociais profundas, impulsionadas pela globalização, mobilidade internacional, novas formas de trabalho e a expansão dos mercados globais. Casamentos entre pessoas de diferentes nacionalidades ou celebrados em países distintos são cada vez mais frequentes — e, com eles, emergem conflitos complexos quando o matrimônio chega ao fim.

Nessas situações, o Direito é confrontado com dilemas nada triviais: que legislação deve reger o divórcio? Qual país tem autoridade para processar a causa? Como lidar com decisões divergentes proferidas por tribunais estrangeiros? Tais indagações exigem uma abordagem integrada, envolvendo Direito de Família, Direito Internacional Privado e instrumentos internacionais vigentes.

Este artigo analisa criticamente o critério da residência habitual como elemento de conexão, destacando os desafios práticos, os choques normativos e as alternativas reconhecidas pela doutrina e jurisprudência internacionais.

 

  1. Residência Habitual como Elemento de Conexão

A residência habitual é largamente adotada como ponto de partida para se determinar a lei aplicável ao divórcio, sendo, inclusive, critério primário no Regulamento Roma III da União Europeia. Esse regulamento prioriza a existência de um elo real e duradouro entre os cônjuges e o ordenamento jurídico, permitindo, ainda, a escolha prévia da lei aplicável — desde que exista conexão legítima.

Contudo, a definição de residência habitual varia entre os países. Enquanto alguns exigem um período mínimo de permanência, outros priorizam aspectos subjetivos, como a intenção de fixar moradia, vínculos emocionais ou inserção profissional e educacional. A ausência de um conceito padronizado abre margem para insegurança jurídica, sobretudo em casos de migração recente ou múltiplas mudanças de domicílio.

Essa instabilidade, na prática, pode resultar em processos paralelos e decisões conflitantes, principalmente quando diferentes tribunais se baseiam em critérios diversos para estabelecer a jurisdição.

 

  1. Conflitos de Leis e Jurisdição

A multiplicidade de ordenamentos jurídicos aplicáveis ao divórcio internacional naturalmente gera conflitos de normas e competência. No Brasil, embora o artigo 7º da LINDB determine que os efeitos do casamento são regidos pelo domicílio dos cônjuges, não há previsão específica sobre o divórcio com elementos internacionais — o que leva à necessidade de interpretações jurisprudenciais e uso subsidiário de normas externas.

Essa lacuna normativa propicia práticas como o forum shopping, em que uma das partes escolhe iniciar o processo em jurisdição mais favorável, buscando vantagens que podem comprometer o equilíbrio do julgamento. Embora juridicamente possível, essa estratégia levanta questionamentos sobre a ética processual e sobre a igualdade de condições entre os cônjuges envolvidos.

Quando uma parte recorre ao forum shopping, a escolha da jurisdição pode ser influenciada por fatores como leis mais favoráveis a seus interesses financeiros ou patrimoniais. Esse comportamento, além de prolongar os litígios, pode resultar em decisões desequilibradas e, em alguns casos, até prejudicar o acesso à justiça da parte contrária. A ausência de regras uniformes para divórcios com elementos transnacionais intensifica esse problema, deixando espaço para conflitos de interpretação e aplicação das normas. Portanto, torna-se essencial a busca por mecanismos internacionais que promovam maior harmonização e previsibilidade nas relações jurídicas.

Em precedentes nacionais, o Judiciário brasileiro já reconheceu sua competência para julgar ações de divórcio envolvendo cidadão domiciliado no Brasil, mesmo quando o casamento tenha sido celebrado no exterior e o outro cônjuge resida fora do país. Essa competência encontra respaldo no artigo 12 da LINDB, que estabelece a jurisdição brasileira quando o réu for domiciliado no Brasil ou quando aqui deva ser cumprida a obrigação.

 

  1. Regime de Bens e Alimentos: Divergências Significativas

Quando o casamento possui elementos internacionais, a sua dissolução tende a desencadear impactos relevantes sobre o patrimônio e sobre a fixação de alimentos, cujas soluções jurídicas variam consideravelmente de acordo com o país envolvido. A definição do regime de bens entre os cônjuges, por exemplo, pode ocorrer por meio de pacto antenupcial ou, na ausência deste, será determinada pela legislação vigente no local e momento da celebração do casamento. No Brasil, a regra do art. 7º, §4º, da LINDB estabelece a aplicação da lei do domicílio dos nubentes na data do enlace, salvo convenção em sentido diverso.

Nos sistemas jurídicos de países como França, Alemanha e Brasil, prevalecem regimes legais supletivos. No Brasil, a comunhão parcial de bens é o regime adotado como padrão. Na França, adota-se a communauté réduite aux acquêts, cuja função se aproxima da norma brasileira. Já na Alemanha, vigora o regime de comunhão de aquestos (Zugewinngemeinschaft), que considera apenas o patrimônio adquirido durante o casamento como objeto de partilha.

Nos Estados Unidos, por sua vez, a regulação varia entre os estados. Os estados como Arizona, California, Idaho, Louisiana, Nevada, New Mexico, Texas, Washington, Wisconsin, por exemplo, aplicam o sistema de community property, que pressupõe a divisão equitativa dos bens adquiridos ao longo da união. Em contrapartida, outros 40 estados norte-americanos seguem o modelo da equitable distribution, que é o mais utilizado, no qual a divisão patrimonial se pauta por critérios de equidade, e não necessariamente pela igualdade.

As abordagens relativas à pensão alimentícia também revelam disparidades significativas. No Brasil, de acordo com o art. 1.694 do Código Civil, os alimentos podem ser concedidos por prazo indeterminado, observando-se a necessidade de quem os pleiteia e a possibilidade de quem os fornece. Já no Reino Unido, a perspectiva dominante é a da autonomia financeira após o divórcio, o que leva à fixação de pensões por períodos curtos, excetuadas situações excepcionais. Essa lógica se traduz na prática conhecida como clean break, que visa encerrar as obrigações econômicas mútuas o mais rapidamente possível.

Diante de contextos em que o patrimônio está situado fora do país, ou em que a vida do casal esteve profundamente vinculada a uma jurisdição estrangeira, a aplicação da lei internacional pode se mostrar mais coerente com os fatos. Tanto a doutrina quanto a jurisprudência brasileira reconhecem a importância do princípio da realidade das relações jurídicas, bem como a incidência da lex rei sitae — ou seja, a aplicação da lei do local onde se encontram os bens — para a adequada partilha patrimonial.

  1. Sentenças Estrangeiras: Homologação e Execução

Para que uma sentença estrangeira produza efeitos no Brasil, é, em regra, necessário submetê-la previamente à homologação do Superior Tribunal de Justiça (STJ), conforme previsto no artigo 105, inciso I, alínea “i”, da Constituição Federal. Trata-se do procedimento que reconhece, no plano interno, a validade de decisões proferidas por autoridades estrangeiras, sejam elas judiciais ou equiparadas a sentenças pelo ordenamento brasileiro.

Essa exigência é reforçada pelo artigo 961 do Código de Processo Civil (CPC), que condiciona a eficácia de decisões estrangeiras à homologação pelo STJ. O trâmite está disciplinado nos artigos 216-A a 216-X do Regimento Interno do Tribunal, inseridos por meio da Emenda Regimental nº 18.

Contudo, há uma exceção importante. Quando se trata de sentença estrangeira de divórcio consensual simples — ou seja, aquela que trata apenas da dissolução do vínculo conjugal, sem envolver partilha de bens, alimentos ou guarda de filhos — não há necessidade de homologação. Nesses casos, é possível encaminhar diretamente a decisão ao cartório de registro civil, nos termos do Provimento nº 53/2016 da Corregedoria Nacional de Justiça.

Já nas hipóteses em que a sentença aborde questões patrimoniais, obrigações alimentares ou direitos relacionados à guarda, a homologação continua obrigatória. O requerimento deve ser feito por meio eletrônico, mediante petição assinada por advogado endereçada ao presidente do STJ. O processo exige o pagamento das custas e o cumprimento dos requisitos estabelecidos no artigo 963 do CPC, além da apresentação dos documentos previstos nos artigos 216-C e 216-D do Regimento Interno do Tribunal.

Caso não haja consentimento da parte contrária, será necessário promover sua citação: por carta rogatória, se domiciliada no exterior, ou por carta de ordem, se residente no Brasil. A carta rogatória deve ser traduzida por tradutor juramentado — ou, na ausência deste para o idioma necessário, poderá ser nomeado um tradutor ad hoc. Após o trâmite internacional, o documento retorna ao STJ, cabendo à parte requerente apresentar a tradução do comprovante de citação (ou sua ausência), para que o processo possa ter continuidade.

Por fim, uma vez homologada, a execução da sentença deve ser promovida perante a Justiça Federal de primeira instância, conforme dispõe o artigo 965 do CPC.

 

  1. Caminhos para Harmonização e Prevenção de Conflitos

A inexistência de um marco normativo uniforme para o divórcio internacional impõe desafios que podem ser enfrentados por meio de mecanismos preventivos. Pactos antenupciais com cláusulas de eleição de foro e de lei aplicável representam ferramentas eficazes para mitigar disputas futuras.

A mediação internacional também se apresenta como alternativa valiosa, sobretudo em litígios que envolvem filhos e questões de guarda. Incluir cláusulas de mediação em contratos familiares pode reduzir custos, evitar judicializações e minimizar impactos emocionais.

A adoção de instrumentos internacionais tem sido fundamental para garantir segurança jurídica nas relações familiares transnacionais. Destaca-se, nesse sentido, a Convenção da Haia sobre a Cobrança Internacional de Alimentos para Crianças e Outros Membros da Família, concluída em 2007 e promulgada no Brasil pelo Decreto nº 9.176/2017. Esse instrumento fortalece a cooperação entre os Estados e possibilita o reconhecimento mútuo de decisões estrangeiras sobre alimentos, promovendo maior celeridade e efetividade na tutela dos direitos fundamentais da criança e da família.

Conclusão

O divórcio internacional evidencia a necessidade de um Direito de Família transnacional estruturado, capaz de lidar com a pluralidade jurídica dos tempos atuais. Embora a residência habitual seja amplamente utilizada como critério de conexão, ela não elimina os riscos e lacunas ainda presentes nesse tipo de litígio.

É imprescindível que os profissionais do Direito estejam atentos à articulação entre legislações nacionais e internacionais, aos instrumentos de cooperação entre tribunais e à utilização de cláusulas e acordos preventivos. Uma atuação técnica, prudente e estrategicamente orientada é essencial para garantir segurança jurídica e equidade às partes — especialmente em cenários de vulnerabilidade, como nos casos com filhos ou dependência econômica.

A construção de um Direito de Família globalizado, pautado em princípios como a autonomia privada, a boa-fé e a proteção integral, é um desafio inadiável para os próximos anos.

 

Referências

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BRASIL. Decreto nº 9.176, de 19 de outubro de 2017. Promulga a Convenção sobre a Cobrança Internacional de Alimentos para Crianças e Outros Membros da Família, concluída em Haia, em 23 de novembro de 2007. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 out. 2017. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/d9176.htm. Acesso em: 23 abr. 2025.

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