No Brasil temos os leilões extrajudiciais promovidos por inúmeras instituições financeiras privadas e públicas que, diante do inadimplemento de um contrato de alienação fiduciária, levam os imóveis à venda por meio de Hasta Pública na expectativa de que algum interessado arremate-os.
Ocorre que antes da consolidação da propriedade em nome do banco e da posterior alienação em Hasta Pública, o devedor já possuía há um bom tempo a posse direta do imóvel e, em muitos casos, ele e a sua família se negam a sair, inclusive alegando a inconstitucionalidade do procedimento expropriatório ou talvez a proteção do bem de família conferida na Lei n. 8.009/1990.
No entanto, respeitando entendimentos em sentido contrário, tal negativa não se mostra firme e razoável, primeiro porque é assente na Suprema Corte que a execução extrajudicial é constitucional (RE 627106/STF c/c Tema 982/STF) e segundo porque não há o que se falar em bem de família no caso em testilha, visto que a propriedade sequer do devedor é.
Portanto, uma vez registrada a propriedade no nome do arrematante, o presente artigo defende que o novo proprietário deve ter garantido o seu direito à imissão na posse, inclusive por meio de liminar conforme o entendimento já sumulado no TJ/SP: “É cabível liminar em ação de imissão de posse, mesmo em se tratando de imóvel objeto de arrematação com base no Decreto-Lei nº 70/66” (Súmula 4 do TJ/SP).
De mais a mais cumpre registrar que a partir do momento no qual ocorreu a consolidação da propriedade em favor da Instituição Financeira, ou seja, antes mesmo da arrematação em Hasta Pública, não há o que se falar em posse legítima por parte do devedor que não honrou com o contrato de alienação fiduciária, tal conclusão se visualização na doutrina especializada.
a partir da consolidação da propriedade fiduciária em nome do credor, por conta do inadimplemento da dívida por ela garantida, a posse direta do imóvel pelo antigo fiduciante se torna injusta e ilegítima (DANTZGER, 2021, p. 152).1
Menciono igualmente uma decisão do ano de 2022 prolatada pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que, após analisar uma lide real, manteve a postura acima no sentido de que após a consolidação da propriedade pelo banco, a posse do devedor torna-se completamente indevida, tendo o arrematante o direito de ser indenizado pelo uso irregular do seu imóvel:
Apelação cível. Imissão na posse. Autores proprietários de imóvel adquirido perante a Caixa Econômica Federal. Recusa injustificada dos réus em desocupá-lo. Sentença de procedência. Perda do objeto. Afastamento. Posse indevida da apelante, desde o momento da consolidação da propriedade em nome da credora fiduciária. Possibilidade do pedido de imissão na posse, assim como do dever de indenizar os detentores do direito de propriedade (apelados).2 (Grifei).
Além do mais, ao analisarmos a legislação, percebemos que o art. 1.228 do Código Civil é bastante claro em dispor que “O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”. O Código Civil igualmente dispõe que a propriedade deve ser presumida como plena e exclusiva (art. 1.231 do CC/02).
A doutrina, no mesmo sentido do Código Civil, é bastante clara em dispor que a propriedade “Consiste no direito de utilizar a coisa de acordo com a sua vontade, com a exclusão de terceiros, de colher os frutos da coisa e de explorá-la economicamente e no direito de vender ou doar a coisa (jus utendi, fruendi e abutendi)” (PINHO, Rodrigo César Rebello. Teoria Geral da Constituição e Direitos Fundamentais, v. 17, São Paulo: Editora Saraiva, 2000, pg. 113/114).
Igualmente favorecendo o arrematante, temos o teor da Súmula n. 487 do Supremo no sentido de que “Será deferida a posse a quem, evidentemente, tiver o domínio, se com base neste for ela disputada”, assim garantindo o direito à posse ao proprietário.
Não se nega que a Ação de Imissão na Posse é de natureza petitória, visto que o arrematante invoca o seu domínio para requer o acesso à posse pela primeira vez, não havendo impropriedades na aplicação da Súmula n. 487 do Supremo ao caso.
A fim de não deixar dúvidas a respeito da natureza petitória da ação analisada, cumpre invocarmos a posição segura do STJ no AgInt no AREsp n. 903.568/GO – DJe de 22/8/2018, no REsp n. 1.126.065/SP – DJe 07/10/2009 e no REsp n. 404.717/MT – DJ de 30/9/2002.
No mesmo sentido do STJ, a doutrina consagra que a ação de imissão na posse baseia-se no domínio, deixando claro que ela é utilizada pelo proprietário que deseja assumir a posse do imóvel pela primeira vez com fulcro no seu direito real de propriedade:
À primeira vista, poderia o nome imissão de posse indicar uma espécie de ação possessória. Contudo, é tipicamente uma ação petitória que, na maior parte das situações, deverá ser adotada por quem adquire a propriedade por meio de título registrado, mas não pode investir-se na posse pela primeira vez, pois o alienante, ou um terceiro (detentor) e ele vinculado, resiste em entregá-la. […]. O novo proprietário invocará o jus possidendi, pois pedirá a posse com fundamento na propriedade que lhe foi transmitida. (FARIAS; ROSENVALD, 2011, p. 181).3
Logo, a partir do momento no qual o arrematante ostenta o domínio, que é o registro na matrícula, estando o imóvel ocupado pelo antigo devedor, temos que a ação de imissão na posse é a medida processual adequada para o fim pretendido, atraindo o teor da Súmula n. 487 do Supremo, privilegiando seu o direito à posse.
Além da Súmula n. 487 do STF, não podemos deixar de mencionar a aplicabilidade da Súmula n. 4 do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, assim admitindo o direito à posse de maneira liminar ao arrematante. Cito também trechos retirados de artigos acadêmicos reforçando o direito à liminar ou à tutela antecipada para o imediato ingresso na posse:
Outro instrumento jurídico bastante utilizado nas ações de imissão na posse é o pedido de Antecipação de Tutela, ou seja, é um ato solicitado pelo novo adquirente no processo que permite ao juiz, por meio de decisão interlocutória, antecipar os efeitos práticos e concretos antes do julgamento de mérito.
Caso o advogado consiga demonstrar dano irreparável ou de difícil reparação ao novo adquirente, o que pode ser facilmente comprovado caso haja a demonstração de com gastos com o condomínio, IPTU, sem usufruir do bem, o juiz poderá antecipar sua decisão e permitir a imissão na posse do imóvel, antes mesmo da sentença, tornando a obtenção da posse mais célere.
O prazo usualmente dado aos moradores irregulares do imóvel para que efetivamente desocupem o imóvel é de 60 (sessenta) dias úteis, conforme art. 30 da Lei nº 9.514/97.” (CARDIM; ALENCAR, 2022, p. 780).4
O mesmo artigo promoveu um estudo na cidade de São Paulo destacando que há uma jurisprudência majoritária e favorável aos arrematantes, legítimos proprietários, assim consagrando definitivamente o direito à posse, vejamos:
Na amostra pesquisada de 132 casos, em apenas um único caso, o morador (devedor fiduciário), conseguiu barrar a imissão na posse e comprovar que a instituição não tinha cumprido os requisitos legais para consolidação de propriedade, revertendo o processo e provando judicialmente que o imóvel ainda o pertencia e o banco não poderia tê-lo vendido. Além disso, considera-se o risco baixo, pois essa garantia está estabelecida no art. 1.107 do Código Civil: “Nos contratos onerosos, pelos quais se transfere o domínio, posse ou uso, será obrigado o alienante a resguardar o adquirente dos riscos da evicção, toda vez que se não tenha excluído expressamente esta responsabilidade” (CARDIM; ALENCAR, 2022, p. 772).5
Portanto, não restam dúvidas de que o proprietário (arrematante do imóvel) tem o direito à imissão na posse, podendo requerer uma liminar para ser imitido imediatamente nela e antes mesmo do trânsito em julgado do processo, sendo a jurisprudência paulista majoritária neste sentido.
Referências
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1. DANTZGER, Afranio Carlos Camargo. Alienação Fiduciária de Bens Imóveis: Lei 9.514/1997 Aplicação prática e suas consequências, 6ª ed. Revista, atualizada e ampliada, São Paulo: JusPODIVM, 2021, p. 152.
2. TJSP; Apelação Cível 1011354-31.2019.8.26.0554; Relator (a): Edson Luiz de Queiróz; Órgão Julgador: 9ª Câmara de Direito Privado; Foro de Santo André – 8ª Vara Cível; Data do Julgamento: 23/09/2022; Data de Registro: 23/09/2022.
3. FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Direitos reais. 7. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 181.
4. CARDIM, Rafael Carlos; ALENCAR, Claudio Tavares de. Análise de riscos de investimentos em imóveis retomados por instituições financeiras: estudos de caso na cidade de São Paulo. Brazilian Journal of Development, v. 8, n. p.766-792 ja 2022.
5. CARDIM, Rafael Carlos; ALENCAR, Claudio Tavares de. Análise de riscos de investimentos em imóveis retomados por instituições financeiras: estudos de caso na cidade de São Paulo. Brazilian Journal of Development, v. 8, n. p.766-792 ja 2022.