,

Dois pilares que sustentam a violência policial

Dois pilares que sustentam a violência policial

violência-policial

Dia desses cometi o erro de abrir o noticiário antes mesmo de tomar meu café. Acabei assistindo a um vídeo de policiais militares que, segundo a notícia, “alvejaram” um morador de rua porque ele estava jogando pedras na viatura.

Eu trocaria a palavra “alvejaram” por assassinaram.

Na minha humilde opinião, o que infelizmente acabei assistindo configura-se como homicídio qualificado por motivo fútil. As pedrinhas que jogava na viatura, causa de sua morte, não pareciam capazes sequer de provocar qualquer dano significativo ao carro, quanto mais risco à vida dos policiais.

Não é todo ilícito que permite uma resposta letal. Em tempos em que a cadela do fascismo late solta, às vezes uma obviedade como essa precisa ser dita.

Uma prisão em flagrante sem necessidade de conversão à preventiva seria mais do que suficiente para o tamanho daquela conduta, perpetrada por um sujeito com sinais aparentes de distúrbios mentais.

É sintoma de uma chacina diluída no dia a dia. É extermínio e genocídio negro. Violência estatal do cotidiano. Colonialismo. Necropolítica ou necropolícia. Termos e conceitos estão aí pra nos ajudar a compreender o contexto macro que se tornou visível nessa cena triste.

Para além do racismo estrutural, o racismo institucional e o racismo pessoal de quem opera no sistema de justiça criminal, a minha contribuição aqui será em apontar os pilares que sustentam a violência policial no âmbito do processo penal.

São dois.

O primeiro pilar é a forma escolhida para exercer o controle da atividade policial. O segundo é o ultrapassado sistema de nulidades processuais, que não vincula resultado com meios empregados.

Vamos ao primeiro.

 

Parte I

Sobre controle da atividade policial, é preciso reconhecer que reside aí talvez o maior erro da nossa Constituição de 1988, que deixou a função para o Ministério Público. Como foi ingênua a ideia de deixar o controle externo na mão de uma instituição que (i) é completamente dependente do trabalho da polícia para poder exercer o seu e (ii) ocupa posição de acusador no campo penal.

A função de fiscal da lei, que faz todo sentido em demais atribuições do MP, não é coerente com os compromissos e interesses naturais à cadeira que ocupa nos processos criminais. Há aí interesse fenomenologicamente determinado.

Disse ingênua, mas o termo preciso é sagaz, pois deixar a polícia sob controle do MP está mais para posição tática em prol da manutenção do controle punitivo e estrutural da pobreza do que resultado de um juízo político bem intencionado de baixa maturidade.

O quadro se agrava com a ampliação dos poderes investigativos – autoconcedidos – ao MP. Poder de polícia ao MP torna-o polícia, indissociável de sua típica forma de pensar e agir.

Eu sei que no campo das individualidades a discussão muda. Sempre há bons e excepcionais exemplos de promotores que exercem com primor a função de controle dos abusos da polícia. São excepcionais também no sentido de exceção. Assim sempre serão. A triste verdade é que servem mais de exceções para fazer valer a regra do que sinais de movimento. Peixe sozinho não muda direção do cardume, em termos gerais de institucionalidade, o corporativismo mais tradicional prevalece.

O controle interno da atividade policial é outro problema inescapável. Aponto com cuidado os problemas do militarismo nas polícias, pois evito generalizações, muitas das quais equivocadas, sobre esse assunto. Porém, em termos de controle interno, o militarismo é grave problema.

Primeiro porque a estrutura organizacional de dupla entrada, fortemente marcada pela hierarquia – que tende a reproduzir as hierarquias sociais –, resvala no ethos militar, que tem por princípios orientadores as chamadas hierarquia e disciplina. O desvio, no militarismo, tem graus distintos e às vezes distorcidos de reprovabilidade. Um soco na boca seguido de queda de dentes entre dois cabos é muito menos grave do que um sargento que manda um capitão ir praquele lugar.

Nas forças armadas, no contexto de guerra, enfim, a hierarquia rígida é mais do que necessária. Quebrar ou questionar uma cadeia de comando pode por fim a vidas e deixar a vitória mais distante. Porém, até hoje, ninguém consegue com muito poder de convencimento justificar tamanha rigidez principiológica para a atividade policial. Esta é marcada na relação poder público e cidadãos, não entre corpos bélicos inimigos.

Ocorre que esse ponto torna a atividade de controle interno da polícia basicamente um instrumento de manutenção da ordem hierárquica interna. Desvios “internos” são fortemente punidos, enquanto desvios “externos” são tratados desde a normalidade, leniência e, quando muito, desvio individualizado (a maçã podre, caso isolado).

E isso resvala para as justiças militares estaduais. Crimes de PMs são julgados por uma junta de oficiais policiais militares, sobre os quais a formação militar prepondera em muito sobre qualquer saber jurídico.

Em síntese, a justiça militar dos Estados e também as corregedorias refletem um acordo velado entre o oficialato/judiciário e os praças que estão na rua, nos seguintes termos: “Na sua atividade de policiamento, faz o que for necessário que a gente dá guarida pra vocês, desde que vocês não questionem a estrutura hierárquica e distribuição de poder da instituição”.

 

Parte II

Vamos agora ao segundo ponto. O sistema de nulidades processuais.

De nada adiantaria um sistema policial com alto grau de autonomia sem um Judiciário conivente e validador. É importante que se entenda e que se fixe na mente: no fim das contas, a violência policial parte, em última instância, do Judiciário. É do Judiciário que vem as demandas pela violência policial e é lá que elas são ultimamente validadas.

Quem atua nas principais cadeiras do sistema de justiça criminal sabe muito bem que policial “aperta”, que policial bate, que policial usa técnicas duvidosamente ilegais em oitivas, em extração de confissão, em acesso a celular, que faz serviço velado sem baliza legal, enfim. No processo criminal, o que chega é o resultado. A prova limpada com sabonete cuja flagrância chama cinismo.

No processo penal brasileiro, não existe a tradição de transparência quanto aos meios empregados para se chegar a determinado resultado. Me refiro a uma preocupação em prol de uma prática democrática de condicionar fins aos meios.

No processo penal, por história e tradição, vigora a epistemologia substancialista, que não vincula fins a meios. Ao contrário, até hoje ainda está em vigor o inquisitivo art. 566: Não será declarada a nulidade de ato processual que não houver influído na apuração da verdade substancial ou na decisão da causa.

Esse artigo – 566 CPP – possui alto valor sintético. O juiz pode até não se lembrar dele a todo momento nas decisões, mas é da mesma racionalidade de fundo que diante de um possível ou mesmo evidente abuso o jogo segue normalmente.

Quando muito, a autoridade judiciária remete para apuração a conduta potencialmente delituosa para as instâncias competentes, o que, como já visto na primeira metade deste ensaio, serve só pra deixar o policial ainda mais à mercê dos superiores.

Uma ironia que não me faz rir é juiz que se vale de formalismo judicial para fazer garantir seu viés substancialista. Me refiro ao juiz que não abandona o mofado princípio da verdade real, mas se nega a avaliar um possível desvio policial sob alegação de ausência de registro nos autos. Talvez o que se espera é o registro meticuloso da prática abusiva em áudio e vídeo, não sei. Só sei que, se não estiver nos autos, presumidamente válido está.

Verdade real pro réu e verdade processual pro Estado. Nessa lógica, não há qualquer motivo para que os policiais passem a cada vez apresentar seus métodos, os meios empregados, a justificativa de como resultados foram alcançados.

O debate sobre porque o condicionamento da prova a formalismos garante resultados mais seguros e eficazes quanto ao que aconteceu no mundo fático, vou ter que deixar pra depois.

Conclusão

Mandar policial à forca porque ultrapassou um limite legal é o que menos faz diferença na contenção da violência policial.

A contenção da violência policial virá, em primeiro lugar, de quem demanda dela: MP e Judiciário. Aqui, dependeremos da coragem de profissionais que cobrem de policiais a apresentação dos meios empregados em relação aos resultados alcançados.

Controle externo não deveria ser só sobre aquelas condutas desviantes. Estas são, em geral, os sintomas de uma doença institucional mais profunda. Controle externo deveria ser compreendido como um problema também de cultura institucional e valores democráticos. Se o fascismo cresceu como erva daninha no seio das polícias, como não ser responsável direto aquele que tem sobre elas o poder de controle e a posição de fiscal?

Compartilhe nas Redes Sociais
Anúncio
Últimas Colunas
Anúncio
Espaço Acadêmico
Anúncio
Anúncio