Certa feita, ao visitar a casa de um casal de amigos, percebi o ruído bem característico de um drone. Olhei para o pedaço de céu que meus olhos alcançavam e não encontrei nada. Mas meu amigo logo me confirmou se tratar de um drone, provavelmente o mesmo que seu vizinho já havia feito questão de lhe mostrar em outras oportunidades. Em seguida, ele me relatou o incômodo que sentia com o fato de seu vizinho sobrevoar sua casa com aqueles olhos digitais aéreos, e que inclusive já havia pedido diretamente ao dono do brinquedo para não repetir a atitude.
O debate estadunidense sobre violação de privacidade é bem complexo, mas, dentre outros elementos, forte é a presença de um ingrediente fundamental, demonstrado comumente na forma de uma pergunta: Tal prática fere a expectativa pessoal de privacidade? Quando a resposta é positiva, necessária se faz a autorização judicial, uma vez que há violação direta a um direito constitucionalmente protegido.
O incômodo do meu amigo com o drone do vizinho revela essa expectativa de privacidade. Mas o que isso tem a ver com polícia? Uma coisa é o particular e outra é a polícia, pode-se argumentar. Sim, é verdade. O poder que detém o Estado é muito superior, e, do ponto de vista individual e familiar, é o Estado que representa o maior potencial de interferência e de dano. Daí a necessidade ainda maior de proteção jurídica. Sobre isso, é claro, os ideólogos do autoritarismo podem discordar, mas o direito há de regular, mitigar e controlar o poder, antes de garantir-lhe o arbítrio.
Nos EUA, essa discussão já foi muito bem iniciada no famoso Florida v. Riley (1989). O caso é o seguinte. A polícia do Estado da Flórida recebeu uma denúncia de que Riley estava plantando maconha em sua propriedade. Incapaz de ver, do solo, a estufa onde estava a plantação de maconha, um policial percorreu o espaço aéreo da propriedade por meio de helicóptero, podendo assim visualizar a plantação a uma altura de aproximadamente 120 metros. Diante da confirmação da suspeita, um mandado judicial foi obtido e Riley foi preso. Ele então questionou na Justiça a legalidade da medida, alegando violação da privacidade.
A Corte estadual na Florida deu razão à defesa de Riley, no sentido de que havia uma razoável expectativa de privacidade. No entanto, a questão foi reapreciada na Corte Suprema Americana. A discussão foi intensa, e foi tratada a partir da seguinte pergunta: A observação de uma propriedade a olho nu, feita a uma altitude de 400 pés (120m), necessita de autorização judicial, nos termos na Quarta Emenda da Constituição? Depois de intenso debate, por 5 votos a 4, a decisão estadual foi reformada. Em conclusão, a Suprema Corte entendeu que não era razoável Riley ter expectativa de privacidade naquela situação, uma vez que sua estufa poderia ser vista a olho nu do espaço aéreo.
Dois principais argumentos embasaram a decisão vencedora. O primeiro é de que qualquer pessoa poderia legalmente sobrevoar o espaço aéreo àquela altitude. Assim sendo, qualquer pessoa poderia ver a estufa de Riley sem que houvesse invasão de propriedade. O segundo argumento foi o de que a intervenção policial não interferiu na normalidade do uso da propriedade, não causando desconforto, ruídos sonoros ou riscos de dano.
Em caso um pouco mais recente, Kyllo v. US (2001), avançamos na discussão, embora ainda não versando sobre o drone. Aqui, Kyllo estava sendo investigado sob a suspeita de estar com uma plantação de maconha no interior de sua residência. Para obter a informação, a polícia utilizou-se de um dispositivo de medição de temperatura que, através da radiação térmica emitida pelo interior da residência. O aparelho detectou a radiação térmica na temperatura necessária para a plantação de maconha, o que deu azo ao mandado judicial para entrada na residência de Kyllo, com apreensão da droga e sua prisão. A questão, portanto, levantada pelo caso foi: O uso de aparelho de medição térmica do interior de uma residência privada constitui busca que viola a Quarta Emenda, impondo a necessidade de um mandado?
A Corte Suprema dos Estados Unidos deu ganho de causa a Kyllo, reformando a decisão de condenação das instâncias inferiores. Contudo, a decisão foi tão apertada quanto no caso de Riley, com 5 juízes favoráveis a Kyllo e 4 para a acusação. O argumento vencedor foi de que o uso do aparelho naquelas condições constituía sim uma busca domiciliar, mesmo não havendo entrada física, de modo que o mandado se tornava necessário. No mesmo sentido, a Corte questionou o uso do aparelho pelo público em geral. Um trecho da decisão do juiz Scalia, que foi seguido pela maioria, mostra bem o problema da questão.
“Não seria muito inteligente afirmar que o grau de intimidade protegida aos cidadãos, segunda a IV Emenda, tem sido completamente infectado pelo avanço da tecnologia. Por exemplo, a tecnologia permite voos humanos que expõe à vista pública (e aí, como já temos afirmado, à observação oficial) de partes não cobertas de uma casa e de um prédio que outrora foram privadas. A pergunta que enfrentamos hoje é que limites existem sobre esta possibilidade, possível graças à tecnologia, de reduzir o âmbito da garantia da intimidade” (Scalia in ISRAEL, 2012, p. 195).1
Trouxe os dois casos acima não para importar acriticamente a racionalidade jurídica dos EUA. Porém, há muita força na maneira como o debate é proposto e trabalhado. Aqui, sem dúvida, iremos trilhar caminhos diversos, naquilo que nossa lógica jurídica e legislação permitem, mas não devemos permitir que a tática da simplificação saia vencedora.
A saída mais simples é o de que, sendo o tráfico de drogas um crime de natureza permanente, há dispensa pela própria Constituição de um mandado judicial para a invasão de domicílio.
Vale notar, ainda, é que nos dois casos acima a entrada em domicílio foi realizada já com o mandado judicial. A discussão, portanto, não era da legitimidade da entrada em domicílio sem autorização judicial, mas da etapa anterior, da própria medida ou técnica investigativa (ou de levantamento de informações) que garantia o fundamento do requerimento de invasão.
De fato, o art. 5º da CF/88, em seu inciso XI, apresenta exceção para inviolabilidade domiciliar na hipótese de flagrante. Entretanto, a validação automática de toda e qualquer entrada de domicílio com resultado flagrante é a base de distorções lógicas e jurídicas de considerável magnitude. Isso porque, em síntese, no Estado democrático de direito, o que valida uma decisão não é seu resultado ou seus efeitos, mas seus fundamentos. Assim, a tomada de decisão, seja judicial ou policial, deve estar amparada por fundamentos jurídico-racionais, e não na base da sorte ou da mera intuição.
Para quem recorre a essa tática de simplificação, ignorando propositalmente toda a complexidade do fenômeno das novas tecnologias na vida privada, o debate sequer chega na possibilidade ou não do uso do drone em investidas policiais em sobrevoo de residências sem mandado. Nesse caso, no Judiciário chegará apenas o flagrante lavrado, feito após a entrada em domicílio, por sua vez feita após a entrada tecnológica via drone (e isso quando o uso do drone for declarado formalmente pelos policiais nos autos).
Nos Estados Unidos, o debate gira em torno de questões como: A medida policial violou a expectativa de privacidade da pessoa? O que foi percebido por meio da medida também era perceptível a transeuntes comuns? A medida policial interferiu ou não no uso regular da propriedade? A quem compete a prova nos processos dessas questões, à defesa ou à acusação?
No Brasil, não creio que as questões devam ser formuladas dessa maneira. Mas como já me estendi o suficiente para um post só, vou me permitir continuar no texto seguinte desta coluna.
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Referências
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1. Retirado de: ISRAEL, Jerold H.; KAMISAR, Yale; LAFAVE, Wayne R.; KING, Nancy J. Proceso Penal y Constituición de los Estados Unidos de Norteamérica: Casos destacados Del Tribunal Supremo y Texto Introdutorio. Tirant lo branch, Valencia, 2012. 1413 p.