Este é o segundo texto em que trabalho a questão do drone como recurso policial para sobrevoo em residências no curso de apurações de infrações penais. Vou tentar manter independência relativa entre este e o anterior. Mesmo assim, deixo a referência ao primeiro, a valer-se como uma introdução e, acima de tudo, como o levantamento de elementos balizares e hermenêuticos que acho essenciais para o debate.
A utilização do drone pela polícia na apuração de infrações penais, sem dúvidas, se estabelece no contexto do direito à inviolabilidade domiciliar, preceituado como direito fundamental na nossa Constituição. Além disso, é também um problema que se insere em um dilema pouco acentuado na discussão processual, inclusive naquela mais sofisticada, sobre mero levantamento de informações e efetiva investigação.
O mero levantamento de informações pode ser colocado no poder geral de polícia, inclusive da PM, responsável pelo policiamento ostensivo e preventivo. A investigação, por outro lado, em regra é regulada sob o rito do inquérito policial, sob comando de uma pessoa na função de delegada de polícia, condição mais restrita às polícias civis, com o poder de polícia judiciária e investigativa. No caso de um inquérito formalizado, o delegado de polícia ainda tem poderes especiais de requisição, além de uma articulação muito mais preparada e positivada para comunicação junto ao judiciário. Isso é mais sensível ainda no caso de diligências que alcançam a reserva de jurisdição, isto é, quando envolve direito fundamental que somente uma autoridade judicial pode flexibilizar, dentro dos limites legais e constitucionais.
É claro que essas duas atividades/atribuições têm se confundido cada vez mais, sendo marcada pela sobreposição especialmente da polícia militar sobre a polícia civil. A PM avança sem, contudo, se valer das formalidades e rigor característicos de um inquérito policial. Quando se fala na inteligência da PM, então, o assunto escala ainda para outro terreno, informal, oculto e arbitrário, sobre o qual pouco controle judicial é feito.
Antes de vir fazer uma defesa teórica ou um repúdio à validade jurídica de investigações tocadas pelo polícia ostensiva/preventiva, compete-nos voltar à realidade. Afinal, isso já ocorre bastante e provavelmente será a regra do futuro, com as mais diversas polícias com poderes de investigar, até eventualmente conduzir inquéritos. O movimento já é visto com a PM lavrando termos circunstanciais de ocorrência, os TCOs.
Diante dessa realidade que se apresenta, a melhor resposta talvez seja, então, exigir da atividade investigativa, de onde vier, transparência, controle judicial e o respeito às garantias fundamentais das pessoas e comunidades envolvidas. Do contrário, seria aceitar e atribuir o poder de se conduzir investigações criminais sem qualquer mecanismo de controle, caminho fértil para um estado de polícia, marcado pela permissividade com o abuso e com o arbítrio.
Daí que é preciso pontuar as possíveis utilizações do drone:
(a) drone como mero auxílio para operações policiais em andamento, por exemplo, para se evitar fuga de investigados ou “avistar” locais de difícil acesso;
(b) como instrumento de investigação sobre local e pessoa determinados, para confirmação de uma suspeita ou para levantamento de prova visual, por exemplo; ou
(c) como instrumento de investigação geral, ou como mecanismo de ampliação do poder preventivo de polícia, em extensão aos olhos de policiais, e também como meio de caça aberta e indeterminada de infrações penais.
O drone como arma de guerra, ou instrumento de abate, vale um debate a parte, até porque não acredito que será o uso corriqueiro no contexto de segurança pública interna.
No primeiro caso (a), o drone como auxílio de operações, normalmente organizadas e conduzidas pelas polícias judiciárias, é um recurso mais do que bem vindo. Uma operação de uma grande apreensão de droga em rodovia, ou ainda no cumprimento de uma busca domiciliar com mandado de prisão, pode muito bem se valer do drone como mais um recurso policial para se garantir o sucesso da operação. Nesse contexto, a priori, não há que se falar em ilegalidade do uso do drone.
A segunda possibilidade (b) merece uma atenção especial. Aqui, me refiro mais especificamente ao drone como olhos voadores da polícia sobre residências determinadas, nas quais há pessoas identificadas como suspeitas de estarem praticando ilícitos penais.
George Orwell, no clássico livro 1984 (desculpe-me se estiver cansado dessa referência), antes mesmo da popularização das televisões, havia pressentido a possibilidade de olhos digitais no interior das residências, as teletelas. Seriam verdadeiros olhos digitais do Estado no interior de cada residência. A realidade copia a ficção, mas não sem alguma mudança pontual. É o caso. Não caminhamos (ainda) para as teletelas do Grande Irmão, mas temos os drones, que permitem a entrada em domicílio sem a necessidade da presença física de agentes do Estado.
O alto potencial de vigilância dos drones nos permite acender as luzes da preocupação, e acionar os dispositivos legais capazes de controlá-lo, regulá-lo e, por que não, mitigá-lo.
Não vejo qualquer argumento razoável na tese de que um drone sobrevoando uma casa determinada na busca de provas ou para confirmação de infrações penais não configure efetiva invasão de domicílio. Sendo assim, a utilização de drone nesse caso há de ser colocada no domínio próprio do direito fundamental à vida privada e à intimidade e, mais especificamente, no direito à inviolabilidade domiciliar.
O problema é que estamos vivendo um momento de incerteza e de insegurança jurídica no assunto da possibilidade de invasão de domicílio sem autorização judicial. Para não me alongar demais, referencio sinteticamente o que identifico como três posições.
A primeira é a que chamo de validação a posteriori: é a posição do vale tudo. Se entrou na casa e achou o ilícito, validada está a incursão. O que valida a entrada é seu resultado. O que é diferente da segunda posição. Aqui, a validade da incursão policial em residência não decorre de seu resultado, mas dos fundamentos justificadores da invasão. É a posição da justificação a posteriori. Volta-se menos para o resultado e mais para as motivações dos agentes policiais quanto decidiram entrar no domicílio. É o posicionamento expressado pelo STF (RE 603616) em 2015, seguido, inclusive, pela 5ª turma do STJ.
A terceira posição, mais recente e encabeçada no campo judicial pela 6ª turma do STJ, ainda insuficientemente delineada, é a cobrança do critério da urgência, o que pareia a excepcionalidade da entrada em domicílio sem necessidade de autorização com a hipótese de socorro ou desastre. Ou seja, a invasão policial em domicílio é válida somente quando nos fundamentos da decisão policial esteja bem configurada a urgência da medida, sem a qual haveria tempo hábil de se requerer a autorização judicial. A tese pode ser exposta assim: a possibilidade de se esperar uma autorização judicial para a quebra da inviolabilidade domiciliar sem risco de lesão a bem jurídico enseja o dever de se requerê-la perante o juízo competente.
Essa terceira posição, antes de mitigar o poder da polícia, tem o papel de profissionalizá-la. Exigir melhores fundamentos e maior controle judicial às ações da polícia é sem dúvida o caminho para uma polícia mais técnica, rigorosa e atenta aos direitos fundamentais, e, no caso, não só dos suspeitos, mas de seus familiares e vizinhos. “Ah, e a preocupação com a vítima, como fica?”. Vale relembrar aqui que falar em uso de drone pela polícia é se referir quase que exclusivamente a crimes de drogas, sem vítimas certas e determinadas. E, havendo vítima direta com necessidade de intervenção imediata, presente está o critério da urgência, dispensando a necessidade de autorização judicial.
Dentro da corrente intermediária, de justificação a posteriori, está quem faça referência à necessidade de certeza sensorial do ilícito no interior da residência para justificar a invasão sem mandado. O cheiro (de droga) e a visualização do crime, por exemplo, seriam elementos validadores. No entanto, entendendo ser posição problemática por três motivos: O primeiro é justamente no caso em que há vítima na ocorrência, mas a situação não permite a percepção sensorial. O segundo motivo é a facilidade que agentes têm de simplesmente fazerem menção a esses critérios, sem que seja possível, contudo, provar o alegado. Por fim, a necessidade de percepção sensorial do crime configurará verdadeiro incentivo à utilização ainda mais indiscriminada de instrumentos como o drone, que justamente seria o meio de se alcançar a certeza visual.
Por fim, cabe ainda a menção à terceira possibilidade de utilização do drone aqui levantada: de instrumento de caça, de pesca probatória, sem alvo ou objetivo determinado. Esse tipo de utilização de drone deve ser absolutamente rechaçado. Há excelente doutrina a respeito da pesca probatória e sobre os perigos de investidas policiais com objetivos genéricos e para coleta de informações indiscriminadas que valem especial atenção. Nesse tipo de uso, abre-se o caminho para um drone na sua função mais perversa, de vigilância indiscriminada e, como se sabe bem, focada e direcionada a populações periféricas, regiões e pessoas que conhecem quase que unicamente o lado mais severo do Estado.
A conclusão não é difícil. O drone é uma inovação tecnológica que tem suas funções ainda por serem bem compreendidas. A questão de fundo é a quem caberá o papel de delimitar essas funções. E no direito processual penal, especificamente, o drone há de ficar na antessala do inquérito e do processo, ou será integrado ao rigor e à lógica do devido processo penal?
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