É sério que o agressor cogitou cobrar aluguel da vítima?

É sério que o agressor cogitou cobrar aluguel da vítima?

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O Brasil é um país marcado por um preocupante índice de violência no âmbito doméstico, as estatísticas são alarmantes e demonstram que vivemos uma situação que necessita ser repensada.

Segundo estudos realizados pela “Fundação Perseu Abramo e pelo Serviço Social do Comércio (Sesc), cinco mulheres são espancadas a cada dois minutos no país. Além disso, durante suas vidas, uma em cada cinco mulheres reportaram já ter sofrido algum tipo de violência cometida por algum homem, conhecido ou desconhecido. Nesse sentido, o parceiro (marido ou namorado) é responsável por mais de 80% dos casos reportados (Venturi e Godinho, 2013)”. (SOARES; TEIXEIRA, 2022, p. 264).1

Além da situação aterrorizante em que a mulher é submetida, infelizmente o Poder Judiciário teve que lidar com a audácia de alguns companheiros que, na qualidade de coproprietários do imóvel no qual a vítima está residindo (muitas vezes com filhos), distribuem ações para pleitear o recebimento de aluguéis, um absurdo completo.

Ninguém nega que, em situações normais e não criminosas, o coproprietário que não está utilizando o imóvel tem direito aos aluguéis (STJ, REsp 1.888.863, DJe: 20/05/2022), porém, no caso em comento, é um absurdo defender o pagamento de aluguéis pela vítima de violência no âmbito doméstico ao agressor.

O direito de propriedade há anos já não é mais absoluto, ele deve ser exercido em consonância com a função social (Art. 5º, XXIII da CF/88) e resguardar a dignidade humana, nesse sentido cito a doutrina jurídica:

Diferentemente da concepção individualista, que privilegiava o interesse do titular da propriedade, a tutela da propriedade, sob a perspectiva social, extrapola os limites do direito individual e passa a tutelar também o interesse social, na medida em que se reconheça que “o exercício dos poderes do proprietário não deveria ser protegido tão-somente para satisfação do seu interesse.” (CHALHUB, 2003, p. 307).2

 

Há, portanto, necessidade de compatibilização entre os preceitos constitucionais, o que significa dizer, em última instância, que a propriedade não mais pode ser considerada em seu caráter puramente individualista. A essa conclusão se chega tanto mais pela constatação de que a ordem econômica, na qual se insere expressamente a propriedade, tem como finalidade “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” (caput do art. 170). (TAVARES, 2012, p. 703).3

Evidentemente que a Ordem Constitucional vigente jamais irá dar privilégio ao direito econômico consubstanciado em receber os aluguéis em detrimento da proteção da família e da companheira vítima de violência doméstica.

Não precisa ser um exímio constitucionalista para compreender que a nossa Carta Magna preserva a dignidade da mulher enquanto pessoa humana, inclusive listando-a como um dos fundamentos da República (art. 1º, III, da CF/1988).

A mesma Constituição destaca como um dos objetivos do Brasil a promoção do bem de todos, sem preconceito de sexo e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, V, da CF). Pergunta-se: Estamos promovendo o bem daquela vítima ao condicionar a sua moradia e proteção ao pagamento de aluguéis ao sujeito que a agrediu? Lógico que não! É um absurdo completo defender tal obrigação.

E vamos além, quando nos afastamos do Direito Constitucional e focamos os nossos estudos no Direito Civil, percebemos que “o Direito Civil, tradicionalmente alicerçado na propriedade privada e no contrato, passou por verdadeira revolução e diversos de seus institutos foram remodelados para se adequar à ótica da proteção da pessoa” (BARRETO, 2022, p. 68).4

Portanto obsoleto, arcaico e antijurídico é defender o direito aos aluguéis (ligado ao direito de propriedade) em detrimento da proteção da pessoa humana, tal defesa contraria o Direito Civil, o Direito Constitucional e demais Normas vigentes no Brasil.

Sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça foi convidado a se manifestar, pois um agressor teve a audácia de querer cobrar aluguéis de sua vítima, o STJ, em bom tom, destacou a inviabilidade e a improcedência dessa monstruosidade jurídica:

(…) 3. Contudo, impor à vítima de violência doméstica e familiar obrigação pecuniária consistente em locativo pelo uso exclusivo e integral do bem comum, na dicção do art. 1.319 do CC/2002, constituiria proteção insuficiente aos direitos constitucionais da dignidade humana e da igualdade, além de ir contra um dos objetivos fundamentais do Estado brasileiro de promoção do bem de todos sem preconceito de sexo, sobretudo porque serviria de desestímulo a que a mulher buscasse o amparo do Estado para rechaçar a violência contra ela praticada, como assegura a Constituição Federal em seu art. 226, § 8º, a revelar a desproporcionalidade da pretensão indenizatória em tal caso. (…) 5. Outrossim, a imposição judicial de uma medida protetiva de urgência – que procure cessar a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher e implique o afastamento do agressor do seu lar – constitui motivo legítimo a que se limite o domínio deste sobre o imóvel utilizado como moradia conjuntamente com a vítima, não se evidenciando, assim, eventual enriquecimento sem causa, que legitimasse o arbitramento de aluguel como forma de indenização pela privação do direito de propriedade do agressor. 6. Portanto, afigura-se descabido o arbitramento de aluguel, com base no disposto no art. 1.319 do CC/2002, em desfavor da coproprietária vítima de violência doméstica, que, em razão de medida protetiva de urgência decretada judicialmente, detém o uso e gozo exclusivo do imóvel de cotitularidade do agressor, seja pela desproporcionalidade constatada em cotejo com o art. 226, § 8º, da CF/1988, seja pela ausência de enriquecimento sem causa (art. 884 do CC/2002). (STJ, REsp n. 1.966.556/SP, DJe de 17/2/2022).5

Sem maiores delongas, é completamente incabível a fixação de aluguéis em favor do agressor que teve que se retirar do lar em função do crime de violência doméstica que cometeu em desfavor de sua companheira e/ou filhos.

E que fique claro um ponto: As conclusões ora apresentadas não se limitam à violência física, como sabemos, a Lei Maria da Penha traz um rol exemplificativo (não taxativo) que inclui a violência psicológica, moral, financeira, sexual e outras mais, cito a doutrina:

O estudo do dispositivo demonstra que o legislador apontou, exemplificativamente, cinco tipos de violência contra a mulher no artigo 7º da Lei 11.340/06: i) física; ii) psicológica; iii) sexual; iv) patrimonial; e v) moral. (SILVA, 2022, p. 492).6

Logo, independentemente do tipo de violência praticada pelo agressor, não há sustentação jurídica mínima para a tese ora rechaçada, evidentemente que o direito de propriedade pode e deve ser restringido para o fim de proteger a vítima de violência doméstica e garantir a segurança dos filhos do casal.

Por isso encerro o presente escrito repudiando qualquer tipo de defesa no sentido de que o agressor possui direito ao recebimento de aluguéis mensais da vítima, o fato dele estar ausente do imóvel se justifica na proteção da mulher e dos seus filhos, não sendo condizente com a Ordem Constitucional vigente garantir o aspecto financeiro e patrimonial (aluguel) enquanto deixa a vítima de um crime horrendo desamparada.

 

Referências

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1. SOARES, Laís de Sousa Abreu; TEIXEIRA, Evandro Camargos. Dependência econômica e violência doméstica conjugal no Brasil. Revista Planejamento e políticas públicas – PPP, n. 61, jan.-mar. 2022.

2. CHALHUB, Melhim Namen. Função Social da Propriedade. Revista da EMERJ, v. 6, n. 24, 2003.

3. TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional, 10ª ed. rev. atual, – São Paulo: Saraiva, 2012.

4. BARRETO, Rafael. Direitos Humanos, 11ª ed. rev. atual, São Paulo: Editora JusPODIVM, 2022.

5. STJ, REsp n. 1.966.556/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 8/2/2022, DJe de 17/2/2022.

6. SILVA, Márcio Alberto Gomes. Leis Penais e Processuais Comentadas: 21 Leis Mais Cobradas em Concursos Públicos para Carreiras Policiais, São Paulo: Editora JusPODIVM, 2022.

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