Embargos Históricos: Metodologia e História do Direito

Embargos Históricos: Metodologia e História do Direito

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“A gente escreve o que ouve, nunca o que houve”
(ANDRADE, Oswald de).

 

É comum que alunos da graduação em direito insiram um “capítulo histórico” em suas respectivas monografias e trabalhos de conclusão de curso, no qual tentam identificar influências estrangeiras oriundas do Norte Global ou traçar uma suposta “evolução” do instituto estudado desde o Direito Romano até os dias atuais. Usualmente, as fontes utilizadas são livros de doutrina jurídica. A própria utilização do vocábulo “evolução” traz em si uma carga de juízo de valor sobre as versões anteriores de um dado instituto. Mas a mera passagem de tempo não importa necessariamente em melhorias (ou prejuízos). Sem adentrar uma discussão de Filosofia da História, é possível afirmar de antemão que escrever sobre a historicidade do fenômeno jurídico exige reflexão. Mas este não é o nosso foco aqui: precisamos falar sobre o método!1

Pietro Costa escreveu que “o elemento caracterizador da historiografia é justamente uma peculiar e determinante relação com o passado” (COSTA, 2008, p. 22).2 Afirmar que o historiador estuda o passado é certamente uma afirmação confortável e geralmente aceita. Todavia, a situação se torna mais complexa quando adicionamos um elemento dinâmico de temporalidade que envolve o passado, o presente e o futuro. Esse é o caso da “História dos Conceitos” (Begriffsgeschichte) de Reinhart Koselleck e as suas categorias de “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”: “as experiências só podem ser reunidas por meio de uma expectativa retroativa que as amarra e as organiza. De outro lado, a estrutura temporal da expectativa é dependente de experiência. Uma expectativa, que a partir de uma experiência se concretiza, não traz nada de surpresa; mas, quando os acontecimentos não saem como se esperava, tem-se o surgimento de nova experiência (KOSELLECK, 1993, p. 341). Em síntese: a tensão que se estabelece entre experiência e expectativa é o que provoca, de modo cada vez diferente, novas soluções e, com isso, empurra, a partir de si mesma, o tempo histórico (PEDRON, 2019, p. 373)”.3

A menção introdutória a metodologia conceitual koselleckiana sem maiores explicações, serve para chamar a atenção do leitor para um ponto importante: a complexidade do estudo e da escrita da história. Essa complexidade não se resume as primeiras aparências que podem advir das fontes históricas, nem a mera narrativa acrítica daquilo que já aconteceu.

Charles Seignobos já dizia em 1901 que “qualquer fato que já não pode ser observado diretamente, por ter deixado de existir, é histórico” (SEIGNOBOS APUD PROST, 2008, p.65).4

Trabalhando com evidências, o objeto de estudo – inacessível diretamente – será “contaminado” pela subjetividade do historiador ao longo de todo o itinerário da atividade interpretativa: sua linguagem, valores, personalidade e vivências. Ruth Benedict diria que “a cultura é como uma lente através da qual o homem vê o mundo. Homens de culturas diferentes usam lentes diversas e, portanto, têm visões desencontradas das coisas” (BENEDICT, 1982).5 Assim como o antropólogo não consegue se desvencilhar da própria cultura ao estudar as outras, o historiador é incapaz de se retirar do tempo presente para “mergulhar no passado”, despido das condicionantes inatas a época na qual o mesmo vive, pesquisa e escreve.

Diferentemente das ciências naturais, os acontecimentos não podem ser repetidos em experiências controladas de laboratório. Por essa razão, “a questão do método é particularmente importante nas disciplinas históricas” (STOLLEIS, 2020, p. 7),6 o que inclui a História do Direito.

Se o conhecimento histórico é invariavelmente intermediado pela linguagem devido à ausência de acesso imediato ao passado, o historiador do direito deve se inteirar acerca do “giro” ou “virada linguística” (linguistic turn) e suas consequências.

Se o conhecimento histórico é obtido através da interpretação de vestígios, deve ser traçada uma moldura teórica de um modo em que os vestígios possam ser “decifrados” (STOLLEIS, 2020, p. 48). “Pressupõe-se que um objeto real, a ruína de um castelo, a descoberta de uma sepultura ou uns documentos poderiam intermediar “excepcionalmente” o acesso direto à verdade histórica. Mas esses objetos são mudos” (STOLLEIS, 2020, p. 50). O historiador, com sua operação hermenêutica (parafraseando Pietro Costa), é quem dá voz aos objetos e documentos do passado.

Não obstante, renunciar a pretensão de “verdade histórica” não significa falsear dados, inventar acontecimentos ou abraçar a ficção. Segundo Paul Ricoeur, “[…] o recurso aos documentos marca uma linha divisória entre história e ficção: diferentemente do romance, as construções do historiador visam ser reconstruções do passado. Através do documento e mediante a prova documentária, o historiador é submetido ao que, um dia, foi. Tem uma dívida para com o passado, uma dívida de reconhecimento para com os mortos, que faz dele um devedor insolvente (RICOEUR, 2010, p. 237).7 Eis o compromisso ético-epistemológico do historiador. O cumprimento desse compromisso, além da “evidencialidade de alegações por fontes verificáveis e a […] relutância crítica no uso de conceitos anacrônicos ou de declarações especulativas contrafactuais” (STOLLEIS, 2020, p. 92), passa necessariamente pela eleição de uma metodologia científica que irá nortear esse trabalho de reconstrução.

O jurista, usualmente formado nas bases da dogmática e do direito positivo, deve necessariamente se atentar a esses pressupostos da historiografia caso queira escrever sobre temas que se encontram na interseção do Direito com a História.

São diversas as possibilidades de “métodos”, “correntes”, “escolas”, “abordagens” ou “molduras teóricas”. Não constitui nosso objetivo indicar qual a metodologia mais adequada, mas podemos enumerar aqui diversas opções que o historiador do direito poderá eleger, como, por exemplo, uma abordagem marxista da história, a Meta-história de Hayden White,8 a história intelectual de Quentin Skinner9  e J.G.A. Pocock10 no contexto do “enfoque collingwoodiano” também chamado de “contextualismo de Cambridge”, a Micro-História de Giovanni Levi e o paradigma indiciário de Carlo Ginzburg,11 ou, quiçá, a História das mentalidades da “Escola dos Annales”, que possui diversos expoentes franceses divididos em diferentes gerações como March Bloch,12 Lucien Febvre,13 Fernand Braudel,14 Jacques LeGoff15 e Michel de Certeau.16

É possível tratar de temas históricos sob o viés da “Teoria Crítica do Direito”, buscando aportes de autores da “Escola de Frankfurt” como Horkheimer, Adorno, Neumann, Kirchheimer e Habermas. Há ainda os “conceitos” de Reinhart Koselleck,17 as “experiências jurídicas” de Paolo Grossi,18 as “categorias jurídicas” de Manuel Hespanha,19 os “sistemas” de Niklas Luhmann,20 bem como a “genealogia” e a “arqueologia” de Michel Foucault.21 Cabe ao autor da pesquisa jushistoriográfica situar seu objeto de estudo e até mesmo refletir sobre as vantagens de um possível ecletismo metodológico coerente que possa se beneficiar de diferentes molduras e instrumentos teóricos para o melhor trato do objeto analisado na pesquisa. Certamente, a bibliografia constante nas notas de rodapé deste artigo é um bom começo!

Para terminar, deixo essa reflexão de Cristiano Paixão e Renato Bigliazzi:

“A história, antes de tudo, é uma experiência presente que se projeta no futuro. Ainda que ela seja tradicionalmente referida como o “estudo do passado”, a percepção da história envolve, sempre, um olhar prospectivo. Quando se deparam duas concepções distintas do campo histórico, materializa-se uma diferença de visão de mundo. Por isso, quando se faz história, não é o passado que é recuperado: é um futuro que é construído” (PAIXÃO, BIGLIAZZI, 2011, p. 11).22

 

Referências

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1. A inspiração para o título deste texto veio da excelente coluna “Embargos Culturais”, escrita e publicada regularmente na Revista Consultor Jurídico pelo Professor Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy há mais de dez anos.

2. COSTA, Pietro. Passado: dilemas e instrumentos da historiografia. Revista da Faculdade de Direito UFPR, v. 47, p. 21-28, 2008. Disponível em: link. Acesso em: 20 dez. 2023.

COSTA, Pietro. Soberania, representação, democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico. Curitiba: Juruá, 2010.

3. PEDRON, Flávio Quinaud. A proposta de Koselleck de história dos conceitos e a reconstrução da história do direito. Revista Jurídica da Presidência, Brasília, v. 21, n. 124, Jun./Set. 2019, p. 361-385. Disponível em: link. Acesso em: 20 dez. 2023.

4. PROST, Antoine. Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

5. BENEDICT, Ruth. O crisântemo e a espada. São Paulo: Perspectiva, 1972.

6. STOLLEIS, Michael. Escrever história do direito: reconstrução, narrativa ou ficção? Trad. Gustavo César Machado Cabral. São Paulo: Editora Contracorrente, 2020.

7. RICOEUR. Paul. Tempo e narrativa – vol. 1: A intriga e a narrativa histórica. São Paulo: Wmf Martins Fontes, 2010.

RICOEUR. Paul. A memória, a história, o esquecimento. Trad. Alain François. Campinas: Editora Unicamp, 2008.

8. WHITE, Hayden. Meta-História: A Imaginação Histórica do Século XIX. Tradução de José Laurênio de Melo. 2ª ed. São Paulo: EdUSP, 2019.

WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. Trad. Alípio Correia de Franca Neto. 2ª ed. São Paulo: EdUSP, 2001.

9. SKINNER, Quentin. Visions of  Politics. Londres: Cambridge University Press, 2001.

10. POCOCK, John Greville Agard. Politics, language, and time; essays on political thought and history. Nova York: Atheneum, 1971.

POCOCK, John Greville Agard. The concept of a language and the métier d’historien: someconsiderations on practice. In: PAGDEN, A. (ed.) The languages of political theory in early-modern Europe. Nova York: Cambridge University Press, 1987,  p. 19-38.

11. GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Trad. Federico Carotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. Trad. Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

12. BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício do historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

13. FEBVRE, Lucien. Combates pela história. 3. Ed. Lisboa: Editorial Presença, 1989.

14. BRAUDEL, Fernand. História e ciências sociais. A longa duração. In: NOVAIS, Fernando; SILVA, Rogério F. da (orgs.). Nova história em perspectiva. Vol. 1. São Paulo: Cosac Naify, 2011.

15. LE GOFF, Jacques. História e Memória. Trad. Bernardo Leitão. Campinas: Editora da Unicamp, 1990.

16. CERTEAU, Michel de. A Escrita da história. Trad. Maria de Lourdes Menezes; Rev. Téc. Arno Vogel. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.

17. KOSELLECK, Reinhart. Estratos do tempo. Estudos sobre história. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014.

KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Trad. Wilma Patrícia Maas; Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.

KOSELLECK, Reinhart. Histórias de Conceitos: estudos sobre a semântica e a pragmática da linguagem política e social. Trad. Markus Hediger. Rio de Janeiro: Contraponto, 2020.

18. GROSSI, Paolo. História do direito como história de experiências jurídicas. In: A ordem jurídica medieval. Trad. Denise Rossato Agostinetti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2014. p. 27-34.

GROSSI, Paolo. O direito entre poder e ordenamento. Trad. Arno Dal Ri Júnior. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.

19. HESPANHA, António Manuel. Categorias. História dos conceitos, história das ideias, história dos dogmas jurídicos. Cadernos do Programa de Pós-Graduação Direito / UFRGS, vol. 13, n. 1, 2018. p. 5-35 Disponível em: link. Acesso em: 20 dez. 2023.

HESPANHA, António Manuel. A Cultura Jurídica Europeia: síntese de um milênio. Coimbra: Almedina, 2012.

20. LUHMANN, Niklas. La costituzione come acquisizione evolutiva. In: ZAGREBELSKY, Gustavo. PORTINARO, Pier Paolo. LUTHER, Jörg. Il Futurodella Costituzione. Torino: Einaudi, 1996.

LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito: volumes I e II. Trad. Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1983.

21. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Trad. Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. 5. Ed. São Paulo: Edições Loyola, 1999.

22. PAIXÃO, Cristiano; BIGLIAZZI, Renato. História constitucional inglesa e norte-americana: do surgimento à estabilização da forma constitucional. Brasília: Editora Universidade de Brasília/Finatec, 2011.

 

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Lucas Hendricus Andrade Van den Boomen é Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pós-graduado em Direito Previdenciário e Prática Previdenciária pela Faculdade Legale. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Advogado, Consultor Previdenciário e Numismata. Membro do Studium Iuris – Grupo de Pesquisa em História da Cultura Jurídica (CNPq/UFMG). Vice-Presidente da Comissão de Direito Constitucional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/MG) – Subseção Contagem. Membro da Comissão de Direito Previdenciário da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/MG) – Subseção Contagem. E-mail: lucas.vandenboomen@hotmail.com.

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