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Entidades familiares, solidão feminina e regime matrimonial do casamento do maior de 70 anos

casamento idoso

Conforme artigo conjunto que escrevemos em março de 2023 com a estimada e admirada professora Fabiana Domingues Cardoso, quando cogitamos em matrimônios de mulheres com mais de setenta anos nos deparamos com a diminuta, senão nula proporção de ocorrência, em absoluto descompasso com os enlaces conjugais dos homens idosos, em faixa etária similar.

Diversas explicações de ordem lógica e cultural se fazem presentes para elucidar tamanha discrepância. A cultura patriarcal, com seus dogmas de visão e tratamento diversos em relação aos gêneros, em detrimento do feminino inclusive, aliada ao melhor enquadramento masculino no mercado de trabalho com acúmulo de capital, tornando os homens mais atraentes na seara amorosa (outorga de segurança, conforto, perspectivas de consumo, lazer, etc), representam uma realidade.

Se por um lado isso é veraz, são justamente os homens aqueles que mais adoecem em decorrência  do exercício laborativo no transcorrer dos anos, padecendo de males cardíacos, resultantes de estresse, do uso descontrolado de álcool e tabagismo, etc. Isso não significa dizer que as mulheres também não estejam experimentando tais infortúnios, especialmente as inseridas no mercado de trabalho. Porém, é fato que a longevidade feminina ainda é mais expressiva do que a masculina, dotadas as mulheres de hábitos mais saudáveis que concorrem para o resultado, tais como rotinas de autocuidados, verbalização de problemas e expressão de sentimentos, busca de auxílio médico, dentre diversas contingências.

Volvemos aqui às ponderações indispensáveis de Anita Liberalesso Neri1  vez que:

..as diferenças entre os sexos que se refletem no emprego, nos salários e nas carreiras profissionais são mais graves entre os idosos. Mais do que os não idosos, eles são vitimados pelo baixo capital social, por baixo poder político, por pouco conhecimento sobre direitos, por moradia em casas e regiões marcadas pela precariedade de recursos sanitários e sociais, pela violência urbana, por problemas inescapáveis que acometem os descendentes, pela doença e pela incapacidade. Apesar de serem mais longevas do que os homens, as mulheres idosas são mais doentes, mais vulneráveis à incapacidade física e cognitiva, mais queixosas, mais afetadas por diminuição no bem-estar subjetivo e mais oneradas por encargos familiares.

E não há contradição alguma. Ao passo que as mulheres vivem mais tempo, consoante estatísticas oficiais, findam de modo inelutável por sofrer em consequência de doenças que acompanham o processo natural do envelhecimento.

A solidão na velhice, especialmente a da mulher, ainda que ostente diversos descendentes, parece ser se não imperiosa, bastante usual na sociedade contemporânea.

Conforme bem menciona a professora, psicóloga e filósofa da universidade de Brasília Valeska Zanello, de modo geral são as mulheres que cuidam das outras mulheres – amigas, prestadoras de serviços, filhas – e não seus companheiros, maridos ou filhos, aqui incidente, uma vez mais, a cultura patriarcal que induz à feminização do dever de cuidado.

Por conseguinte, quando cogitamos em regime de bens de maiores de setenta anos, embora não seja possível a exclusão das mulheres em tal etapa etária, especialmente aquelas que já tenham iniciado convivência familiar anteriormente, há de se salientar a inferior incidência de hipóteses concretas em cotejo com homens com mais de setenta anos que conformam novas entidades familiares.

Com efeito, o artigo 1641 do Código Civil preconizou, com alteração de sua redação nos idos de 2010, que a pessoa com mais de 70 anos que se casar não poderá escolher o regime de bens, a ser forçosamente o da separação obrigatória, traduzindo-se a mens legis na concepção de que o idoso seria pessoa mais frágil e vulnerável e de tal sorte, deveria ser protegida contra eventuais abusos de terceiros, os pretensos nubentes.

Muito se criticou e não sem razão o dispositivo em comento, o qual na feliz definição da professora Fabiana Domingues Cardoso, findou por limitar a autonomia privada implicando em imposição de participação estatal desconfortável e desnecessária no relacionamento conjugal com escopo, em última análise, de proteção da expectativa de direito dos herdeiros no que tange ao patrimônio do idoso.

Com efeito, a regra, atingindo casamentos e uniões estáveis, abalava visceralmente a autonomia privada e a liberdade individual.

Ocorre que o Supremo Tribunal Federal definiu, em 01/02/2024, nos autos do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1309642 com repercussão geral, figurando como Relator o Ministro Luís Roberto Barroso, que a obrigatoriedade da separação de bens impede, apenas em função da idade, que pessoas capazes de praticar atos da vida civil, em pleno gozo de suas faculdades mentais, definam qual o regime de casamento ou união estável que se lhes afigure mais apropriado. Considerou o magistrado que a disposição em comento decorre em discriminação por idade, vedada pela Carta Magna no artigo 3º, inciso IV. Aludida interpretação somente poderá ser outorgada a hipóteses futuras, não albergando sucessões já ultimadas. Todavia, para casamentos ou uniões que precederam ao julgamento pelo STF, os interessados poderão se pronunciar em juízo ou em cartório extrajudicial, com efeitos patrimoniais não retroativos.

Por derradeiro, a tese de repercussão geral fixada pera o Tema 1.236 foi de que: “Nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no artigo 1641, II do Código Civil pode ser afastado por manifestação expressa de vontade das partes mediante escritura pública” 2 .

Por conseguinte, a elogiosa decisão findou por prestigiar o princípio da autonomia privada, sacramentando a indispensabilidade de respeito à liberdade de autodeterminação da pessoa com mais de setenta anos, capaz. A exteriorização de vontade pelos cônjuges ou companheiros deverá ser realizada de maneira idônea, por escritura pública ou via judicial.

Em essência, o que nos parece de incomensurável propriedade é o claro combate ao etarismo, prestigiando-se a autonomia individual de planejamento familiar e patrimonial.

Não é demasiado rememorar dos bancos universitários que uma das primeiras lições que recebemos foi no sentido de restar ausente herança de pessoa viva. Portanto, devem efetivamente ser expurgadas restrições injustificáveis a eleição de regime de bens em entidades familiares, quiçá para em última análise operar-se a proteção de interesses de terceiros. Se a busca da felicidade é um direito e nenhum ser humano está isento dos riscos de soçobrar na tentativa de encontrá-la, inexistem motivos para discriminação dos septuagenários na eleição de regramentos e rumos que deverão imprimir às próprias vidas. Eventuais atos ilícitos de que possam, porventura, ser vítimas, deverão ser combatidos pelos mecanismos jurídicos já presentes em nosso ordenamento.

Referências

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1. Professora Colaboradora no Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria e Docente Permanente do Programa de Pós-Graduação em Gerontologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp no artigo “Bem-Estar Psicológico na Velhice”;

2. www.portal.stf.jus.br, “Separação de bens em casamento de pessoas acima de 70 anos não é obrigatória, decide STF”, consultado em 27/02/2024;

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