Conforme já abordado em texto anterior da coluna (caso não tenha lido, recomendo a leitura da matéria “O impacto das novas tecnologias no mercado de capitais” para melhor compreensão do presente texto), a inteligência artificial é uma tecnologia que silenciosamente penetrou (e penetra) em todas as camadas da sociedade, não ocasionando uma cisão abrupta, como ocorreu com o advento do primeiro servidor on-line que permitiu que civis pudessem utilizar a internet para fins domésticos, o MOSAIC, afetando todas as formas de viver e se relacionar, mas paulatinamente adentrando os setores empresariais, industriais e também civis.
A IA está presente na casa dos usuários, em aplicativos de música, em redes sociais, em aparelhos de telefone e até em dispositivos que conseguem controlar os eletrodomésticos de uma residência.
Não é uma tecnologia tecnocrata e inacessível, mas maleável: a IA pode ser aplicada desde a execução de tarefas domésticas mais simples, até na otimização da atividade empresarial. A IA é uma tecnologia 1 que basicamente simula a capacidade cognitiva humana em aprender, através de treinamento e generalização de situações, para, por fim, atuar de forma não supervisionada em determinada atividade.
A IA garante, no que lhe couber, otimização de resultados, enquanto um homem de mediana prudência consegue analisar x dados em determinado espaço de tempo, ela consegue digerir e aferir mil vezes mais dados (número hipotético, certamente a produtividade da IA é muito maior em relação ao homem), de forma acurada, célere e econômica. Uma IA pode substituir a mão de obra de todo um setor de uma empresa.
Outro fator que justifica a utilização da IA é a confiança, presume-se que por ser mais precisa, suas chances de incorrer em erros é quase nula, além de não possuir o fator corruptibilidade inerente ao ser humano, a IA vai agir dentro do que foi pré-programada.
No âmbito empresarial, a IA é utilizada para otimizar prestação de serviços, para coletar e digerir dados, conhecer melhor o cliente e diminuir os riscos inerentes da própria atividade empresarial. Mas seria possível utilizar, ou melhor, substituir uma pessoa natural no exercício das suas atribuições como administradora de uma sociedade?
A presente matéria restringe seu recorte especificamente às sociedades limitadas, que aprioristicamente são sociedades de pessoas, isso significa dizer que a pessoalidade, as características intrínsecas do sujeito para aquela sociedade são mais relevantes para o exercício de empresa do que o capital, do que o dinheiro ou bens que ela aporta para fins de integralização do capital social.
Nas sociedades de pessoas, a natureza intuitu personae é mais relevante que o capital, ou seja, do que a contribuição do sócio para a formação do capital social. Essa afirmativa se justifica pela sua constituição por contrato, em adição a necessidade de alteração contratual nos casos de: (i) exclusão ou retirada do sócio, (ii) resolução da sociedade nos casos de quebra de affectio societatis e (iii) imposição de aprovação de ao menos ¼ (um quarto) do capital social nos casos de cessão de quotas à pessoa estranha ao quadro social, salvo estipulação contratual que disponha do contrário (TOMAZETTE, 2019, p. 383).
Tamanha a relevância da pessoalidade da figura do sócio na sociedade limitada, que este não pode se fazer substituir no desempenho de suas funções sem a anuência dos demais sócios e alteração do contrato social. 2
A administração da sociedade limitada se concretiza na figura do órgão administrativo, responsável por presentar 3 suas vontades e anseios. A princípio, sua vontade se consubstancia e se torna factível através do ímpeto dos seus administradores, salvo em matérias excepcionadas pelo legislador em que deve prevalecer a vontade dos sócios, a ser apurada em deliberação.
A função do órgão administrativo não é de representar legalmente a pessoa jurídica, posto que não há de se falar em sua representação, considerando que esta não é incapaz. Ainda, não há de se falar no administrador representar a pessoa jurídica através de mandato, 4 porque o órgão de administração é elemento essencial à própria existência da sociedade, e não um simples mandatário cumprindo seus desígnios.
Quando o órgão age, é a pessoa jurídica quem está agindo (TOMAZETTE, 2019, p. 401). Não há subordinação entre administrador e sociedade, como ocorre na relação representante x representado. Ademais, o órgão de administração não é pessoa diversa da pessoa jurídica. 5
O órgão de administração das limitadas é composto por seus administradores, que devem necessariamente ser pessoas naturais, por força dos arts. 997, VI e 1.062, §2º, 6 ambos do Código Civil. Os administradores podem ser nomeados no contrato social ou em ato separado, nesse caso haverá implicações no quórum de aprovação de sua nomeação, bem como para sua destituição. 7
O administrador da sociedade deverá, no exercício de suas funções, ter o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios, 8 consubstanciando o seu dever de agir de forma zelosa e ética no dever de diligência.
Dessa forma, pode-se concluir que a pessoalidade inderrogável à figura do administrador, que deve ser pessoa natural, não permite que os administradores sejam substituídos pela figura da IA.
O artigo 170 da Carta Magna é outro fundamento que endossa e aprofunda ainda mais esse debate, na medida em que institui que a ordem econômica é fundamentada na valorização do trabalho humano, por conseguinte, utilizar a IA como substituto da produtividade e da capacidade laboral humana, na medida em que é aplicada na atividade fim, com certeza acarretaria consequências econômicas.
Na medida em que a tecnologia seria detida por parcela da elite para poder aumentar sua produtividade, a população se depararia com escassez de trabalho, ocasionando em um desequilíbrio econômico, posto que perderia seu poder de compra, gerando um paradoxo: as sociedades empresárias otimizariam e economizariam dinheiro substituindo seus funcionários por máquinas, contudo, seus produtos e serviços não seriam consumidos, em decorrência da perda de poder aquisitivo dos seus consumidores.
Por fim, a própria função social da empresa (enquanto atividade) seria esvaziada. O exercício da atividade econômica organizada para a produção e/ou circulação de produtos ou serviços possui uma função precípua que vai além da mera lucratividade egoística. Ela possui a função geradora de empregos, circulação de riquezas locais, melhoria de qualidade de vida, expansão do mercado interno e geradora de tributos.
Dessa forma, a IA deve ser regulada e utilizada como auxiliador das atividades laborais humanas, sendo uma auxiliar da atividade fim, sendo utilizada nas atividades de meio, mas nunca um substituto da indispensabilidade humana.
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Bernardo Rocha da Motta Pereira
Referências
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1. Não possuo a intenção de aqui definir o que é quais são as tecnologias que são abarcadas pelo guarda-chuva “IA”, considerando que já foi feito em matéria anterior, mas tão somente fazer uma leve revisão dos termos para que o leitor possa compreender de forma fácil o contexto abordado.
2. Cf. art. 1.002 do Código Civil, O sócio não pode ser substituído no exercício das suas funções, sem o consentimento dos demais sócios, expresso em modificação do contrato social.
3. Nas palavras de Hely Lopes Meirelles: “A Teoria do órgão veio substituir as superadas teorias do mandato e da representação, pelas quais se pretendeu explicar como se atribuiriam ao Estado e às demais pessoas jurídicas públicas os atos das pessoas humanas que agissem em seu nome. Pela teoria do mandato considerava-se o agente (pessoa física) como mandatário da pessoa jurídica, mas essa teoria ruiu diante da só indagação de quem outorgaria o mandato. Pela teoria da representação considerava-se o agente como representante da pessoa, à semelhança do tutor e do curador dos incapazes. Mas como se pode conceber que o incapaz outorgue validade a sua própria representação? Diante da imprestabilidade dessas duas concepções doutrinárias, Gierke formulou a Teoria do Órgão, segundo a qual as pessoas jurídicas expressam a sua vontade através de seus próprios órgãos, titularizados por seus agentes (pessoas humanas), na forma de sua organização interna. O órgão – sustentou Gierke – é parte do corpo da entidade e, assim, todas as suas manifestações de vontade são consideradas como da própria entidade.” (MEIRELLES, 1998, p. 67).
4. Cf. art. 653 do Código Civil, Opera-se o mandato quando alguém recebe de outrem poderes para, em seu nome, praticar atos ou administrar interesses. A procuração é o instrumento do mandato.
5. Ainda, para afastar oportunamente a figura do administrador do mandatário, menciona-se que, nos termos do art. 1.011, § 2º, as regras sobre mandato aplicar-se-ão somente de forma supletiva e não diretamente (TOMAZETTE, 2019, p. 362).
6. In verbis, Art. 997. A sociedade constitui-se mediante contrato escrito, particular ou público, que, além de cláusulas estipuladas pelas partes, mencionará: I – nome, nacionalidade, estado civil, profissão e residência dos sócios, se pessoas naturais, e a firma ou a denominação, nacionalidade e sede dos sócios, se jurídicas; e art. 1.062. § 2º Nos dez dias seguintes ao da investidura, deve o administrador requerer seja averbada sua nomeação no registro competente, mencionando o seu nome, nacionalidade, estado civil, residência, com exibição de documento de identidade, o ato e a data da nomeação e o prazo de gestão.
7. Art. 1.061. A designação de administradores não sócios dependerá de aprovação da unanimidade dos sócios, enquanto o capital não estiver integralizado, e de 2/3 (dois terços), no mínimo, após a integralização; Art. 1.071. Dependem da deliberação dos sócios, além de outras matérias indicadas na lei ou no contrato: II – a designação dos administradores, quando feita em ato separado; III – a destituição dos administradores; Art. 1.076. Ressalvado o disposto no art. 1.061, as deliberações dos sócios serão tomadas II – pelos votos correspondentes a mais de metade do capital social, nos casos previstos nos incisos II, III, IV e VIII do art. 1.071;
8. Cf. art. 1.011 do Código Civil, O administrador da sociedade deverá ter, no exercício de suas funções, o cuidado e a diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração de seus próprios negócios.