Falta de regulação de redes sociais, autoextermínio e Fake News: um liame perverso

Falta de regulação de redes sociais, autoextermínio e Fake News: um liame perverso

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No apagar das luzes do ano de 2023, assistimos às tristes notícias de indivíduos que cometeram suicídio como consequência de serem alvo de difamações, da cultura de cancelamento e fake news propagadas em redes sociais. Um dos episódios envolveu a morte de Jéssica Canedo 1 , estudante mineira de 22 anos, a qual chegou a publicar em rede social mensagem refutando a autenticidade de falsos prints de conversa inexistente carreada a ela e ao humorista Whindersson Nunes. A jovem realizou postagem solicitando exclusão dos supostos diálogos, repelindo veementemente, assim como o humorista, qualquer contato entre ambos (em verdade, sequer se conheciam). Mesmo com o pedido externado, as fictícias comunicações foram divulgadas em página aberta em rede social por quase uma semana. Após a consumação do autoextermínio, na atualidade estão sendo apuradas eventuais responsabilidades pelos órgãos públicos, evidentemente sob a observância do direito constitucional de ampla defesa e do princípio do contraditório.

Pois bem. No fatídico episódio tem-se que uma mulher jovem, que residia em cidade do interior, possuía depressão e, segundo sua mãe, não ostentava perfil em rede social  nem mesmo utilizando WhatsApp2 ,  deparou-se com suas fotos e identificação extraídas do perfil de sua genitora em rede social inseridas juntamente com falso diálogo por aplicativo, de modo simulado, publicados em página de acesso amplo em rede social, a qual, ao que se depreende, era destinada à divulgação de “fofocas” envolvendo figuras conhecidas da mídia e mundo artístico. Foi ofendida com frases depreciativas. Pronunciou-se, assim como sua genitora, quanto à inverdade das imputações em vão. Diante do seu comprometido estado emocional, agravado pela avassaladora proporção de frases de ódio das quais teve ciência, viu somente no suicídio a solução para o término de seu padecimento emocional. Aqui urge a detecção de elementos indicativos que convictamente incorreram para majoração do sofrimento psíquico de Jéssica, peculiares à cultura patriarcal: depreciação de suas características físicas, sociais, culturais, econômicas por supostamente “ousar” se relacionar com famoso humorista. Era sim uma inverdade. Mas, em qualquer circunstância, que direito teriam os responsáveis pela postagem e usuários da rede que a acessaram, tornando-se autores das nefastas mensagens, de criticar o aventado affair, desqualificando a jovem Jéssica? Nenhum. A negativa é de ordem retumbante e a própria ocorrência do infortúnio revela a intensidade da violência contra a mulher em nossa sociedade.

No plano teórico, em se confirmando a invasão do perfil da genitora de Jéssica inserto em rede social, do qual terceiro extraíra fotografias e nome da vítima, consoante veiculado pela imprensa, em primeiro plano estar-se-ia perante infração perpetrada por agentes de tratamento a princípios dispostos da LGPD (Lei 13.709/18), quais sejam, boa-fé , finalidade, adequação, segurança, dentre outros, em harmonia com o artigo 6º da LGPD, ainda que considerada a anuência da titular da conta na rede social (genitora de Jessica) quanto aos termos de veiculação de postagens, impostos unilateralmente pela plataforma, em consonância com o artigo 7º , parágrafo quarto da LGPD.

Consoante consignamos, no âmbito da responsabilidade civil pelos danos resultantes do acesso indevido a dados pessoais (danos materiais, morais, com observância do artigo 42 e seguintes da LGPD), além de restarem albergados os agentes de tratamento de dados, por evidência tanto o autor da ilícita invasão ao perfil consolidado na rede social , com ulterior confecção de postagem falaciosa, quanto os responsáveis pela página de acesso público que divulgou a malfadada notícia de irreal relacionamento amoroso entre o famoso humorista e Jessica, irão responder por atos ilícitos próprios (artigos 186 e 187 do Código Civil), equiparando-se ademais, consoante a jurisprudência pátria, o vínculo existente entre usuário e redes sociais a relação de consumo, com incidência das normas insertas no Código de Defesa do Consumidor. No sentido do texto, confira-se a seguinte ementa:

 INTERNET. RELAÇÃO DE CONSUMO. INCIDÊNCIA DO CDC. GRATUIDADE DO SERVIÇO. INDIFERENÇA. PROVEDOR DE CONTEÚDO. FISCALIZAÇÃO PRÉVIA DO TEOR DAS INFORMAÇÕES POSTADAS NO SITE PELOS USUÁRIOS. DESNECESSIDADE. MENSAGEM DE CONTEÚDO OFENSIVO. DANO MORAL. RISCO INERENTE AO NEGÓCIO. INEXISTÊNCIA. CIÊNCIA DA EXISTÊNCIA DE CONTEÚDO ILÍCITO. RETIRADA IMEDIATA DO AR. DEVER. DISPONIBILIZAÇÃO DE MEIOS PARA IDENTIFICAÇÃO DE CADA USUÁRIO. DEVER. REGISTRO DO NÚMERO DE IP. SUFICIÊNCIA. 1. A exploração comercial da internet sujeita as relações de consumo daí advindas à Lei nº 8.078/90. 2. O fato de o serviço prestado pelo provedor de serviço de internet ser gratuito não desvirtua a relação de consumo, pois o termo mediante remuneração, contido no art. 3º, § 2º, do CDC, deve ser interpretado de forma ampla, de modo a incluir o ganho indireto do fornecedor. 3. A fiscalização prévia, pelo provedor de conteúdo, do teor das informações postadas na web por cada usuário não é atividade intrínseca ao serviço prestado, de modo que não se pode reputar defeituoso, nos termos do art. 14 do CDC, o site que não examina e filtra os dados e imagens nele inseridos. 4. O dano moral decorrente de mensagens com conteúdo ofensivo inseridas no site pelo usuário não constitui risco inerente à atividade dos provedores de conteúdo, de modo que não se lhes aplica a responsabilidade objetiva prevista no art. 927, parágrafo único, do CC/02. 5. Ao ser comunicado de que determinado texto ou imagem possui conteúdo ilícito, deve o provedor agir de forma enérgica, retirando o material do ar imediatamente, sob pena de responder solidariamente com o autor direto do dano, em virtude da omissão praticada. 6. Ao oferecer um serviço por meio do qual se possibilita que os usuários externem livremente sua opinião, deve o provedor de conteúdo ter o cuidado de propiciar meios para que se possa identificar cada um desses usuários, coibindo o anonimato e atribuindo a cada manifestação uma autoria certa e determinada. Sob a ótica da diligência média que se espera do provedor, deve este adotar as providências que, conforme as circunstâncias específicas de cada caso, estiverem ao seu alcance para a individualização dos usuários do site, sob pena de responsabilização subjetiva por culpa in omittendo. 7. A iniciativa do provedor de conteúdo de manter em site que hospeda rede social virtual um canal para denúncias é louvável e condiz com a postura esperada na prestação desse tipo de serviço – de manter meios que possibilitem a identificação de cada usuário (e de eventuais abusos por ele praticado) – mas a mera disponibilização da ferramenta não é suficiente. É crucial que haja a efetiva adoção de providências tendentes a apurar e resolver as reclamações formuladas, mantendo o denunciante informado das medidas tomadas, sob pena de se criar apenas uma falsa sensação de segurança e controle. 8. Recurso especial não provido. (grifos nossos)

(STJ – REsp: 1308830 RS 2011/0257434-5, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 08/05/2012, T3 – TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 19/06/2012 RDDP vol. 114 p. 134)

Não obstante as disposições legais supra mencionadas, as quais se encontram em vigor, diante do vultoso e rotineiro acesso às redes sociais como meios de comunicação verificados no plano fático, fomentados pela publicidade direcionada por algoritmos a consumidores consoante suas preferências pessoais, estas previamente rastreadas por cookies bem como monetização de postagens nas redes alcançando, não raras vezes, milhares de pessoas, ressente-se o plano jurídico de regulamentação mais específica das fake news, especialmente no que concerne à divulgação de informações sem lastro mediante  prévia educação e conscientização dos usuários das redes sociais e disponibilização, pelas plataformas digitais, de mecanismos de célere interrupção de divulgação de postagens ofensivas ou dotadas de conteúdo equivocado, bem como de acesso dos usuários atingidos por ilícitos às referidas plataformas, sem maiores delongas.

Aqui, somos instados a nos determos brevemente na questão da regulação das redes sociais no Brasil. A Constituição Federal nos assegura em seu Título II, que trata dos direitos e garantias fundamentais, Artigo 5º. Inciso IV, a livre manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato, ficando claro, portanto, que o texto relaciona o direito de liberdade de se manifestar à responsabilidade de quem se manifesta. A institucionalização da responsabilização das redes sociais pelo compartilhamento de conteúdos falsos e violentos responde a um ordenamento jurídico e a regulação das redes sociais não se identifica como agressão ao direito à liberdade de manifestação. Entendemos ser necessário o diálogo e a ampliação e aprofundamento das discussões, mas, faz-se urgente um posicionamento contra à falta de regulamentação face ao cenário em que atuam seus efeitos. O uso irresponsável das redes sociais  demanda a responsabilização de todos os envolvidos, inclusive as big tech. A liberdade de expressão, firmada no texto constitucional, não acolhe a ofensa à dignidade de alguém.

A propósito da atuação dos serviços digitais, seguindo o parâmetro europeu na disciplina legal da proteção de dados, foi proposto o Projeto de Lei 2.630/20, aprovado no Senado Federal e em trâmite na Câmara dos Deputados, aguardando por deliberação.

Em sua ementa está explicitado que o documento institui a lei brasileira de liberdade, responsabilidade e transparência na internet. O texto do projeto regula a transparência nas redes sociais e serviços de mensagens e reforça a responsabilidades dos provedores pelo combate à desinformação. Também estabelece sanções ao descumprimento da lei. A proposta pode representar uma conquista inicial contra a violência em conteúdos que nutrem ódio, preconceito, ameaças.

Neste cenário, é preciso atentar para o PL2 628/22, que garante a proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais. Este projeto se detém na questão da omissão nas situações que podem ser tipificadas como crime de induzimento, instigação ou auxílio ao suicídio.

Destaca-se, no entanto, a Lei 14811/2024, que inclui bullying e ciberbullying no Código Penal e altera a Lei 8072/1990, Lei dos Crimes Hediondos, e a Lei 8069/1990, Estatuto da Criança e do Adolescente. Seu texto prevê que crimes cometidos contra crianças e adolescentes passam a ser hediondos, não sendo acolhida fiança ou liberdade provisória para os acusados. Sublinhamos sua relevância por prever a Política Nacional de Prevenção e Combate ao Abuso e Exploração Sexual da Criança e do Adolescente.

Veja-se que o Regulamento Geral de Proteção de Dados Europeu inspirou a edição da LGPD, balizando-a no que pertine a princípios, fundamentos, bases legais, já tendo a Alemanha editado o Digital Services Act (DAS) e o Artificial Inteligent Act (AI Act), referindo-se o primeiro diploma justamente aos serviços digitais 3 . Tais corpos normativos nortearam a legislação pátria, fato que não deve abstrair a indispensável apreciação da conjuntura brasileira, com suas especificidades, como adverte André Felipe Krepke (2023).

A reflexão que se nos impõe, diante do gravíssimo evento que culminou com a morte da jovem Jéssica Canedo, é o grande equívoco em que incorremos ao creditarmos às redes sociais teor de sensível verossimilhança, olvidando que são premidas pelo impulso consumista peculiar ao neoliberalismo. Se podem produzir conexões saudáveis e disseminar conhecimentos úteis por um lado, sob outro aspecto são fortemente o reflexo de uma sociedade adoentada pelo empobrecimento das relações humanas. Cabe aqui mencionar o filósofo Byung Chun Han4 :

Transparência e verdade não são idênticas. A verdade é uma negatividade na medida em que se põe e impõe, declarando tudo o mais como falso. Mais informação ou acúmulo de informações, por si sós, não produzem qualquer verdade; faltam-lhes direção, saber e o sentido. É precisamente em virtude da falta de negatividade do verdadeiro que se dá a proliferação e massificação do positivo. A hiperinformação e a hipercomunicação gera precisamente a falta de verdade, sim, a falta de ser. Mais informação e mais comunicação não afastam a fundamental falta de precisão do todo. Pelo contrário, intensifica-o ainda mais.

 

Quer nos parecer que com positividade o filósofo faz menção justamente ao teor francamente artificial de inúmeras postagens que externam padrões de sucesso, poder, felicidade, realização, beleza, etc. Ademais a restrição das informações às preferências dos usuários, mediante filtragem por algoritmos, procedimento premido pela máquina do consumo hábil a gerar lucro, finda por compartimentar os usuários em grupos restritos, sem intercâmbio de ideias, sem respeito à alteridade, diversidade, abrindo campo fértil ao cultivo do ódio e da violência como instrumentos, talvez, de natureza catártica dos usuários, que se sentem protegidos pelo imaginado anonimato, confortáveis no movimento de rebanho que lhes assegura, consoante sua própria percepção, a impunidade dos atos perpetrados.

Sob o aspecto penal, consoante notícias transmitidas pelos meios de comunicação, os donos da página que divulgou o fictício diálogo em aplicativo de comunicação entre a falecida Jéssica e o humorista Windersson Nunes estariam sendo investigados por crime de indução ao suicídio.

É preciso combater firmemente a existência do laço que ata a ausência de regulação das redes sociais à a ausência da responsabilização pelo compartilhamento de conteúdos falsos e violentos. E apoiar e defender a construção de um marco regulatório.

Referências

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1.  Site, publicado em 24/12/2023, acessado em 02/01/2024;

2. Site, publicado em 25/12/2023, acessado em 02/01/2024;

3.  Krepke, André Felipe, “Proteção de dados, contexto social e a necessária lembrança de uma agenda brasileira”, portal Magis, 27 de dezembro de 2023

4.  Han, Byung-Chul, Sociedade da Transparência, Petrópolis, Editora Vozes, 2017

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