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Falta de regulação de redes sociais, autoextermínio, fake news e o caso Jessica. O que mudou?

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Consoante publicação recente nesta coluna, no término de 2023 assistimos a divulgação de triste fato, qual seja, o suicídio de Jessica Canedo 1 , estudante mineira de 22 anos, a qual chegou a publicar em rede social mensagem refutando autenticidade de falsos prints de conversa inexistente, carreada a ela e ao humorista Whindersson Nunes. A jovem realizou postagem solicitando exclusão dos supostos diálogos, repelindo-os veementemente, assim como o humorista, negando qualquer contato entre ambos (sequer se conheciam). Mesmo com o pedido externado por Jéssica, as fictícias comunicações foram divulgadas em página aberta em rede social, por quase uma semana. Após a consumação do autoextermínio, subsistem procedimentos de apuração de eventuais responsabilidades pelos órgãos públicos, com divulgação em 06/03/20242 da conclusão de inquérito policial cujas investigações apontaram no sentido de a própria Jéssica haver criado e divulgado conteúdos de suposto relacionamento com o humorista Whindersson Nunes. Jéssica teria conformado três perfis falsos, passando-se por terceiros, anunciando possuir um “furo”; após, teria enviado prints de suposta conversa entre ela e o humorista. Em diálogos com as páginas que divulgaram o suposto envolvimento amoroso, Jéssica teria confirmado envolvimento com o humorista, mencionando ademais que o conteúdo estaria sendo distorcido, alterando radicalmente a aludida postura, posteriormente. Uma diversa jovem fora indiciada por incitar Jéssica a cometer suicídio; contudo, as páginas de “fofocas” que divulgaram a suposta conversa entre o humorista e Jéssica não foram responsabilizadas por atipicidade de divulgação de fake news, ausente interesse manifesto de familiares de Jéssica quanto à investigação envolvendo delitos contra a honra, em harmonia com o exposto por autoridade policial.

Ao que se depreende do noticiado pela imprensa3 , a polícia civil realizou diligências de ordem técnica identificando o IP do computador de Jéssica e endereço de acesso, além de dados pessoais daquela, para asseverar a autoria dos perfis falsos em que restaram postados diálogos irreais.  Nesse quadro e embora no plano fático não seja possível que se excluam eventuais invasões de dispositivos informáticos por terceiros, de modo ilícito e com alteração de dados, considerando-se a natureza das postagens e circunstância de Jéssica não constituir figura pública nem de modo flagrante – consoante se divulgou, ao menos – ostentar inimigos identificados, tem-se como pouco provável aludida hipótese.

A divulgação de fake news ainda não constituiu crime no ordenamento jurídico pátrio.  O projeto de lei 3.813/2021 objetiva alterar o Código Penal para incluir, entre os crimes contra paz pública, a divulgação de notícia que se sabe ser falsa para distorcer, alterar ou corromper gravemente a verdade sobre tema relacionado à saúde, à segurança, à economia ou a outro interesse público relevante, encontra-se em tramitação no Congresso Nacional, no Senado, aguardando audiência pública na atualidade4 . O bem jurídico vida, atingido pela incitação ao suicídio, certamente em tese é de interesse público.

Ainda que haja atipicidade em termos penais das condutas correspondentes à divulgação de fake news em redes sociais no presente momento – vez não reguladas com especificidade no ordenamento jurídico, aplicável o Código de Defesa do Consumidor a propósito da disciplina da relação entre o usuário e empresas que inserem informações com acesso público em redes sociais, também sob trâmite no Congresso Nacional  o PL 2.630/2020 que institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet– tais comportamentos podem, no plano abstrato, configurar ilícito civil.

O ponto que impõe reflexão nas presentes linhas, mais do que a punição  indispensável de terceiros, em termos de corresponsabilidade, pela perda precoce da valiosa vida de Jessica Canedo,  a qual, ainda que  confirmada a tese de autoria de perfis com inserção de fake news, não deixou de ter sua saúde psíquica e emocional seriamente agravadas em virtude do conhecimento de mensagens de teor negativo que acessou nas redes sociais, consiste justamente , além do que já consignamos em texto precedente quanto ao engodo de se carrear às redes sociais credibilidade acentuada, com inobservância do objetivo comercial que resta incutido no acesso aparentemente gratuito, no viés pernicioso da cultura patriarcal que reduz mulheres a indivíduos que podem facilmente configurar alvo de desprestígio e ofensas publicamente, de forma naturalizada, circunstância que por certo é atravessada por diversos marcadores tais como raça, idade, caracteres físicos, econômicos, etc.

Esperemos, no mais, que a lastimável partida de Jéssica não dê espaço ao achincalhe de sua pessoa, inclusive por não mais poder se expressar, tampouco implique na abstração da corresponsabilidade de terceiros para eclosão do evento danoso.

Em essência, é imperioso que se atente para o equívoco perpetrado por uma sociedade que comunica às mulheres que serão efetivamente valorizadas e admiradas quando possuírem namorados, companheiros ou cônjuges bem-sucedidos, sob parâmetros eleitos economicamente ou peculiares à outorga de prestígio social.

Ao revés, homens e mulheres devem se subjetivar, conformando autoestima, pelo valor intrínseco e irrefutável que ostentam, quaisquer que sejam seus gêneros, idades, caracteres étnicos, culturais e econômicos.

Referências

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1. www.g1.globo.com, publicado em 24/12/2023, acessado em 02/01/2024;

2. www.g1.globo.com, “Triângulo e Alto Paranaíba”, acessado em 06/03/2024;

3. www.oglobo.globo.com, “Caso Choquei: Polícia conclui que jovem forjou prints sobre affair com Windersson Nunes”, acessado em 06/03/2024;

4. www25.senado.leg.br, Atividade Legislativa, Projeto de Lei n. 3813 de 2021, acessado em 06/03/2024;

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