Não é segredo, nem novidade, que a vida real e a legislação brasileira não andam juntas; e normalmente a segunda vem para normatizar situações reais que há muito as pessoas já vivem. E isso é mais comum e mais forte nas relações familiares, sendo impossível a legislação brasileira acompanhar as mudanças nessas relações que modificam-se todos os dias.
Apesar das relações familiares se formarem no dia a dia das pessoas, afinal ninguém racionaliza os afetos, eles apenas se formam; pode-se constatar que num passado relativamente recente as relações normalizadas pela sociedade eram as se tornavam merecedoras da proteção legislativa brasileira; e as demais relações sobreviviam na clandestinidade.
Aos poucos essas relações afetivas passaram a ser “normalizadas” e passam a receber a proteção estatal e, consequentemente, a legislativa; mesmo assim são relações que ainda se encontrava dentro do que a sociedade em sua maioria aceitava.
Portanto, é possível se afirmar que há décadas o direito de família constitucionalizado não mais se preocupa em permitir uma família que seja exclusivamente consanguínea, deixou-se de fazer diferenças entre irmãos em virtude de sua origem, como se via no Código Civil de 1916, que diminuía os direitos dos filhos chamados de adulterinos e dos filhos adotivos; demonstrando um claro e absurdo preconceito legislativo; hoje tais preconceitos inexistem; garantindo-se a igualdade entre filhos independentemente da origem do parentesco e rompendo com a ideia do papel passado. No mesmo sentindo podemos ver a igualdade entre casamentos e uniões estáveis, e mais recentemente a igualdade quanto as relações heteronormativas e homoafetivas.
Mesmo assim todos os dias as pessoas continuam a formar novas relações baseadas nos seus afetos, e isso jamais mudará, e caberá aos legisladores e ao Judiciário proteger as novas relações que irão surgir, sem qualquer juízo de valor pessoal; afinal todas as famílias e todos os afetos merecem seu lugar ao sol.
E para que as relações já consolidadas e as que virão a se formar; surge o conceito de socioafetividade, ou seja, o reconhecimento de relações familiares que não se baseia apenas na consanguinidade, mas também no afeto, na convivência duradoura e no exercício de funções típicas de parentesco, como cuidado, proteção e educação. Portanto, não é mais necessário o “papel passado” para que pessoas sejam consideradas parentes, e as famílias consideradas informais passaram a “existir”.
Esse reconhecimento deu a possibilidade do Judiciário romper com a letra fria da lei e lhe deu margem para a criatividade e senso de modernidade para garantir direitos próprios aos parentescos que existiam de fato, mas não de direito; muito embora o artigo 1.593, do Código Civil, prever a formação do estado de filiação advindo de outras espécies de parentesco civil que não, necessariamente, a consanguínea, o que permite a interpretação da expressão “outra origem” como sendo adoção, a filiação proveniente das técnicas de reprodução assistida e até a filiação socioafetiva.
De qualquer forma, há uma espécie de família que não é objeto das rodas de conversas jurídicas, que é a família anaparental, que muitas vezes é apenas estudada na graduação e relegada ao esquecimento na vida prática dos operadores do Direito.
A família anaparental nada mais é do um tipo de organização familiar em que a convivência se dá apenas entre irmãos, primos, amigos ou outras pessoas que vivem juntas e formam um núcleo de apoio mútuo, sem que haja uma relação de hierarquia parental e conjugalidade. Portanto, nessa família não há a presença de pais e filhos, e encontra-se abarcada no que dispõe o Código Civil.
Num mundo onde se diminui significativamente a natalidade, cada dia mais a família anaparental aumentará; e não haverá qualquer problema em seu reconhecimento pela sociedade e pelo Judiciário; mas é preciso se trazer a baila pessoas que por questões de preconceitos familiares no seu modo de viver desde muito cedo formam relações de afetos familiares com amigos, e os consideram família.
E essas famílias já buscam o Judiciário para o reconhecimento da sua família, garantindo assim os direitos advindos desse reconhecimento, mas acima de tudo o reconhecimento dos seus afetos; como foi possível ver no informativo 753 do Superior Tribunal de Justiça (STJ), de outubro de 2022.
Esse tema, derivada do processo que correu em segredo de justiça, versou sobre o “reconhecimento de parentesco colateral em segundo grau socioafetivo (fraternidade socioafetiva) post mortem; e por maioria a turma julgadora entendeu que:
“Inexiste qualquer vedação legal ao reconhecimento da fraternidade/irmandade socioafetiva, ainda que post mortem, pois a declaração da existência da relação de parentesco de segundo grau na linha colateral é admissível no ordenamento jurídico pátrio, merecendo apreciação do Poder Judiciário”.
Com isso, ficou claro que os laços sanguíneos, nesse caso consanguíneos, não são requisitos necessários para que pessoas se consideram família, preponderando o valor constitucional da afetividade presente entre as pessoas.
Assim a possibilidade de reconhecer parentesco entre pessoas que não possuem laços sanguíneos comprovou o que na realidade as pessoas já têm conhecimento: muitas vezes as pessoas que não possuem laços sanguíneos têm um comportamento mais fraternal do que um irmão sanguíneo, auxiliando em momento de dificuldades, aceitando as escolhas do outro sem julgamento, e dando carinho e afeto , em detrimento do irmão sanguíneo que muitas vezes também abandonam o irmão por discordar das escolhas dele, até mesmo por algum tipo de preconceito social~.
Portanto, a afetividade tornou-se tão importante, e pode-se dizer até mais importante que as relações sanguíneas, e que bom que assim seja quando se trata de relações familiares. O coração não deve ver fronteiras, nem se prender à regras legais; como assim é.
Referências
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DIAS, Maria Berenice, Manual de Direito das Famílias. 16ª edição – São Paulo. Editora Jurispodium, 2023.
GOMES, Guilherme. Fraternidade socioafetiva post-mortem é reconhecida pela Justiça de São Paulo. Disponível em: link
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Em Minas Gerais, mulher consegue reconhecimento de parentalidade socioafetiva com irmã falecida. Disponível em: link
SILVA, Julio Cesar Ballerini. Tema 453 Informativo STJ – O Conceito de Fraternidade Socioafetiva – Novo entendimento. Disponível em: link
STJ – Informativo de Jurisprudência n. 753. Disponível em: link