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Feminização da pobreza, gênero e desigualdade

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A pandemia covid-19, ainda subsistente no mundo com efeitos mitigados na atualidade, salientou o desequilíbrio social especialmente instaurado em países intitulados como emergentes e ainda não plenamente desenvolvidos, tais como o Brasil, onde a desarmonia na percepção de renda é extrema, fator que não pode ser encarado sem a interseccionalidade indispensável de marcadores de raça, gênero, sexualidade e classe social.

As festas de final de ano, a publicidade incessante em nossas televisões, o mito natalino cheio de luzes e alvos sorrisos certamente não se coadunam com a realidade árida que vislumbramos nas ruas e avenidas das grandes cidades, sob pontes, em canteiros estreitos de avenidas movimentadas, defronte a estabelecimentos comerciais : a pobreza generalizada, a população “de rua” multiplicada em progressão geométrica, os adictos do crack, da cocaína, os alcoólatras irremediáveis.

Irremediáveis? Acreditamos que quando falamos em seres humanos submetidos ao aspecto volitivo, nada é insolúvel.

Não é demasiado recordar que nosso país é extremamente pródigo em termos agrícolas. Clima variado e terras férteis não são escassas. Mas de modo absolutamente incongruente, os índices da fome nacionais batem verdadeiros recordes.

Pesquisas realizadas recentemente apontam para o avanço da fome e insegurança alimentar em todo o Brasil:1 o II Inquérito de Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia covid-19 (II VIGISAN) revelou , a partir de dados coletados entre novembro de 2021 e abril de 2022, a partir de entrevistas em 12.745 domicílios, em áreas urbanas e rurais de 577 municípios, distribuídos nos 26 estados e Distrito Federal, que são 125,2 milhões de pessoas em insegurança alimentar (instabilidade na alimentação, traduzida pela preocupação quanto à possível incapacidade de obter alimentos no futuro próximo e comprometimento da qualidade da alimentação constitui insegurança alimentar leve; insuficiência de alimentos hábeis a atender às necessidades dos moradores de uma residência significa insegurança alimentar moderada; insuficiência alimentar grave representa a passagem por experiências de fome) e mais de 33 milhões de pessoas em situação de fome, expressa pela insegurança alimentar grave. O estudo apontou para o fato de que percentualmente a situação dos habitantes em área rural é mais deletéria. Não obstante, os 27 milhões de famintos em áreas urbanas  refletem o fosso social existente nas cidades de nosso território.

O IBGE2 apontou para o terceiro trimestre de 2022 o índice percentual de 8,7 de desemprego, tendo em consideração pessoas com idade para trabalhar que não se encontram inseridas no mercado mas estão disponíveis e tentam encontrar atividade laborativa. O índice em questão é calculado pela PNAD Contínua – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua. O mesmo órgão declinou que entre 2020 e 2021 o número de pessoas vivendo em situação de miséria teve saldo de quase cinquenta por cento no país, sendo que três entre dez brasileiros no referido lapso passaram a viver abaixo da linha da pobreza.3  Ainda, o IBGE no último Censo de 2010 computou o percentual de 87,4% de famílias onde o responsável do gênero feminino possuía filho mas não cônjuge.4 Já no ano de 2021, discriminou em informativo5 que, em 2019, a força de trabalho feminina correspondia a 54,5%,  presente maior proporção representada por mulheres sem filhos, com maior escolaridade das mulheres em cotejo com os homens (29,7%) mas com percentual bastante inferior na ocupação de cargos gerenciais em 2020 (37,4%). Destacou-se que mulheres  pretas ou pardas com crianças até três anos de idade no domicílio apresentaram os menores níveis de ocupação (menos de 50% em 2019), inclusive em desproporção com as mulheres brancas.

Dos dados colacionados não é complexo inferir que as mulheres que chefiam famílias, pretas e pardas, se inserem no contexto de maior insegurança alimentar e desemprego o que a propósito não se distingue no cenário internacional.

De ver-se que a IV Conferência das Nações Unidas sobre a Mulher, em Pequim, nos idos de setembro de 19956 nominou de modo inaugural o fenômeno “Feminização da Pobreza” como correspondente à verificação concreta de que a mulher se encontra como figura central da pobreza mundial, elemento resultante da cultura patriarcal e especificidades  regionais sob o influxo de idéias de cunho religioso, moral, tradições, etc.

Ao passo que um dos fundamentos de nossa república é justamente o princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 5º , inciso III da Constituição Federal) a reflexão que é impositiva é justamente sobre a congruência do cenário supra descrito com um dos basilares fundamentos de nossa república. E lamentavelmente, impõe-se a negativa à indagação.

Se a mendicância reproduzida nas grandes capitais do país não é desacompanhada de sentimentos de insegurança e perda da liberdade de livre locomoção da população em geral, maior infração ao princípio da dignidade da pessoa humana certamente se encontra na redução de seres humanos ao plano da indigência, do abandono, da invisibilidade.

Faltam efetivamente políticas públicas para enfrentamento da problemática que deve ser alçada ao seu seu devido lugar, ou seja, de caráter prioritário.

Recentemente a Defensoria Pública da União entrou com oito ações no STF pedindo que seja garantido o direito à moradia a pessoas em situação de rua, aforadas as demandas em cidades distintas.7

O programa Casa Verde e Amarela, o qual instituiu diretrizes para aquisição de casa própria (habitação urbana) com financiamento mediante recursos do FGTS a famílias com renda bruta mensal até R$ 8.000,00 (oito mil reais) para pagamento em trinta e cinco anos com taxas de juros e descontos, prevê renda mensal bruta mínima de R$ 2.400,00 (dois mil e quatrocentos reais) sob condições mais favoráveis em estados do norte e nordeste.8 Aludido programa habitacional prioriza famílias em situação de risco e vulnerabilidade, famílias comandadas por mulheres e também pessoas com deficiência, idosos, crianças e adolescentes. Embora salutar a concepção do aludido programa devemos ponderar acerca da faixa mínima de renda bruta mensal para participação efetiva no quadro complexo de desemprego e desigualdade social delineado em nosso país.

Merece destaque, a propósito de exemplo de política pública para superação das desigualdades sensíveis entre entre gêneros, a Lei 14.457/22, já em vigor, a qual criou o programa “Emprega+Mulheres” instituindo normas a fim de estimular a inserção das mulheres no mercado de trabalho, estabelecendo regras mais flexíveis no exercício do labor, férias, criando o benefício reembolso-creche com previsão de medidas de apoio à volta ao trabalho após licença-maternidade, além de prever estímulos à ascenção profissional mediante qualificação e paridade salarial com homens, sob o desempenho de funções iguais.9

Não é demasiado consignar que embora primordiais, diplomas legais não alteram a realidade à míngua de adesão dos responsáveis pela mantença das forças produtivas que integram os mais variados setores da economia. De fato, como já bem disse o brilhante Carlos Drummond de Andrade “As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei”10  E é justamente esse o maior desafio a ser suplantado, a implementação das aludidas normas, o que não pode se dissociar da interpretação jurídica em consonância com perspectiva de gênero às mais diversificadas contendas judiciais.

Ações concretas e eficazes a combater a inescusável conjuntura de insegurança alimentar, desemprego, falta de habitação, ausência do mínimo essencial, feminização da pobreza é o que todos, sem exceção, devemos postular e executar para que a dignidade da pessoa humana se espraie em nossa sociedade permitindo a todos uma mesa farta, não apenas em festividades de fim de ano, mas de modo perene.

 

Referências

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1. https://bit.ly/3iFo11m, acessado em 05/12/2022;

2. https://bit.ly/3usHQvF, acessado em 05/12/2022;

3. http://glo.bo/3HcqOta, economia, acessado em 05/12/2022, matéria publicada em 02/12/2022;

4. https://bit.ly/3urjsui, acessado em 05/12/2022;

5. https://bit.ly/3Y00SXI, acessado em 05/10/2022

6. Medina, Janaina de Castro Marchi, “Mulheres, Maternidades e Direito- Feminização da Pobreza”, Leme, 2022, Editora Mizuno, pag 157-158;

7. https://bit.ly/3URzUPn, matéria veiculada em 29 de novembro de 2022, acessada em 05/12/2022;

8. https://bit.ly/3urjQce, acessado em 15/12/2022;

9. https://bit.ly/3h3gxEW, acessado em 15/12/2022;

10. https://bit.ly/3UBpO4M, acessado em 15/12/2022;

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