Face à maioridade da Lei 11.340/06, que completara dezoito anos de sua promulgação no dia 07 de agosto, uma das reflexões que devemos fazer é a propósito da conduta das mulheres perante seus pares em termos de gênero: estariam repetindo os padrões patriarcais, em suas inter-relações e em caso positivo, essa circunstância seria exclusiva ou conjugada à detenção de danos à saúde psíquica de supostas agressoras?
Impondo-se o assentimento à reprodução do conteúdo cultural e sem conotação de excepcionalidade, o adoecimento mental de agressoras, sob diversas modalidades de desequilíbrios e doenças, efetiva-se.
O estrangeirismo denominado “wollying” corresponde a união entre duas palavras: woman (mulher, na língua inglesa) e bullying (ou seja, “intimidação”, expressão advinda do verbo “bully” que significa ameaçar, maltratar, assustar).
Acerca da temática, é oportuno apontar que tramita na Câmara Municipal de Curitiba projeto de lei, de autoria da vereadora Noemia Rocha (MDB)1, o qual estabelece previsão de criação de política municipal de atenção e enfrentamento ao “Wollying”, ou seja, o bullying entre mulheres, com destinação à Comissão de Constituição e Justiça para estudo atualmente.
Em harmonia com a Lei Federal 13.185/15, o wollying é a intimidação, por meio de violência, em atos de humilhação ou discriminação.
O cerne da intimidação sistemática entre mulheres consistiria em todo ato violento, intencional e repetitivo que ocorre sem motivação evidente, praticado por uma ou mais mulheres contra outra ou outras mulheres, com o objetivo de intimidar ou agredir, causando dor e angústia à vítima, em uma relação de desequilíbrio de poder entre as partes envolvidas.
Destaca-se na justificativa da autora do projeto de lei a observação de que a problemática é de natureza complexa, a qual envolve dinâmicas sociais e psicológicas profundas, com ênfase na circunstância de que a competição por aceitação social, popularidade e até mesmo relacionamentos pode gerar comportamentos agressivos entre as mulheres. Acrescenta, ademais, que os impactos podem ser ainda mais sérios por decorrerem de pessoas de quem se espera maior compreensão e empatia.
O denominado wollying pode ser perpetrado quando utilizada a internet, destacado o escopo de criação de meios de constrangimento psicossocial.
Condutas prescritas no artigo 2º da Lei 13.185/15 como peculiares ao wollying (comportamento irmanado ao bullying, com a diferenciação do sujeito ativo, pertencente ao gênero feminino), além da violência física ou psicológica em atos de intimidação, humilhação ou discriminação , são descritas como insultos pessoais, comentários sistemáticos e apelidos pejorativos, ameaças por quaisquer meios, grafites depreciativos, expressões preconceituosas, isolamento social consciente e premeditado, pilhérias.
Consoante o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, criado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública , a violência contra a mulher e feminicídio registraram aumento em 2023, no percentual de 9,8%. O aumento da violência psicológica contra a mulher foi de 33,8%2. Nesse amplexo, considerado o feminicídio, 90% dos autores são do sexo masculino e 10% do sexo feminino.
Além de consignar o aumento dos índices de violência contra a mulher em 2023, o aludido Anuário mencionou que ..a quantidade de violência que os registros policiais, os acionamentos da PM e as medidas protetivas do Judiciário conseguem acessar é uma parte do fenômeno e somente isso. Existe uma parcela da violência que não entra nas estatísticas oficiais, por razões diversas como desconfiança nas instituições, fatores psicológicos como medo e culpa, burocracia e dificuldade de acesso a serviços, dentre outros (Campos, 2015)…”(Sumário, pg 136).
Pesquisa realizada com mulheres que apresentam transtornos mentais3 em 2019, apontou que serem aquelas alvo de bullying, em diversos espaços sociais, também surgiu nas experiências de entrevistadas. Ressaltou-se que, consoante Mattos e Jaeger (2015, p 350), o bullying se configura em um conjunto de atitudes agressivas, intencionais e repetitivas como, por exemplo, implicância, discriminação e agressões verbais e físicas. A forma como o bullying é realizado e recebido pelas vítimas é fundamentada em representações de gênero.
Logo, conjugando-se os dados oficiais da violência psicológica contra a mulher com subnotificação, a viabilidade de incidência de bullying com fulcro em representações de gênero e a cultura patriarcal instalada no seio da sociedade pós-moderna, há de se indagar: estar-se-ia diante de contexto dissociado da realidade como premissa para o oferecimento de projeto de lei, além da própria concepção do “wollying”, com tratamento jurídico específico, ao enfocar-se o bullying perpetrado por mulheres contra pessoas do mesmo gênero? Quer nos parecer que a negativa se impõe.
O fenômeno do wollying está intrincado na tessitura social e, como de resto toda a violência contra a mulher, é invisibilizado e desconsiderado, inclusive sob o ponto de vista do potencial destrutivo do psiquismo e emocionalidade da vítima.
De ver-se que não é qualquer agressão que caracteriza o wollying, ainda que qualquer violência moral contra mulher seja passível de reprimenda legal. Trata-se de intimidação sistemática, que ostenta como pano de fundo conjunturas de diferenças de relações de poder, com submissão, eventual dependência ou insegurança justificada pelas circunstâncias, por parte da vítima em relação a agressora (exemplificativamente, superiora hierárquica, orientadora de natureza intelectual, prestadora de serviço relevante à vítima como profissional da saúde ou liberal, etc), fatores que colaboram para morosidade ou mesmo abstenção de reação pela vítima, por temor reverencial , dependência, necessidade econômica (como o exercício de função laborativa, hipótese em que o tipo penal corresponde a assédio moral) ou diversa circunstância relevante.
Dúvidas inexistem a propósito do caráter deletério de qualquer violência psicológica, que prejudica a autoestima da vítima, violando sua integridade psíquica.
Sob o ponto de vista de saúde mental das agressoras, serão múltiplas as hipóteses a serem cogitadas. Traumas de natureza psicológica precedentes, não raras vezes experimentados na infância; dentro do contexto de percepção de violência, fenômeno de identificação com o agressor e repetição do comportamento do último em relação a terceiros; configuração de personalidade narcisista, que pressupõe baixa autoestima; detenção de doenças psíquicas variadas, transtorno, traços de perversidade na personalidade, etc.
O que nos afigura consubstanciar o diferencial do wollying é justamente o gênero da vítima e do sujeito ativo da conduta, tipificação ademais que ainda depende de legislação específica, sem prejuízo de se conformar no plano empírico e fazer jus ao enquadramento jurídico correspondente, perante o ordenamento em vigor.
De toda sorte, consideramos que, embora necessária a constatação da prática de wollying no corpo social, com fluência de todos os fatores supramencionados, é justamente a cultura patriarcal vigente que propicia a eclosão de tais fenômenos, os quais devem ser repelidos pela normatividade pois se afiguram objetivamente danosos e inescusáveis, especialmente porque perpetrados por mulheres contra mulheres.
Referências
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1. www.cnnbrasil.com.br, matéria publicada em 04/07/2024 por Aline Fernandes, em colaboração com a CNN, São Paulo, acessada em 27/08/2024;
2. www.cbn.globo.com, violência contra a mulher e feminicídio registraram aumento em 2023, mostra levantamento, por Klauson Dutra, São Paulo, 18/07/2024, matéria acessada em 27/08/2024; https://publicacoes.forumseguranca.org.br/handle/123456789/253
3. www.lestu.org, Alves, Tahiana Meneses, “Tudo isso é para eu ser normal? Não tem como eu ser normal!”: questões de gênero nas histórias de vida de mulheres com diagnóstico psiquiátrico, Journal of Social Sciences, Humanities and Research in Education;