Gravidez na adolescência e violência obstétrica

Gravidez na adolescência e violência obstétrica

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Um dos objetivos essenciais desta coluna é a elucidação sobre a natureza das questões de gênero no âmbito social, as quais decorrem em tratamentos díspares e desvantajosos às mulheres em suas interrelações com o gênero oposto. Justamente pela identificação do fenômeno, de raiz patriarcal em seu nascedouro e perpetuação, o CNJ editou o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero 2021, fruto do Grupo de Trabalho Instituído pela Portaria CNJ n. 27 de 2 de fevereiro de 2021, de modo subsequente a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) no caso Márcia Barbosa de Souza e outros vs. Brasil, condenação essa que dentre medidas impostas, ordenou a implementação de programas de capacitação e sensibilização para o pessoal de administração de justiça, com adoção de protocolo estandartizado de investigação de mortes violentas de mulheres em razão de gênero, dirigido ao pessoal da administração da justiça que, de alguma maneira, intervenha na investigação e tramitação de mortes violentas de mulheres1.

Logo, a violência contra a mulher e a desigualdade de gênero não são imaginários, tampouco fatores que se verificam de modo pontual ou minoritário, lamentavelmente, no Brasil. Dados do IBGE e múltiplos fatos divulgados na imprensa escrita e impressa, inclusive a que se vale do meio digital, diuturnamente demonstram a realidade do quadro de inobservância do preconizado no artigo 5º , caput, da Constituição Federal no que pertine à igualdade substancial entre gêneros.

É relevante que consignemos tais circunstâncias diante da cogitação de que pautas de gênero corresponderiam a movimentos denominados “identitários”, peculiares a minorias ou grupos marginalizados, os quais findariam por provocar, mesmo indiretamente, reações enérgicas de parte da população pela ausência de acatamento aos interesses de maiorias.  De ver-se que, em nosso país, a maioria é composta por mulheres, inclusive, pardas, consoante dados do IBGE de 2024.2 (adotando-se como critério de “pardo” a autodeclaração e ascendência de raças, com predomínio de traços negros). Por conseguinte, a conscientização de que o desequilíbrio nas relações de poder entre gêneros decorre em infringência visceral à Constituição da República, impondo inclusive a aplicação no âmbito do Poder Judiciário de protocolo para julgamento sob tal perspectiva, não traduz interesse minoritário, tampouco desarrazoado ou desproporcional.

É nesse panorama que devemos nos indagar sobre o conceito de violência obstétrica. Pode ser a violência obstétrica definida como toda ação ou omissão direcionada à mulher durante o pré-natal, parto ou puerpério que cause dor, dano ou sofrimento desnecessário à mulher, praticada sem o seu consentimento explícito ou em desrespeito à sua autonomia, integridade física e mental, aos seus sentimentos e preferências 3. Como apontam Fabiana Dal´ Mas e André Geraldes4, em casos de abortamento a violência obstétrica pode ocorrer quando há recusa ou empecilho ao abortamento legal, ou mesmo na omissão de assistência às complicações advindas do abortamento.

Tornando ao Censo/2022, cujos dados nos devem guiar para fins de mapeamento das categorias populacionais cujos direitos (à vida com dignidade, particularmente) reclamam emergencial acatamento, não é complexo apreender que a região Norte do país ostenta a maior proporção de adolescentes grávidas. Estudo realizado pelo Ministério da Saúde já em 2020 apontava que, na referida oportunidade,   14% de todos os nascimentos no país incluíram aqueles atrelados a mães com até dezenove anos, com concentração majoritária no território em comento (21,3%)5. Embora venha se verificando a redução da gravidez na adolescência, consoante dados do SINASC 6 (Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos) , são ainda expressivos os índices de adolescentes gestantes.

De ver-se que a gravidez na adolescência surge perante a vulnerabilidades biológica, econômica, social e cultural, as quais fatalmente incidirão na vida da adolescente, impondo mudanças fisiológicas, dificuldades emocionais, responsabilidades, conflitos familiares a gerar, não raras vezes, rupturas no convívio, solidão e abandono.

Realizada pesquisa em município no interior do Ceará com nove adolescentes, com histórico peculiar à violência obstétrica no parto e renda familiar inferior a um salário mínimo, sob abordagem qualitativa, em 2022 (CORDEIRO, VIEIRA, MORAIS E COSTA)7, apurou-se a ocorrência efetiva de diversas modalidades de violência (toque vaginal excessivo e desnecessário, violência verbal, proibição de acompanhante em todas as fases que antecedem, coincidem ou são posteriores ao parto, omissão de informações relevantes, falta de franqueamento de oportunidade para tomada de decisão, pela gestante,  quanto à modalidade do parto a eleger -natural ou cesária – episiotomia,  ou seja, procedimento de corte vaginal  para se estimular o parto e praticidade , o qual aumenta o risco de laceração do períneo, com sequelas diversas, manobras físicas desnecessárias à consumação do parto, etc).

Se é veraz que uma multiplicidade de fatores negativos incidem para aumento do risco de gravidez na adolescência quanto às meninas em situação de vulnerabilidade social, não menos real é a circunstância de que a evasão escolar contribui para tal conjuntura, pois a educação é destacada como primordial à prevenção do referido quadro8.

Relatório divulgado pelo Fundo das Nações Unidas (Unicef) referiu-se às condições climáticas extremas como elementos hábeis a afastar um em cada sete jovens das escolas em todo mundo (eventos como calor , inundações, ciclones, ondas de calor ensejando fechamento de instituições de ensino, etc). Se considerarmos que 2024 foi o ano mais quente da história, em harmonia com observatório europeu Copernicus (alta de temperatura global acima dos níveis pré-industriais, de 1, 5º C), consoante Canal Meio, a evasão escolar e a perspectiva de majoração do índice de adolescentes grávidas, em particular nos Estados onde estão presentes maiores desigualdades sociais, são iminentes.

Não podemos ignorar, por derradeiro, que o artigo 227 da Carta Magna atribui à família, à sociedade e ao Estado a obrigação de assegurar aos adolescentes, com prioridade, o direito à saúde, à dignidade, ao respeito, acatamento esse que não se compatibiliza com a violência obstétrica , de que são alvo incapazes, por sofrerem com procedimentos desnecessários aptos a causar-lhes danos de espécies diversificadas.

Sabemos que a violência obstétrica gera consequências jurídicas , quer no Direito Civil, quer no Direito Penal, esboçadas em ações indenitárias (respondendo o profissional de saúde por conduta culposa), sem abstração de  feitos de natureza criminal onde haja imputação da prática delitiva, como lesões corporais, homicídio, estupro, ameaças,  etc.

Nem se harmoniza o ordenamento jurídico com a responsabilização indevida de profissionais da saúde. É relevante que se consigne que a violência obstétrica configura ato ilícito, residindo na omissão de deveres ou em ações hábeis a ensejar danos às adolescentes, com a implementação de procedimentos despiciendos, constrangedores, dolorosos e traumáticos, não raras vezes.

Se é dever de toda a sociedade priorizar a infância e a juventude, implementemos a Lei 13.798/19 que inseriu no Estatuto da Criança e do Adolescente dispositivo para criação da semana nacional de prevenção da gravidez da adolescência de 01 a 08 de fevereiro. E não mais toleremos a violência obstétrica!

Referências

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1.  www.cnj.jus.br Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, acessado em 31/01/2025;

2. G1.globo.com, matéria veiculada em 22/12/23 e www.educa.ibge.gov.br, Censo/2022, acessados em 31/01/2025;

3. Fundação Perseu Abramo e Sesc, Mulheres Brasileiras e Gênero nos Espaços Público e Privado, 2010, http://novo.fpabramo.org.br/content/violencia-no-parto-na-hora-de-fazer-nao-gritou.

4. “A Violência Obstétrica na Perspectiva do Direito”, São Paulo, 2024, Editora Juspodivm, pg 27;

5. www.agenciagov.ebc.com.br, matéria veiculada na coluna “Direitos Humanos” em 29/01/2024, acessada em 31 de janeiro de 2025;

6. www.pp.nexojornal.com.br, Maciel, Lara  e França, Michel, “Alta taxa de gravidez na adolescência no Brasil: o desafio de quebrar o ciclo de pobreza intergeracional”, acessado em 31/01/2025;

7. Revista Eletrônica Acervo Saúde, “Violência obstétrica vivenciada por mães adolescentes no processo do parto”, https://doi.org/10.25248/REAS.e16130.2024, acessado em 31/01/2024;

8. www.bvsms.saude.gov.br, acessado em 31/01/2025.

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