Hannah Arendt: Racismo e direito à privacidade

Hannah Arendt: Racismo e direito à privacidade

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Little Rock é uma cidade pequena do interior dos Estados Unidos e que foi palco de uma das maiores controvérsias político-jurídicas do século XX.

Após séculos de escravidão e estratificação racial na sociedade americana, a Suprema Corte dos EUA, em 1954, declarou a inconstitucionalidade da segregação racial nas escolas públicas.

O governador do Estado de Arkansas até tentou impedir o cumprimento da decisão judicial, mas a polícia local foi incapaz de fazer frente às forças policiais federais, obstinadas em cumprir a decisão da mais alta Corte. O rebuliço foi grande e registrado como o caso dos nove de Little Rock – uma referência às nove pessoas negras que foram verdadeiramente incumbidas da parte prática da política de dessegregação. Nove infantes que fizeram história.

A já famosa e respeitada filósofa Hannah Arendt, alemã refugiada nos EUA por causa da segunda guerra mundial, resolveu dar sua opinião sobre o assunto.

Arendt não se valeu de argumentos pró-federalismo para criticar a progressista e intervencionista decisão judicial. Arendt se valeu do direito à privacidade.

Compreender as categorias políticas e filosóficas da autora não é tarefa simples, sendo raros os momentos de exemplificação prática. Sobre privacidade e vida pública, além das famosas categorias de solidão e solitude – que hoje muito se vê no discurso motivacional coach – estão em obras profundas e complexas como A Condição Humana e Origens sobre o totalitarismo (parte final).

O ensaio da autora sobre o caso – Reflexões sobre Little Rock – desnuda parte de seu estilo escorregadio e um tanto quanto cheio de sutilezas escondidas. No ensaio, a autora dispõe em termos bem práticos o que entende por domínio do público, do social e do privado.

Pois bem.

Arendt criticou a decisão da Corte porque, segundo ela, teria havido violação ao princípio da discriminação, que deveria ser prevalecente ao princípio da igualdade. Faz ela referência ao princípio da exclusividade. É aqui a fonte citada indiretamente no famoso artigo do prof. Ferraz Jr.1  sobre direito à privacidade no processo penal, sem dúvida um dos maiores pilares sobre o tema na área.

Mostrando sua compreensão de privacidade nos limites do indivíduo e da família, ela escreve:

“As crianças são, em primeiro lugar, parte da família e do lar, e isso significa que são ou deveriam ser criadas naquela atmosfera de exclusividade idiossincrática que transforma uma casa num lar, forte e seguro o suficiente para proteger os mais jovens contra as exigências da esfera social e as responsabilidades da esfera política. O direito dos pais de criar os filhos como acharem adequado é um direito de privacidade, pertencente ao lar e à família”.2

Já neste trecho abaixo, Arendt expõe sua visão de que a privacidade é um freio ao impulso degenerativo do vetor social, no contexto do que ela chama de sociedade de massa. Essa é uma discussão que eu trouxe no último texto da coluna, que vale também de introdução e contexto para o discuto aqui hoje (Origens da teoria jurídica da privacidade, disponível em: https://magis.agej.com.br/origens-da-teoria-juridica-da-privacidade/).

“A sociedade de massa – que embaça as linhas de discriminação e nivela as distinções dos grupos – é um perigo para a sociedade como tal, mais do que para a integridade da pessoa, pois a identidade pessoal tem a sua origem para além da esfera social”.3

As motivações para o posicionamento polêmico e hoje (e então) reconhecidamente racista de Arendt do caso das jovens de Little Rock são alvo de intenso debate na academia. Ora se volta para sua condição de imigrante, que lhe torna alheia à compreensão profunda da realidade social de onde vive, ora se volta para sua condição de judia perseguida na Europa.

A verdade, porém, é que o problema de sua obtusa conclusão não reside em contingências superáveis na relação autora-objeto. Ela reside, antes de tudo, nos fundamentos de sua teoria, liberal-individualista e de matriz euro e etnocêntrica.

A escravidão nas américas e o genocídio indígena não são fatos históricos considerados por Arendt na formulação de sua teoria, tampouco servem de elemento de consideração para sua análise sobre o caso da escola. Não é erro, mero equívoco de uma jovem pesquisadora. É opção epistêmica, carregada de vieses sabidos e intencionais.

Arendt não entende a escravidão estadunidense como um fenômeno de opressão de um povo sobre o outro, muito menos de espaço de resistência ou de luta. Ao contrário, para ela, a escravidão em solo americano dispõe a população negra no lugar do pertencimento, como se a condição de escravizado fosse o caminho necessário à cidadania.

Ela dispõe a questão racial como problema interno e recente, não fundacional. Diz a autora que “problema da cor na política mundial surgiu do colonialismo e imperialismo das nações europeias – isto é, o único grande crime em que os Estados Unidos jamais estiveram envolvidos”.4

Por meio da defesa teórica do direito à privacidade, Arendt escreveu um manifesto em defesa da segregação racial americana.

A protagonista de sua história, Elizabeth Eckford, a estudante corajosa que teve sua imagem eternizada recebendo cusparadas de pessoas brancas raivosas, foi utilizada pela filósofa como mero instrumento retórico, foi reificada e afastada de seu valor revolucionário. Esta força transformadora personificada na jovem, porém, só é bem compreendida quando a própria privacidade é compreendida para além dos limites propostos do caduco liberalismo clássico, isto é, de uma privacidade restrita apenas ao ideal de uma família formada em vila e liderada por um sujeito que a protege da degeneração do social. Mais uma vez, sobre isso, insisto na remissão ao texto prévio desta coluna.

Trazendo-se para o Brasil o problema aqui abordado, a conclusão é que quando o direito à privacidade, especialmente no âmbito criminal, é compreendido em termos de indivíduo e de família, o que só pode ser feito a partir da negação da materialidade histórica da formação sociocultural brasileira, o racismo não é apenas ignorado e negado, mas reforçado.

A reflexão aqui proposta, com as referências devidas sobre os principais argumentos aqui sintetizados, está completa no capítulo terceiro da minha tese de doutorado, publicada neste último setembro.

O título da tese é PROCESSO PENAL E ALGORITMOS: O direito à privacidade aplicável ao uso de algoritmos no policiamento. Está disponível no link, e, caso tenha chegado até aqui, além do meu agradecimento, deixo meu convite à leitura e ao diálogo.

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Rafael de Deus Garcia

 

Referências

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1. FERRAZ JR., T S. Sigilo de Dados: O direito à privacidade e os limites à função fiscalizadora do Estado. Revista da FD-USP, v. 88, p. 439-459, 1993.

2. ARENDT, H. Reflexões sobre Little Rock. In: ARENDT, H.; KOHN, J. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 261-281, p. 279.

3. ARENDT, H. Reflexões sobre Little Rock. In: ARENDT, H.; KOHN, J. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 261-281, p. 273-4.

4. ARENDT, H. Reflexões sobre Little Rock. In: ARENDT, H.; KOHN, J. Responsabilidade e julgamento. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 261-281, p. 266.

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