Herança de Criptoativos: Entre a Autonomia Digital e o Ordenamento Jurídico

Herança de Criptoativos: Entre a Autonomia Digital e o Ordenamento Jurídico

homem segurando um bitcoin

A ascensão dos criptoativos como uma nova classe de ativos financeiros trouxe consigo uma série de desafios para áreas tradicionais do direito. Pois isso, este artigo delineia os cuidados necessários para garantir que o patrimônio em criptoativos chegue de forma segura e legal a seus herdeiros.

Como é de conhecimento geral, o instrumento central do processo de sucessão é o inventário no qual é identificada a herança, que é um todo unitário, mas formado por todos os bens, direitos e dívidas do de cujus que compõem o espólio, que será posteriormente partilhado entre os herdeiros (art. 1.784 a 1.796 do Código Civil).

Para identificar tudo que compõe o espólio, em especial no caso de desconhecimento acerca de todo o patrimônio do cujus, o inventariante pode utilizar o instrumento de arrolamento de bens (arts. 301 e 381, § 1º do Código de Processo Civil), que consiste num trabalho investigativo que visa procurar informações sobre direitos, assim como localizar títulos de propriedades junto a entidades centralizadas que registram:

  • Imóveis: A busca é feita nos Cartórios de Registro de Imóveis para localizar matrículas e emitir certidões que comprovem a propriedade.
  • Recursos Financeiros: O inventariante pode consultar o Banco Central (através de sistemas como o SISBAJUD) para descobrir contas correntes, poupanças e aplicações financeiras em nome do falecido.
  • Valores Mobiliários: A busca por ações, fundos de investimento e outros títulos é realizada junto às corretoras de valores e à própria B3 (a bolsa de valores brasileira), que fornecem as posições acionárias e custódia.

Em todos esses casos, há um terceiro de confiança — um cartório, um banco, uma corretora — que pode ser acionado a pedido do inventariante para confirmar a existência e a titularidade dos bens e direitos.

Já a investigação para localizar criptoativos que compõem o espólio é radicalmente diferente e depende fundamentalmente de como esses ativos foram guardados em vida pelo de cujus, isto é, como era a custódia desses criptoativos.

A titularidade de um ativo tradicional se manifesta por um documento emitido por uma autoridade (uma escritura, uma matrícula, um contrato, um extrato etc.). Já no universo cripto, a titularidade se manifesta pelo controle da chave privada — uma senha criptográfica complexa que permite movimentar os fundos em um determinado endereço na blockchain.

Nesse contexto, há dois cenários:

  • Custódia por Terceiros: O de cujus mantinha os criptoativos em uma corretora centralizada (exchanges), como a Binance, o Mercado Bitcoin etc. Nesse caso, o processo se assemelha ao de um banco. O inventariante, sabendo qual é a exchange, pode notificá-la no contexto do arrolamento de bens para que essa preste informações sobre o saldo e, posteriormente, homologada a partilha, transfira os ativos para os respetivos herdeiros. O grande desafio aqui é descobrir em quais exchanges o de cujus possuía conta, já que não há um “Banco Central de Corretoras de Criptoativos”.
  • Autocustódia (Self-Custody): Aqui reside o maior desafio sucessório. Na autocustódia, o titular dos ativos é o único responsável por guardar suas próprias chaves privadas, seja em uma carteira de software (no celular ou computador) ou de hardware (dispositivos físicos como Ledger ou Trezor). Não há nenhuma entidade central para consultar. A propriedade é absoluta e direta. Se a família não souber da existência dessas carteiras ou não tiver acesso às chaves privadas (ou à seed phrase, a sequência de palavras que recupera a chave), os ativos estão, para todos os efeitos, perdidos para sempre.

A escolha entre custódia por terceiros e autocustódia envolve um balanço de riscos que se estende para além da vida do titular.

  • Risco da Custódia por Terceiros: O principal risco é a falência, fraude ou ataque hacker à corretora. Além disso, no momento da sucessão, o caso de Gerald Cotten, fundador da exchange canadense QuadrigaCX, é emblemático. Após sua morte súbita em 2018, centenas de milhões de dólares em criptoativos de seus clientes se tornaram inacessíveis, pois aparentemente só ele detinha as senhas das carteiras da empresa. Isso demonstra que a centralização do acesso em uma única pessoa pode ser catastrófica.
  • Risco da Autocustódia: O risco aqui é transferido integralmente para o indivíduo. A responsabilidade é total, e a perda do acesso é irreversível.

A história mostra que, na autocustódia, o falecimento do titular sem um plano de sucessão claro equivale a jogar fora o disco rígido ou esquecer a senha: os ativos tornam-se um tesouro enterrado sem mapa. Para evitar a perda definitiva do patrimônio digital, o detentor de criptoativos, especialmente em autocustódia, precisa adotar uma postura proativa. O inventariante não poderá contar com a ajuda de ninguém para localizar e transferir esses bens:

  1. Criar um Repositório Pessoal de Informação: Manter uma lista detalhada de todos os criptoativos, indicando onde estão custodiados (nome da exchange, tipo de carteira de software/hardware etc.).
  2. Elaborar um “Manual de Acesso”: Para ativos em autocustódia, é vital criar um guia para o inventariante. Este documento deve conter as chaves privadas, seed phrases, senhas de acesso às carteiras e PINs dos dispositivos.
  3. Garantir o Armazenamento Seguro: Esse “manual” é extremamente sensível. Ele não deve ser armazenado em locais vulneráveis (como um arquivo de texto no computador ou em um serviço de nuvem). Opções seguras incluem cofres físicos, caixas de segurança em bancos ou o uso de métodos de criptografia com a senha de acesso confiada a um advogado ou pessoa de confiança. Soluções como a partilha de segredos (Shamir’s Secret Sharing), que dividem a chave em fragmentos, também são uma opção avançada.
  4. Incluir os Criptoativos no Testamento: Formalizar a existência dos ativos digitais em um testamento dá ao inventariante o respaldo jurídico necessário para agir e legitima a posse dos herdeiros durante o inventário até a partilha.
  5. Informar uma Pessoa de Confiança: O titular deve informar a seu provável futuro inventariante ou profissional de confiança (advogado, contador, administrador etc.) sobre a existência e a localização do “manual”, sem necessariamente entregar o conteúdo enquanto estiver vivo, equilibrando segurança e planejamento.

Mas a facilidade técnica da autocustódia traz um desafio enorme pois, na prática, é possível transferir a titularidade dos criptoativos pela tradição da posse das chaves privadas aos herdeiros sem que isso passe necessariamente por um inventário, no qual ocorre o recolhimento de tributos. Mas esse procedimento é ilícito.

A transmissão por herança de quaisquer bens ou direitos é um fato gerador do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), um tributo estadual. E, por sua vez, a hipótese de incidência que caracteriza a obrigação de pagar o imposto não decorre da homologação da partilha, mas sim do próprio evento da morte e da consequente transferência patrimonial.

Por esse motivo, sonegar os criptoativos no inventário, com o intuito de evitar o recolhimento ITCMD também constitui sonegação fiscal. E, embora o Estado tenha dificuldade em rastrear a transferência inicial, o problema surgirá quando o herdeiro converter os criptoativos em moeda nacional ou utilizá-los para comprar um bem cuja transferência depende de registro centralizado, cujas transações financeiras são comunicadas aos órgãos de controle e devem ser declarados à Receita Federal, que poderá cruzar dados e, assim, questionará a origem dos recursos. A incapacidade de comprovar a origem lícita (nesse caso, a herança devidamente declarada e tributada) pode resultar em pesadas sanções legais, administrativas e criminais.

Portanto, a única forma de garantir que os herdeiros possam usufruir livremente dos criptoativos é não deixar de arrolá-los no inventário e, consequentemente, recolher os tributos incidentes. Afinal, a tecnologia não serve para contornar a lei.

É fundamental mencionar também que a herança é fato gerador do Imposto de Renda sobre Ganho de Capital, que incidirá sobre uma venda futura do ativo pelo herdeiro. A diferença entre o valor de venda do criptoativo e o seu valor na aquisição por herança é tributável. E é aqui que reside uma decisão estratégica que deve ser tomada durante o inventário.

A legislação brasileira permite que os bens do de cujus sejam transferidos aos herdeiros por dois valores distintos na Declaração Final de Espólio:

  1. Pelo Custo de Aquisição Original: O bem é transferido ao herdeiro pelo mesmo valor que o de cujus o declarava à Receita Federal. Nessa modalidade, não há apuração de ganho de capital durante o inventário. Contudo, o herdeiro adquire os cripotoativos pelo valor mais baixo, o que resultará em um imposto de renda pelo ganho de capital muito maior quando ele decidir vender o criptoativo no futuro.
  2. Pelo Valor de Mercado na Data da Transferência: O valor do criptoativo é atualizado no momento da partilha. A diferença entre esse valor e o custo de aquisição original do de cujus é considerado ganho de capital tributável que deve ser pago no inventário. A grande vantagem para o herdeiro é que seu custo de aquisição passa a ser esse valor de mercado atualizado no momento da partilha, reduzindo drasticamente, em tese, o imposto a ser pago pelo ganho de capital em uma venda futura.

A escolha entre essas opções é estratégica e deve ser analisada caso a caso, considerando a liquidez do espólio para pagar o imposto antecipadamente e a intenção do herdeiro em relação ao criptoativo. É importante notar, ainda, que as regras de isenção para vendas de criptoativos aplicam-se normalmente ao herdeiro após o recebimento do bem, o que pode influenciar o planejamento da futura alienação. Tendo em vista a instabilidade dessas regras, que vem passando por mudanças constantes tanto por meio da Lei nº 14.754/2023, como da Medida Provisória nº 1.303/2025, cabe o acompanhamento constante da legislação para avaliar e melhor estratégia a ser seguida.

A jornada pela sucessão de criptoativos revela que a tecnologia, por mais revolucionária que seja, não opera em um vácuo legal. Ao comparar o trabalho de arrolar e inventariar um imóvel com o de localizar uma carteira de Bitcoin em autocustódia, é perceptível a mudança de paradigma na própria essência da propriedade, que passa não mais a ser certificada por registros centralizados, e agora pode residir exclusivamente no controle de uma sequência de palavras secretas.

Essa soberania individual sobre o patrimônio, um dos pilares da filosofia cripto, vem acompanhada de uma responsabilidade igualmente soberana. As histórias de fortunas digitais perdidas para sempre não são apenas contos de advertência; são a prova de que, na ausência de um planejamento meticuloso, um legado pode se transformar em um cofre digital permanentemente trancado. Assim sendo, a diferença entre uma herança bem-sucedida e um tesouro perdido está na proatividade do titular em vida.

Portanto, a tarefa de criar um “manual de acesso”, de armazená-lo com segurança e de informar uma pessoa de confiança sobre sua existência transcende a mera organização financeira. É um ato de cuidado e responsabilidade para com os sucessores, garantindo que o fruto de investimentos e convicções não se evapore na blockchain. No fim das contas, a verdadeira herança digital não é apenas o ativo em si, mas o mapa claro e seguro que permite que ele seja encontrado, acessado e usufruído por aqueles a quem se destina.

 

Autores

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Marcelo Simões dos Reis coordena a área de análise tributária na Secretaria de Comércio Exterior do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços. Também detém o título de LLM em Direito Internacional pela Universidade de Groningen – Holanda, mestrado em Direito das Relações Internacionais pelo UNICEUB e pós-graduação lato sensu em Direito Tributário e Finanças Públicas pelo IDP.

Agostinho Gomes Cascardo Junior é Delegado de Polícia Federal, doutorando em Sustentabilidade Social e Desenvolvimento (UAb, Portugal), mestre em Ciência e Sistemas de Informação Geográfica (UNL, Portugal), especialista em Gestão de Riscos, Compliance e Auditoria pela PUC/PR, detentor do Geospatial Intelligence Collegiate Certificate pela United States Geospatial Intelligence Foundation (EUA), com certificação profissional em Blockchain Fundamentals pela Universidade da Califórnia (Berkeley) e certificação profissional em Blockchain for Business pela Linux Foundation.

Rafael Ferreira Filippin é advogado da Nichetti, Filippin e Comazzi Advogados, doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento pela UFPR, mestre em Direito Ambiental pela UFSC, especialista em Gestão de Recursos Hídricos pela UFPR e Presidente da Comissão de Direito Ambiental da Seccional Paraná da Ordem dos Advogados do Brasil.

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